Edição 488 | 04 Julho 2016

Os saberes de uma Antropologia Integral

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Márcia Junges | Edição João Vitor Santos

Marly Carvalho Soares reconhece a importância da obra de Lima Vaz no seu exercício de apresentar a complexidade dos saberes para o que ela entende como uma Antropologia Integral

A fluidez entre os saberes, o exercício de pensar para “além da caixa” das disciplinas são marcas de Lima Vaz reconhecidas por vários de seus leitores. Para a professora da Universidade Estadual do Ceará – UECE Marly Carvalho Soares, esses são pontos de partida da filosofia vaziana e que se manifestam tacitamente na Antropologia Filosófica. A obra, para a professora, é um bom caminho para conhecer a mergulhar nos escritos de Vaz, isso porque “oferece uma rede de conhecimentos e discursos num diálogo entre os saberes, superando a tentação da fragmentação tão própria do pensamento contemporâneo”. “De forma didática, num labor científico, filosófico-teológico, o autor apresenta a complexidade dos saberes para uma Antropologia Integral e nisso reside a sua importância”, resume Marly.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a professora ainda ressalta que o projeto da Antropologia filosófica quer refletir sobre o ser humano na sua estrutura, a partir de três polos: o universo natural, o universo humano e o Absoluto. “Para Lima Vaz é absolutamente impossível filosofar sem conhecer a história da filosofia, que implica no exercício filosófico de rememoração e reflexão, que justifica na Antropologia Filosófica uma parte histórica que rememora todas as concepções do homem na filosofia ocidental”, completa. Marly, que segue dedicada e inspirada pelo pensamento vaziano, entende que as provocações do autor seguem vivas e pertinentes à realidade de hoje, especificamente no caso do momento do Brasil. “À conjuntura brasileira atual nos desafia a rever e a viver os valores castrados num cotidiano superficial e mau e a tomar consciência de que precisamos fazer valer novamente os valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade, e que as Instituições recuperem a sua identidade de concretizar os direitos e deveres de todos os brasileiros”, analisa.

Marly Carvalho Soares é graduada em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza e em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará - UECE, com especialização em Administração Escolar. Ainda possui graduação em Teologia pelo Instituto de Ciências Religiosas - ICRE, mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, e pós-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, com estágio no Instituto Eric Weil, Universidade Charles de Gaulle, Lille 3, na França. Atualmente é professora da UECE, líder dos Grupos e Laboratórios de Pesquisa: Ética e Direitos Humanos e Um Olhar sobre a Subjetividade Humana. Entre suas publicações recentes está O Filósofo e o político segundo Éric Weil (São Paulo: Edições Loyola, 2015).


Confira a entrevista.


IHU On-Line - Após 25 anos da publicação da Antropologia Filosófica I , qual é a sua atualidade e importância?

Marly Carvalho Soares - Escrever sobre o pensamento de Lima Vaz continua sendo um prazer, um dever e um desafio. Prazer, por se tratar de um trabalho singular, coerente e enriquecedor de conhecimentos e pesquisas devido à imensa bibliografia que nos é ofertada, capaz de incentivar e orientar-nos para além de um “pensamento único” e fragmentado, pois não só rememora a tradição filosófica, mas nos coloca diante da nossa própria realidade. Este é o seu modo de pensar, como bem cita Mac Dowell : “o autêntico pensar não pode consistir num princípio absoluto, mesmo quando exprime essa pretensão, como no caso de Descartes. Ele se enraíza necessariamente no passado, que modela de maneira decisiva o nosso horizonte mental.” (Mac Dowell, p.222, 2012). 

Dever, não só pelo reconhecimento de seu valor intelectual, mas como responsabilidade de mostrar, na modalidade ensino-aprendizagem, às gerações futuras a grandeza do seu esforço de rigor filosófico diante dos apelos das mentes criativas e da realidade social. Desafio, porque exige uma atitude atenta para mergulhar nesse horizonte de perguntas, incertezas, verdades, pesquisas, métodos, oriundo dos seus escritos filosóficos tão solidificados na tradição e na modernidade. Resta-nos, então, guardar este patrimônio material e espiritual divulgando suas ideias, particularmente sua razão filosófica e suas vivências didáticas e pedagógicas.

