Edição 498 | 28 Novembro 2016

Ideias em movimento e o constante repensar Raízes do Brasil

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João Vitor Santos

Luiz Feldman analisa o processo pelo qual esse livro de Sérgio Buarque é submetido. Mais do que uma revisão do autor, na sua perspectiva, a obra passa por uma mutação de ideias

Antonio Candido, autor de um dos mais célebres prefácios de Raízes do Brasil, considera que o livro já nasce clássico. O diplomata Luiz Feldman, que se deteve em estudos sobre a obra, endossa a perspectiva de Candido, mas ressalva: “Raízes do Brasil, tal como o conhecemos, não veio pronto ao mundo. Sempre foi um clássico, mas amadureceu muitos de seus argumentos”. Feldman destaca que, mais do que revisado pelo autor Sérgio Buarque de Holanda, o texto sofre um processo que denomina como uma espécie de “mutação ideológica”. “Desde a edição original, Raízes foi um livro muito complexo”, reitera. E completa: “as mudanças que sofreu aumentaram essa complexidade”. Isso explica, por exemplo, as apropriações que teóricos fazem do conceito de homem cordial, que passa a servir como justificativa pela dura intervenção no regime naquele momento da história, o que acaba forçando Sérgio Buarque a fazer incisões na formulação do conceito.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, o diplomata analisa alguns desses movimentos de Sérgio Buarque. Um deles é a crítica que faz, na primeira edição, à incompreensão da realidade brasileira pela elite política do país que importa doutrinas europeias e norte-americanas que não se encaixam na realidade brasileira. Assim, se aproxima de críticas de teóricos que não viam com bons olhos a tentativa de organizar juridicamente o país segundo princípios de democracia liberal. “Em 1936, Sérgio Buarque denunciava a implantação precoce do liberalismo em um Estado que ainda se devia pautar pela tradição ibérica”, aponta. Entretanto, revê esse ponto e “em 1948, sua crítica volta-se contra o anacronismo de um Estado ibérico, com falsa roupagem liberal, que impede a efetiva democratização da sociedade”.

Luiz Feldman é diplomata e hoje atua na missão do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York. Graduado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas, mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUCRJ, foi professor assistente de Leituras Brasileiras no Instituto Rio Branco. Publicou neste ano o livro Clássico por amadurecimento: estudos sobre Raízes do Brasil (Topbooks: Rio de Janeiro, 2016).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - No que consiste a ideia de mutação ideológica em Raízes do Brasil?

Luiz Feldman - Um dos grandes méritos de Raízes do Brasil foi ter formulado uma indagação muito aguda sobre a realidade brasileira: como o país poderia fundar uma ordem pública e urbana moderna sobre a base de uma tradição privatista e rural? Sérgio Buarque ofereceu duas respostas a essa pergunta. A primeira foi na edição original do livro, em 1936. A segunda, na edição “revista e ampliada” de 1948. A segunda foi a que chegou até os nossos dias, e tornou o livro muito conhecido. A primeira ficou esquecida por várias décadas, e só agora vem sendo resgatada. 

A edição original parte de uma avaliação basicamente positiva da formação ibérica do Brasil. Isso fica evidente na discussão sobre a cordialidade. O “homem cordial” é o produto final da transplantação da cultura ibérica para os trópicos e de sua longa adaptação a condições especificamente brasileiras. Sua característica fundamental é uma emotividade transbordante, que pode ser vista por dois ângulos. Ao mesmo tempo em que tem um desejo irreprimível de estabelecer intimidade com seus pares, o homem cordial tem uma incapacidade congênita de obedecer a normas impessoais. 

A edição de 1936 privilegia o ponto de vista da intimidade, da fraternidade característica do homem cordial, que era vista como uma contribuição original e positiva ao mundo. (Esse argumento talvez seja especialmente compreensível a partir da experiência que Sérgio Buarque teve em Berlim no final dos anos 1920, quando assistiu à emergência do nazismo). A edição de 1948 enfatiza o ponto de vista oposto, dos obstáculos para a criação de um espaço público. 

Essa variação do enfoque histórico gera a mutação da mensagem política do livro. Em 1936, a ideia central era de um “contraponto” entre a cordialidade e a civilidade (definida como aquelas normas impessoais), o que significava, no limite, um Estado capaz de fazer uma composição entre o tradicional e o moderno. Isso podia ser interpretado — e foi — como uma abertura para governos autoritários, embora não para um Estado totalitário. 

Ajuste da mensagem

Em 1948, no entanto, a mensagem é radicalmente alterada. Sérgio Buarque sustenta que apenas uma ruptura com o passado pode levar o Brasil a bom porto. O livro ganha, nessa edição, uma nova passagem em que se lê um pleito contundente pela ascensão das classes populares ao poder. No jogo metafórico, uma “revolução vertical” provocada pela urbanização trará à superfície as camadas inferiores (ou: oprimidas) da sociedade, substituindo as raízes ibéricas, envelhecidas e oligárquicas. Essa dupla mensagem da edição de 1948, de crítica à colonização e defesa da democratização, foi a que se eternizou.

