Edição 488 | 04 Julho 2016

O pensamento conjugado com ação

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Márcia Junges | Edição João Vitor Santos

Delmar Cardoso acredita que o maior desafio de um filósofo é articular o pensamento teórico com a ação concreta de refletir sobre o seu tempo. Para ele, essa foi sempre a busca de Vaz

O que é o exercício de filosofar e qual o papel da Filosofia para compreender o mundo? Não há quem não tenha se prendido a questão como essa que, embora tão primária, traz consigo uma carga pesada no velho confronto entre teoria e prática. O professor doutor em Filosofia Delmar Cardoso, diretor do Departamento de Filosofia e Coordenador da Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje, formula uma frase que não dá a resposta, mas que fomenta um pensamento. "[Filosofia] Não se trata de um mero aumento da bagagem do conhecimento, mas de fazer o esforço da reflexão", diz. Para ele, é no exercício dessa Filosofia que Lima Vaz ancora todo seu trabalho. “A missão do filósofo conjuga pensamento e ação. Vaz foi um daqueles intelectuais brasileiros que, sem entregar-se a modismos e panfletagens oportunistas, se dedicaram a pensar o Brasil como um projeto de povo e nação, baseando-se nos valores da democracia, da educação e da ética”, completa.

Cardoso demonstra que, em sua obra, Vaz busca interpretar e refletir sobre a realidade, mas para isso aciona um pensar para além do instrumental da materialidade na busca por uma satisfação plena da experiência humana. “O centro das pesquisas filosóficas de Henrique Vaz se inscreve naquilo que ficou conhecido como Philosophia Perennis. Isso quer dizer que só a realidade puramente material não satisfaz a experiência humana. O ser humano se confronta com realidades que não se reduzem simplesmente à matéria”, analisa, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E, ao revisitar o trabalho do autor, destaca, ainda, a atualidade do pensamento vaziano. “A filosofia de Henrique Vaz tem um rosto concreto e se mostra um esforço intelectual de compreensão do tempo. E tempo não é só o presente. A atualidade de Vaz está também na investigação histórica, especialmente na história da filosofia. Não há propriamente prognósticos em Lima Vaz, pois a coruja de Minerva não arrisca voos à luz do dia”.

Delmar Cardoso é diretor do Departamento de Filosofia e Coordenador da Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje. Também coordena o Grupo de Estudos Vazianos - GEVaz, na mesma instituição. Possui graduação em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana, graduação em Filosofia pelo Instituto Santo Inácio - Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, mestrado em Filosofia pela Pontificia Università Gregoriana e doutorado em Filosofia pela Pontificia Università San Tommaso D'Aquino. Entre seus livros publicados, destaque para Ética Cristã e Filosofia Clínica (São Paulo: FiloCzar, 2015) e A alma como centro do filosofar de Platão (São Paulo: Loyola, 2006).

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Qual é a importância, a dimensão de Antropologia Filosófica , de Lima Vaz, passados 25 anos de seu lançamento?

Delmar Cardoso - O livro de Henrique Vaz marca o estudo da filosofia no Brasil. Está atualmente na 11ª edição. Tenha-se presente que as primeiras edições tinham uma tiragem de dois mil exemplares e as mais recentes têm uma tiragem de mil. Isso quer dizer que são cerca de 20 mil livros de filosofia espalhados pelo Brasil afora, configurando-se num sucesso não só para o autor e suas pesquisas, mas para os estudos filosóficos como um todo, os quais se têm solidificado a cada dia em nosso país.


IHU On-Line - Qual foi o impacto, a recepção dessa obra àquele tempo? E hoje, qual é a sua importância?

Delmar Cardoso - O livro de Henrique Vaz não veio por acaso, nem resultou de uma estratégia editorial. Nestes dias, a biblioteca da Faje organizou uma exposição sobre a Antropologia Filosófica I e pode-se ver uma apostila sobre o assunto, datada de 1966, em que as grandes linhas da Antropologia já se mostram elencadas. Vaz ensinou a matéria anos a fio, quando trabalhou no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Fafich, da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Também na Faculdade Jesuíta ele ensinou a disciplina Antropologia Filosófica, a qual ocupava e ainda ocupa dois semestres no conjunto das matérias da graduação em Filosofia. Quando o primeiro volume da obra foi lançado em 1991, temos o resultado de quase três décadas de pesquisa e magistério.


IHU On-Line - Poderia recuperar qual é o núcleo da filosofia vaziana e quais são suas obras fundamentais?

Delmar Cardoso - O centro das pesquisas filosóficas de Henrique Vaz se inscreve naquilo que ficou conhecido como Philosophia Perennis. Isso quer dizer que só a realidade puramente material não satisfaz a experiência humana. O ser humano se confronta com realidades que não se reduzem simplesmente à matéria. A primeira delas é o fenômeno da linguagem, mas também podemos pensar na ética e na religião. Todos esses âmbitos do existir humano nos remetem a algo que vai muito além da matéria.