No presente, como no passado, o interesse pelo estudo da Antropologia se tornou um interesse universal. De tal maneira que os diversos discursos, seja dos existencialistas e estruturalistas, marxistas e tomistas, evolucionistas e espiritualistas, ateus e cristãos, estão todos de acordo em atribuir ao estudo do homem uma importância capital. É como nos escreve Mondin  ao fazer um histórico da natureza, do estatuto epistemológico, do método e das disposições para afrontar o estudo do homem. (B. Mondin, 1983).

Reconhecida a importância e a necessidade da Antropologia, um outro problema é enfrentado, que é a possibilidade de a Antropologia ser considerada como ciência desde quando Kant  questionou, ou melhor, deu valor teórico somente às ciências matemáticas e físicas. O que vai exigir uma reflexão sobre os diversos métodos e as diversas ciências, consideradas “ciências da explicação e ciências da compreensão”, como bem analisou  Dilthey .

 

Antropologia Filosófica de Vaz

A obra Antropologia Filosófica de Lima Vaz marcou profundamente a interpretação e os comentários na atualidade. De forma didática, num labor científico, filosófico-teológico, o autor apresenta a complexidade dos saberes para uma Antropologia Integral e nisso reside a sua importância. Oferece uma rede de conhecimentos e discursos num diálogo entre os saberes, superando a tentação da fragmentação tão própria do pensamento contemporâneo. Este estatuto antropológico está pautado na clareza, na ordem e na exatidão.

Acrescenta-se ainda a imensa bibliografia, notas, citações oferecidas aos leitores. De modo que a temática elaborada por Vaz inspira e abre caminhos para outras pesquisas no terreno dos diversos saberes e, em particular, aponta pistas para a superação do niilismo contemporâneo.


IHU On-Line - Como foi a recepção dessa obra àquela época?

Marly Carvalho Soares - Acredito que esta obra foi acolhida com muita curiosidade e esperança por seus discentes e professores, uma vez que era o texto básico para o curso de Antropologia Filosófica que ministrou no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, de 1968 a 1972, e depois, numa segunda versão, refundida e atualizada como ele mesmo afirma na Apresentação da Obra, intitulada: “Advertência Preliminar” na Faculdade de Filosofia do Centro de Estudos Superiores S. J, de Belo Horizonte, em 1989 e 1990.

O conteúdo e a importância desta obra extrapolaram para além dos muros acadêmicos por sua origem didática, natureza e particularidades da redação do texto. Particularmente fui presenteada pelo autor quando elaborava minha tese de doutorado em 1991 e serviu-me como norte metodológico e esclarecedor de muitos conceitos, categorias, a respeito das ciências da natureza, das ciências do homem e das ciências do espírito. Esse universo de ciências contribuiu para a sua leitura e divulgação.


IHU On-Line - Quais são as temáticas centrais que aborda?

Marly Carvalho Soares - De forma didática, o autor apresenta a grande reflexão englobada nos seus nove volumes na construção do seu “sistema aberto”, como bem mostrou Rubens Godoy Sampaio  na sua obra Metafísica e Modernidade (2006). Inicia-se com a obra Ontologia e História (1968), na qual se encontram as raízes clássicas do seu pensamento, raízes que fecundará todo o seu pensar filosófico, como fecundou o seu último livro, intitulado Raízes da Modernidade (2002). Aqui estão apresentadas as noções da dialética platônica que conduzirá todo o pensamento vaziano nos diversos temas da Ontologia,  do Absoluto, da Teologia, de Transcendência, do Espírito, da Pessoa e do Cristianismo nas ideias inspiradoras de Tomás de Aquino .

Nesta primeira obra encontra-se ainda o tema da História onde se deu o seu encontro com a Modernidade e particularmente com o pensamento de Hegel  enquanto “pensador inaugural”, e não apenas em função da leitura de Marx  como era a moda daquela época nos templos acadêmicos. Era necessário que alguém do porte de Lima Vaz no Brasil, e na França Eric Weil , mergulhasse na profundidade do pensamento hegeliano e descobrisse  a matriz do seu pensar filosófico e seu lugar histórico no universo cultural renunciando a toda crítica da literatura existente, sem a intenção de refutar e corrigir opiniões e leituras superficiais e, também, ideológicas próprias da época.