 

IHU On-Line - Holanda refere que a democracia brasileira é construída em cima de um “mal-entendido”. Como compreendê-lo?

Luiz Feldman - A frase célebre de Raízes do Brasil sobre a democracia como um “lamentável mal-entendido” não foi alterada em nenhuma edição da obra. O seu sentido, no entanto, foi consideravelmente afetado pela mudança da mensagem política do livro entre 1936 e 1948.

Na edição original, Sérgio Buarque dirige muito de sua crítica ao que dizia ser a incompreensão da realidade brasileira pela elite política do país. O autor aponta um erro de concepção, iniciado no Império e agravado na República: a importação de doutrinas europeias e norte-americanas que não se ajustavam às nossas tradições cordiais e personalistas. Segue de perto, nesse ponto, os escritos de Alberto Torres  e Oliveira Vianna , fortemente críticos à tentativa de organizar juridicamente o país segundo princípios de democracia liberal que não guardavam qualquer correspondência com os usos e costumes políticos da terra. 

Sérgio Buarque diz de modo claro: é a doutrina política que deve se ajustar ao perfil antropológico da população, e não o contrário. Esse perfil havia sido detalhado na primeira metade de Raízes: além da cordialidade, o personalismo, em que a tendência tipicamente ibérica à anarquia social só podia ser corrigida por governos fortemente centralizados. Sérgio Buarque também advertia contra a importação de doutrinas mais recentes, como as totalitárias, que julgava igualmente inaplicáveis à realidade brasileira. A cordialidade neutralizava a tirania. Essa crítica a todas as opções disponíveis cria um sentimento de indecisão que só é revertido — mesmo assim, parcialmente — no parágrafo final, quando se fala na ideia de contraponto. Embora não descarte totalmente a possibilidade da democracia, Sérgio Buarque não a indica como especialmente provável ou desejável em nossa evolução política.

Mudança de argumento

Na edição de 1948, o argumento muda. A doutrina liberal vinha sendo importada menos por um equívoco do que por deliberação. A desconexão do Estado com o povo no Império e na República é vista como uma forma de preservar a estrutura oligárquica e aristocrática da sociedade. Com a crescente urbanização e o fortalecimento das camadas operárias, o perfil tradicional e rural da população se dilui. Uma nova realidade pede uma nova forma política, que a República ainda não havia conseguido moldar.

Em 1936, Sérgio Buarque denunciava a implantação precoce do liberalismo em um Estado que ainda se devia pautar pela tradição ibérica. Em 1948, sua crítica volta-se contra o anacronismo de um Estado ibérico, com falsa roupagem liberal, que impede a efetiva democratização da sociedade. É esse o significado do “mal-entendido” (quase uma má-fé) após a revisão do livro.

 

IHU On-Line - Como se deu a apropriação dessa obra de Sérgio Buarque pelo Estado Novo?

Luiz Feldman - Sérgio Buarque publicou Raízes do Brasil em outubro de 1936. Em 10 de novembro de 1937 instaurou-se o Estado Novo. Em agosto de 1940 foi lançado, pela editora José Olympio, um livro de Almir de Andrade  intitulado Força, cultura e liberdade: origens históricas e tendências atuais da evolução política do Brasil . Almir de Andrade era um jovem crítico e professor de direito que, de acordo com um depoimento que deu, décadas mais tarde, ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil - CPDOC , foi comissionado pelo diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda da Presidência da República a escrever um estudo sobre o novo regime. Tanto as “origens históricas” quanto as “tendências atuais” mencionadas no subtítulo de seu livro remontam a argumentos de Raízes do Brasil. 

Almir de Andrade cita a grande tese do livro de Sérgio Buarque, a cordialidade, como característica definidora do povo brasileiro. Ressalta sua dimensão política e a eleva a tolerância. Reconhece, ao mesmo tempo, a necessidade de ordem, que deve ser suprida por um governo forte. Chega, então, ao que afirma ser uma doutrina originalmente brasileira do Estado, o equilíbrio entre força e tolerância. Há um paralelo muito próximo entre essa doutrina e a proposta de Sérgio Buarque — verdade que em chave mais ensaística que programática — de um contraponto entre civilidade e cordialidade. 

Defesa do regime

O significado da doutrina proposta por Almir de Andrade fica mais claro no contraste com os escritos de outros ideólogos do Estado Novo, como Francisco Campos  e Azevedo Amaral . De forma muito simplificada, é possível dizer que, entre os três, Almir de Andrade oferecia o caminho — teoricamente — menos violento de justificação do regime. No livro Getúlio Vargas estadista , de Azevedo Amaral, e sobretudo em O Estado nacional , de Campos, há poucos argumentos acerca de tradições nacionais que pudessem mitigar o emprego da violência pelo Estado, como no caso do equilíbrio entre força e tolerância discutido por Almir de Andrade. A proximidade dessa doutrina com a discussão de Raízes do Brasil poderá ter sido uma das razões para as mudanças que Sérgio Buarque fez em sua obra em 1948, três anos depois da queda do Estado Novo. 

 

IHU On-Line - O que as revisões a que Holanda submeteu o texto posteriormente revelam?