 

Weil e Vaz

Weil e Vaz  fundamentam-se na Filosofia do Direito e, secundariamente, na Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Fala-nos Weil: “se a sua teoria é justa, a realidade mesma se encarregará de justificá-la. Não se trata de tomar posição, mas de discutir o fundamento racional, de toda e qualquer tomada de posição consciente, responsável, coerente” (Weil, 1950). Esse conjunto de temas e autores vão surgir e alicerçar o conteúdo, a estrutura, a metodologia e a importância da Antropologia Filosófica I e II. De modo que a Antropologia Filosófica corrobora as matrizes teológicas, filosóficas e científicas a respeito  do “ato de existir” do ser humano.

Revisitar a Antropologia filosófica é deparar-se novamente com a questão nunca pronta e resolvida: “o, homem, quem é ele?”. Ideia tão perseguida em todos os tempos e que cada dia mais desafia o nosso horizonte de compreensão. Lima Vaz, ao lado dos demais filósofos e cientistas, envereda nessa aventura, elaborando de forma clara e didática uma Antropologia Integral que encerra todas as manifestações mais significativas do ser humano, utilizando vários métodos que orientam desde a fenomenologia das aparências até o seu ser profundo e no seu destino último.  

Seguiremos os mesmos passos do referido autor, que, na compreensão das partes constituintes do ser do homem, deu-nos a compreensão do todo que queremos, no nosso caso, seria novamente dizer: o que é o homem.

 

Ser-homem

Lima Vaz tece o espaço conceptual no qual se inscreve o ser-homem através das seguintes coordenadas: conceito de “estrutura”; conceito de “relação”; conceito de “unidade”. Essas coordenadas se interligam e se formam seguindo um movimento dialético que parte da ordem do dado para a ordem do conceito. De tal maneira que cada coordenada é demonstrada na sua tríplice inteligibilidade, formando assim um todo coerente e sistemático. Daí que partindo da estrutura do ser homem, mediatizada pelas relações, chegaremos a uma visão unitária do ser humano.

A vertente antropológica se estrutura sobre as categorias da corporeidade, do psíquico e do espírito e as relações de objetividade, intersubjetividade e transcendência. A sua metodologia segue o seguinte procedimento. Inicia-se com a pré-compreensão, que é a experiência natural, a compreensão explicativa, que é o domínio das ciências do homem, seja daquelas que se organizam em torno do polo natureza, seja daquelas que se organizam em torno dos polos do sujeito e da cultura: Ciências hermenêuticas.

No campo das ciências hermenêuticas formulam-se os problemas fundamentais que constituem tradicionalmente o objeto da antropologia filosófica. E, no campo da ética, trataremos das relações que fundamentam o agir pessoal e coletivo do ser humano. Todo esse conteúdo se mantém inseparável do seu método, sintetizado na rememoração histórica, no processo dialético e na plataforma sistemática.


IHU On-Line - Quais as influências de Kant e Hegel nessas reflexões?

Marly Carvalho Soares - Lima Vaz reconhece que, no campo filosófico, a interrogação sobre o homem atinge a sua expressão clássica nas célebres questões kantianas, sintetizadas na pergunta: o que é o homem? Que engloba o “saber”; o “agir e, o esperar”. Mas a partir do século XVIII, com o desenvolvimento das chamadas “ciências do homem” e das “ciências da vida”, ela foi chamada a definir o seu estatuto epistemológico em face dos novos saberes científicos sobre o homem, definindo, assim, ao mesmo tempo, sua relação com os procedimentos metodológicos e com os conteúdos dessas novas ciências.

Daí acarretou uma crise diante desse complexo de saberes que foi analisada, entre outros, por M. Scheler . Essa crise resultou na elaboração de diversas imagens do homem que dominaram a cultura ocidental desde o homem clássico até o homem moderno. Portanto uma visão mais histórica. Por outro lado, na visão metodológica, tornou-se mais complicado devido à fragmentação do objeto da Antropologia Filosófica nas múltiplas ciências do homem.

Diante desse universo problemático, de ciências diferentes, métodos diversos, chegaram a ser definidas duas tendências que se manifestaram em duas correntes: o naturalismo, que reduz o fenômeno humano à natureza material como fonte última de explicação; e o culturalismo, que acentua a originalidade da cultura, separando o cultural do natural, solidificando ainda mais a divisão entre ciências da natureza e ciências do espírito. O desafio posto é encontrar um ponto mediador entre essas duas tendências: natureza e espírito.

 

Polo entre natureza e espírito

A sistemática da Antropologia Filosófica de Lima Vaz vem exatamente mostrar em suas duas seções o ponto mediador desse encontro da natureza e do espírito, que é o polo do sujeito no seu agir individual, social e histórico, por meio do seu método e de sua arquitetônica. Este polo do sujeito se manifesta respectivamente nas estruturas fundamentais: corporalidade, psiquismo e espírito; e nas relações fundamentais constitutivas do ser humano: relação de objetividade, de intersubjetividade e de transcendência, onde se abre às grandes regiões do ser, isto é, o mundo, os outros seres humanos e o transcendente. Trata-se do sujeito como ponto nodal da compreensão filosófica, e creio que esta é uma herança kantiana, pois a filosofia transcendental, como ele a desenvolveu, estabelece o ponto de partida de uma postura filosófica que podemos considerar paradigmática para a filosofia moderna, como bem recorda Manfredo Oliveira  (Oliveira, p. 5, 2012).

 

Perspectiva hegeliana

O legado hegeliano foi assumido inteiramente por Lima Vaz. Mas gostaria de destacar três pontos: o método, a sistemática e o ato de filosofar. Começarei pelo ato de filosofar enquanto reflexão do seu tempo e de nosso tempo, ou seja, a preocupação de elevar o tempo ao conceito, em captar a inteligibilidade do momento tão própria da reflexão hegeliana. Esta preocupação é demonstrada por Hegel em todos seus escritos e, em particular, no prefácio da Filosofia do Direito onde alerta para o ato de filosofar e seu interesse para que todos tenham conhecimento significativo deste ato, “pois a filosofia é a inteligência do presente e do real, não a construção de um além que só Deus sabe onde se encontra ou que, antes todos nós sabemos onde está - no erro, nos raciocínios parciais e vazios”, e acrescenta: “o que é racional é real e o que é real é racional”.

Esta é a convicção de toda a consciência livre de preconceitos e dela parte a filosofia tanto ao considerar o universo espiritual como o universo natural. Depois de ter apreendido o mundo na sua substância, reconstrói na forma de um império de ideias. Não vem a filosofia para rejuvenescer a vida, mas apenas reconhecê-la. O método e a sistemática se cruzam, pois a “sistemática”, enquanto abarca a totalidade do real no seu pensar (Lógica) e no seu manifestar-se: natureza e espírito, exige o método dialético que é a ferramenta que possibilita conectar as partes num “sistema aberto” em busca da verdade. Pois, o verdadeiro é o Todo. A unidade estrutural, relacional e final do ser humano desenvolvidas no discurso da Antropologia Filosófica só pode ser tecida pelo movimento dialético, como tão bem construiu Lima Vaz na sua metodologia e no seu discurso. Parte-se do dado para o conceito.


IHU On-Line - Em que sentido o grande legado vaziano da síntese e da vivência das quatro grandes razões perpassa os dois volumes desse escrito?

Marly Carvalho Soares - Essas razões, como já refleti na entrevista de 2011 , perpassam todo o movimento ascendente num sistema aberto que abrange o homem, o mundo, a pessoa e Deus na sua compreensão filosófica. Em outras palavras, seria a relação entre a História e a Transcendência. Temática marcante do saber filosófico de Lima Vaz. De modo que rememorando esses conteúdos, o nosso pensar é conduzido com um único objetivo: compreender e viver a unidade de oposição entre a essência e existência.

A primazia da essência implicava no processo antigo, ao abandono da existência empírica do  homem à contingência do acaso e a necessidade do destino. A primazia da existência no pensamento cristão-medieval retirava aparentemente do homem o predicado da autárqueia, do livre domínio de si mesmo, suspendendo-o à vontade criadora de Deus como existente Absoluto. Já a ideia de sujeito na filosofia moderna pretende resgatar da contingência e do destino de um lado, e de outro, elevá-lo à dignidade de causa e razão da própria existência do seu ser racional- sujeito.