Luiz Feldman - Eu chamaria a atenção para o contrário, para o que as revisões apagaram. Um exemplo interessante são os diálogos de Sérgio Buarque com outros pensadores brasileiros da época. Sérgio Buarque tomou de empréstimo a figura do “homem cordial” de Ribeiro Couto , um fato que sempre é lembrado entre os estudiosos, e que o próprio autor reconhece em nota de rodapé do livro. 

Mas é possível ir além e indicar como o conceito de cordialidade, conforme proposto por Sérgio Buarque, surgiu de um diálogo criativo com dois nomes tutelares do pensamento político nacional, Oliveira Vianna e Gilberto Freyre . Ambos reconheciam a centralidade do elemento privatista na formação histórica do país, mas, enquanto Oliveira Vianna, em Populações meridionais do Brasil (1920), enfatizava o obstáculo que isso criava para a construção do Estado, Freyre, em Casa-grande & senzala , celebrava os particularismos pela contribuição cultural que aportavam à sociedade. Essa ambivalência viria a se rebater nas duas dimensões do conceito de cordialidade, ora entendida como estorvo à modernidade, ora como uma proteção contra ela. (Essa última formulação foi elaborada por Angela de Castro Gomes ).

Com a revisão de Raízes do Brasil em 1948, muitas das passagens em que esse diálogo ocorria desaparecem do texto. Muitos anos mais tarde, em 1969, quando Antonio Candido  escreve o prefácio que acompanha o livro até hoje, ele já poderá dizer que Populações meridionais do Brasil tem pouca relação com Raízes do Brasil, e que Casa-grande & senzala tem uma atitude frente ao processo histórico muito diferente da de Raízes. Nos dois casos, essa questão das raízes conceituais da cordialidade recomendaria uma abordagem mais nuançada. 

Clássico que vai amadurecendo

Raízes do Brasil, tal como o conhecemos, não veio pronto ao mundo. Sempre foi um clássico, mas amadureceu muitos de seus argumentos. Desde a edição original, Raízes foi um livro muito complexo, fruto do que o professor Candido certa vez disse ser o admirável senso de contrários de Sérgio Buarque. Mas as mudanças que sofreu aumentaram essa complexidade. Para ficar no exemplo: na edição original, o conceito de cordialidade já tinha uma ambiguidade, digamos, inerente. Com a eliminação de um trecho do quinto capítulo em que a cordialidade era aproximada à tese de Casa-grande & senzala sobre o “equilíbrio de antagonismos”, surge uma nova camada de complexidade para a compreensão do livro. 

Essas e muitas outras dimensões da variação — e também da permanência — de argumentos no livro vêm sendo mais exploradas nos últimos anos. É bom lembrar que o texto original esteve indisponível no mercado por 80 anos, exceção feita aos raros exemplares disponíveis em sebos. A edição crítica de Raízes de Brasil, organizada por Lilia Schwarcz e Pedro Meira Monteiro, publicada pela Companhia das Letras, é uma boa obra que, pela primeira vez, permite ao público leitor o acesso ao texto do livro em todas as suas variações. Creio que isso enriquecerá a reflexão sobre a obra. 

 

IHU On-Line - Como compreender a “Nossa revolução” sobre a qual fala o autor no capítulo final do livro? Quais as questões de fundo presentes nesse texto que podem inspirar a pensar o Brasil de hoje?

Luiz Feldman - O capítulo final de Raízes do Brasil é intitulado, desde a edição original, “Nossa revolução”. Seu propósito é discutir as implicações da desagregação da ordem rural colonial, cujo ápice é a Abolição da escravatura em 1888. Como disse, a solução política oferecida pelo livro varia entre as edições de 1936 e 1948, o que afeta a extensão e a intensidade dessa revolução. A ênfase do argumento passa do “contraponto” para a “revolução”, com a eliminação de trechos que defendiam o papel construtivo da tradição e o acréscimo de passagens que indicam a aceleração do ritmo da urbanização e abrem a perspectiva da ascensão das classes populares ao poder. Paradoxalmente, quanto mais rápidas e profundas as transformações, maior parece ser o obstáculo representado pela tradição ibérica — ou ao menos a impaciência que ele desperta. 

É nesse contexto, aliás, que Raízes do Brasil passaria a ser celebrado como uma obra progressista, defensora da ruptura com o passado. Essa posição, que só surgiu em 1948, seria atribuída por muitos comentadores do livro já à edição de 1936, que assumiu indevidamente, por isso, ares de pioneirismo democrático na antevéspera do Estado Novo.

De modo geral, Sérgio Buarque tinha uma grande desconfiança frente a tentativas de reforma política e de engenharia jurídica que pretendessem fazer tábula rasa da história do país, e nunca apagou do livro as advertências a esse respeito. Sentia que a “nossa revolução” era assombrada pela “grande tradição brasileira”. Nesse ponto, um resenhista da edição original acertou ao dizer que ela era marcada por um “ceticismo sereno”. Era a atitude de Sérgio Buarque ao defender aquele contraponto, paciente mas também prudente, entre a civilidade, que nos moderniza, e a cordialidade, que nos singulariza no concerto das nações.■

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