Porém, Kant não resolveu essa aporia entre o natural e o transcendental. O âmago dessas aporias é ter colocado o sujeito como causa sui suprimindo qualquer comunidade analógica com o Absoluto transcendente. Daí colocando sobre a pessoa humana o enorme peso ontológico de ser a criadora de si mesma e de seu mundo de verdade e de bem, dos valores e dos fins. Esse é o destino problemático da pessoa no horizonte da pós-modernidade. A categoria da pessoa não somente mostra o homem aberto à universalidade do ser, a partir da particularidade da sua atuação corporal no aqui e no agora do mundo, mas mostra-se como o lugar na concretude da sua singularidade onde se entrelaçam as linhas que procedem de todas as regiões do ser: do sensível ao inteligível, do contingente  e do necessário, do possível e do atual, do relativo e do absoluto e, finalmente do universo e de Deus. A unidade dos opostos é assim, ao mesmo tempo, a marca da finitude e a comprovação de que nela se realiza a perfeição mais alta do universo. Este cabedal teórico se concretizou no filosofar e no viver de Lima Vaz pela sua sabedoria e humildade.


IHU On-Line - Quais as inter-relações que Vaz estabelece na “Antropologia Filosófica” com o encontro do universo natural-humano com o Absoluto?

Marly Carvalho Soares - O projeto da Antropologia filosófica tem por objetivo refletir sobre o ser humano na sua estrutura, relação e unidade, articulando os três polos: o universo natural, o universo humano e o Absoluto. Para Lima Vaz é absolutamente impossível filosofar sem conhecer a história da filosofia, que implica no exercício filosófico de rememoração e reflexão, que justifica na Antropologia Filosófica uma parte histórica que rememora todas as concepções do homem na filosofia ocidental. Já na parte sistemática, trata do ser humano na sua estrutura ontológica que compreende a corporeidade, o psíquico e o espírito e as suas relações que se dão através da objetividade, da intersubjetividade e da transcendência culminando com a categoria da pessoa que é a abertura para o absoluto.

O ápice da unidade estrutural do ser humano dá-se exatamente com a categoria do espírito onde o ser-do-homem abre-se necessariamente para a transcendência – isto é, aberto para o outro que é relativo e absoluto.  É a transcendência sobre toda a Faticidade. O homem neste nível se abre enquanto inteligência (nous), à amplitude transcendental da verdade, enquanto liberdade (pneuma), à amplitude transcendental do bem.  Como espírito o homem passa a ser o lugar do acolhimento do Ser, da manifestação do Ser e do consentimento do Ser. O espírito está para além do somático e do psíquico – ele é em si mesmo, atualidade infinita do ser. Portanto, naquele nível, ela está presa ao contingente e só no nível do espírito ela participa do Infinito ou tem gravada no seu ser a marca do infinito. Portanto o homem apresenta-se como um “ser de fronteira” entre o espírito e a matéria. 

A dialética de espírito mostra, pois, que a unidade estrutural corpo – psiquismo - espírito é uma unidade segundo a forma que deve realizar-se na relação dinâmica e ativa do homem com a universalidade universal do ser (Verdadeiro e Bem).  De modo que o percurso dialético vai do somático ao noético pneumático e retorna do noético ao somático.  A circularidade só é possível porque o espírito, estando presente ao fim do percurso, está  presente  no seu início pela função mediadora do sujeito.  Assim está fechado o círculo dialético do espírito ao corpo e do corpo no espírito. 


IHU On-Line - Assim, pode-se dizer que há uma superação da ideia de indivíduo para a ideia de pessoa?  Por quê?

Marly Carvalho Soares - No movimento do pensamento vaziano, há uma interconexão da Antropologia, da Ética e da Metafísica, formando assim uma unidade ontológica na qual o ser humano possa estabelecer uma conexão na sua estrutura, nas suas relações e realizações em busca de uma totalidade que se concretiza na realidade, isto é, na construção de uma nova subjetividade que  no percurso constitutivo vai consolidando o seu caráter de pessoa, enquanto “abertura para o Absoluto”.

Inicia-se no processo lógico com a unidade estrutural: subjetividade em si; mediada pela unidade relacional: a subjetividade para si; e se define como unidade fundamental. Porém, a unidade final só se concretiza na categoria da realização, cuja expressão final se conclui com a categoria da pessoa. A pessoa é esse todo com abertura para o Infinito. O que Lima Vaz traduz como “transcendência real”. Esta análise no seu desenvolvimento pode ser conferida em Soares (p.153, 2007).


IHU On-Line - Qual foi o papel de Lima Vaz na consolidação da Faje  e em uma filosofia brasileira?

Marly Carvalho Soares - Em primeiro lugar quero louvar e agradecer a iniciativa da Faje em criar um “Memorial Lima Vaz”  para recolher e divulgar  todo o patrimônio material e espiritual de Lima Vaz nos seus escritos e pesquisas. Com essa atitude de reconhecimento do cabedal filosófico do nosso autor, daremos continuidade e oportunidade às  futuras gerações de aprofundar e analisar, através de uma reflexão sólida, a tradição filosófica ocidental desde o pensamento clássico até aos albores da contemporaneidade num modo diferente de filosofar, rememorando a tradição e trazendo para o contexto histórico, social da realidade do presente.

Lima Vaz credenciou e consolidou a Faje. Credenciou desde quando no silêncio do seu quarto mergulhava-nos nos diversos temas filosóficos e teológicos divulgando os seus escritos, em eventos, no ensino e na pesquisa no Brasil e no exterior. No Brasil, apresentou-se como mestre de tantas gerações e formador de habilidades didáticas e pedagógicas tão necessário ao mister filosófico e atualmente tão carente no nosso universo profissional, fato mostrado na academia hoje, que suscita conteúdos, atitudes e habilidades na formação dos professores em filosofia.


IHU On-Line - Há cinco anos, a senhora relembrou com grande saudade e gratidão a vivência filosófica e humana com o seu orientador Lima Vaz. Passado esse tempo, que outras maneiras animaram a sua trajetória como pesquisadora, filósofa na conjuntura política e social vivida pelo Brasil?

Marly Carvalho Soares - Encontro-me hoje na encruzilhada da filosofia contemporânea, no “saber Fazer”, dialogando com diversos autores, porém mantendo as matrizes de um pensamento dialético – sistemático e fenomenológico. Estas raízes continuam alimentando o meu pensar atual num diálogo com Kant, Hegel, Eric Weil, Lima Vaz e Edit Stein  nas temáticas: subjetividade, intersubjetividade, Ética, Política e Direito. O modelo dialético sistemático hegeliano permanece como referência do pensar weiliano e do pensar vaziano com matizes diferentes. Cada um no seu horizonte hermenêutico e no seu tempo. Já o pensar steiniano inspira-me com o seu método fenomenológico e sua preocupação em refletir sobre a ontologia do ser feminino no seu ser e no seu agir.

Essas reflexões são iniciadas nos grupos e projetos de estudos e pesquisas na graduação e na pós-graduação da Universidade Estadual do Ceará em parceria com outras universidades. Por outro lado, a conjuntura brasileira atual nos desafia a rever e a viver os valores castrados num cotidiano superficial e mau e a tomar consciência de que precisamos fazer valer novamente os valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade, e que as Instituições recuperem a sua identidade de concretizar os direitos e deveres de todos os brasileiros. O desafio para nós é darmos conteúdos aos nossos princípios, como bem refletiu Adela Cortina  na sua entrevista: “Podemos continuar dizendo que cremos na Declaração dos Direitos Humanos? Ou vamos trair a nossa identidade?” 


IHU On-Line - Você menciona que neste momento estava revendo um projeto acerca de Lima Vaz. Em que consiste esse trabalho e o que a inspira a prosseguir estudando seu pensamento? 

Marly Carvalho Soares - Elaborei novamente um projeto sobre a Antropologia Filosófica I como ponto de interseção da ética e da metafísica e como ponto de partida, uma vez que orienta de forma clara o método do pensamento de Vaz  e, ainda, com o objetivo também de fazê-lo conhecido e estudado por essa nova geração, enquanto filósofo brasileiro reconhecido internacional.

O Grupo de Estudos Vazianos - Gevaz é ligado à Pós-Graduação da Faculdade Jesuíta - Faje. Organizado pelo prof. Delmar Cardoso, objetiva divulgar o pensamento de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Atualmente Gevaz é coordenado pela Profa. Dra. Claudia Maria Rocha de Oliveira (Faje) e se reúne periodicamente, como também promove anualmente o “Colóquio Vaziano” para o intercâmbio de comunicações dos estudiosos vazianos do Brasil. 

O Grupo de Estudos Vazianos iniciou suas atividades em março de 2010, na Faculdade Católica de Fortaleza - FCF sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Celeste de Sousa. No primeiro ano, 2010, o grupo objetivou apresentar o filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz e o seu sistema filosófico. A partir de 2011, filiou-se ao Laboratório de Pesquisa “Um olhar interdisciplinar sobre a Subjetividade Humana” da Universidade Estadual do Ceará – UECE, que tem como coordenadora a Profa. Dra Marly Carvalho Soares e vice-coordenadora a Profa. Dra. Maria Celeste de Sousa. A partir de então o Grupo escolheu duas categorias vazianas para serem aprofundadas: Subjetividade e Intersubjetividade.

O Estudo das categorias Subjetividade e Intersubjetividade têm como propósito possibilitar uma investigação filosófica sobre a problemática antropológica e ética vigente na sociedade contemporânea, por conseguinte Gevaz já possibilitou a produção de 10 monografias na conclusão do Curso de Bacharelado em Filosofia, sendo duas delas publicadas pelo Instituto Humanitas Unisinos. 

Referências em antropologia filosófica 

CARDOSO, Delmar (org.). Pensadores do século XX / São Paulo: Edições Loyola: Paulus, 2012.

 

CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana / tradução Thomás Rosa Bueno – São Paulo: ed. Martins Fontes, 1994.

 

CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica; tradução do Dr. Vicente Felix de Queiroz – São Paulo: editora Mestre Jou.

 

CHARDIN, Teilhard. Mundo, homem e Deus; textos selecionados e comentados por José Luiz Archanjo – São Paulo: Editora Cultrix.

 

DOWELL, João A. Mac. Saber filosófico, história e transcendência: Homenagem ao Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ, em seu 80º aniversário – São Paulo: ed. Loyola, 2002.

 

FERRY, Luc. O que é o ser humano?: sobre os princípios fundamentais da filosofia e da biologia / tradução de Lúcida Mathilde Endlich Orth. – Petrópolis, RJ: ed. Vozes, 2011.

 

FRANGOSO, Emanuel Angelo da Rocha; AQUINO, João Emiliano Fortaleza de; SOARES, Marly Carvalho (organizadores). Ética e Metafísica. Fortaleza: EdUECE, 2007.

 

GALANTINO, Nunzio. Dizer “homem” hoje; novos caminhos da antropologia filosófica / tradução Roque Frangiotti. São Paulo: Paulus, 2003.

 

HEGEL. Princípios da filosofia do direito; Tradução de Orlando Vitorino – editora Martins Fontes. 2º. Edição, Agosto de 1976.

 

KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático / tradução Clélia Aparecida Martins – São Paulo: ed. Iluminuras, 2006.

 

LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos; tradução Mário Vilela – São Paulo: Editora Barcarolla, 2004.

 

MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica / Traduziram R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari. São Paulo: Paulus, 1980.

 

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro; tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya; revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho – 2. Ed – Brasília: UNESCO, 2010.

 

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo; tradução Eliane Lisboa – Porto Alegre: Sulina, 2015.

 

OLIVEIR, Manfredo Araújo. Antropologia filosófica contemporânea: subjetividade e inversão teórica – São Paulo: ed. Paulus, 2012.

 

PAULA, Maria Bernadete Gonçalves de; SOUZA, Luis Carlos Silva de Souza; SOARES, Marly Carvalho. Dialética da subjetividade. Fortaleza: EdUECE, 2007.

 

PUNTEL, Lorenz B. Em Busca do objetivo e do estatuto teórico da filosofia: estudos críticos na perspectiva histórico-filosófica / Tradutor Nélio Schneider – São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010.

 

SAMPAIO, Rubens Godoy. Metafísica e modernidade: método e estrutura, temas e sistema em Henrique Cláudio de Lima Vaz / São Paulo – Edições Loyola: São Paulo, 2006.

 

SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus? / tradução Magda Furtado de Queiroz – São Paulo: Ed. Paulinas, 1995.

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica II – São Paulo: ed. Loyola, 1992.

 

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. A formação do pensamento de Hegel – São Paulo: edições Loyola, 2014.

 

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica I e II/ São Paulo: Loyola, 1991,1992.

 

Leia mais...

- A síntese e a vivência de quatro razões. Entrevista com Marly Carvalho Soares, publicada na revista IHU On-Line, número 374, de 26-09-2011.

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