Neste sentido, a filosofia de Lima Vaz tem a ver com a transcendência e faz todo um esforço teórico para compreendê-la, realizando um discurso sobre ela. No entanto, este discurso não se desconecta da história concreta, pois o ser humano é ser histórico. Daí que os textos publicados por ele durante sua vida nos oferecem um vasto campo de trabalho. Ele publicou em vida os sete livros da série Escritos de Filosofia   e mais os dois volumes da Antropologia filosófica.


IHU On-Line - Qual é a atualidade de sua concepção ética e de pessoa?

Delmar Cardoso – A atualidade de Lima Vaz está no seu esforço de, como indica Hegel, elevar o tempo ao conceito. Neste sentido, a filosofia de Henrique Vaz tem um rosto concreto e se mostra um esforço intelectual de compreensão do tempo. E tempo não é só o presente. A atualidade de Vaz está também na investigação histórica, especialmente na história da filosofia, detalhadamente explícita nos seus textos. Não há propriamente prognósticos em Lima Vaz, pois a coruja de Minerva não arrisca voos à luz do dia. Isso será outra ciência, mas não será filosofia. Lima Vaz propõe uma visão da ética e da pessoa totalmente dentro de uma visão filosófica, na qual o ser humano se sabe aberto à transcendência. Mas ele não é um criptoteólogo.


IHU On-Line - Em que medida seus questionamentos e seu diagnóstico sobre a Modernidade seguem inspiradores para a Filosofia?

Delmar Cardoso – Lima Vaz não fala simplesmente em Modernidade, mas em Modernidades. Há, porém, que reconhecer que isso não aparece explicitamente em seus textos. Houve modernidade na antiga Grécia, há diferentes modernidades na Europa do pós-renascimento. Há modernidades entre nós. Para resumir, podemos identificar a Modernidade quando falamos dela no singular como uma espécie de filha ou pelo menos parenta do Iluminismo, cuja pretensão consiste em fazer “das coisas da terra a única história possível”, para citar um escritor. É preciso descobrir que o fechamento — em qualquer âmbito que aconteça — não é caminho para a história humana avançar.


IHU On-Line - Em que medida Lima Vaz recupera a Filosofia como uma forma de vida?

Delmar Cardoso – Hoje a filosofia é encarada apenas como uma profissão ou como uma formação acadêmica. Mas ela não começou assim. A origem da filosofia na antiga Grécia se mostra como uma atitude de busca e investigação que envolve a vida humana como um todo. Assim foi com Tales , com Heráclito , com Parmênides , com Sócrates , com Platão  e com Aristóteles . Não se trata de um mero aumento da bagagem do conhecimento, mas de fazer o esforço da reflexão. Há, sem dúvida, uma causa religiosa no interesse de Lima Vaz pela filosofia — ele recebeu a missão de seus superiores jesuítas de estudar e ensinar filosofia —, mas a filosofia foi para ele uma tarefa de vida.

A missão do filósofo conjuga pensamento e ação. Vaz foi um daqueles intelectuais brasileiros que, sem entregar-se a modismos e panfletagens oportunistas, se dedicaram a pensar o Brasil como um projeto de povo e nação, baseando-se nos valores da democracia, da educação e da ética.


IHU On-Line - Como se deu a atuação de Lima Vaz junto à Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e, depois, junto à Faje? Quais são suas principais contribuições, seu legado a essas duas instituições?

Delmar Cardoso – Vaz atuou na UFMG desde 1964, quando a Fafich  tinha sua sede à Rua Carangola, na região centro-sul de Belo Horizonte. No ano em que a Fafich se transferiu para o campus da Pampulha, ele se aposentou da UFMG (1986). O ambiente da Fafich da Rua Carangola funcionou como um ethos a favorecer em Vaz o cultivo de duradouras amizades com professores e alunos, mas foi, sobretudo, um lugar de trabalho filosófico: cursos, seminários, palestras, debates fizeram parte do seu dia a dia na Fafich.

Vaz foi um ator importante na implementação da pós-graduação em Filosofia da Fafich em 1974, considerada hoje entre as melhores do Brasil. Quanto à sua atuação na Faje, foi sempre muito discreta, mas de grande eficácia. Desde 1975, ele voltou a participar plenamente dos rumos da formação jesuítica, quando a faculdade de filosofia passou a funcionar no Rio de Janeiro, e teve papel ativo no processo que culminou na instalação, em 1982, em Belo Horizonte, disso  que  chamamos hoje Faje, concebido para ser um centro de excelência em filosofia e teologia.


IHU On-Line - Qual é a importância de Lima Vaz na formação jesuítica até os nossos dias?

Delmar Cardoso – É próprio do jesuíta ser um missionário. Um dos primeiros jesuítas, o padre Jerônimo Nadal , dizia: “o mundo é nossa casa”. A importância do padre Vaz para a formação dos jesuítas está no seu pensamento aberto e sólido, que vai às fontes do conhecimento, com o objetivo de formar uma síntese pessoal. Vaz tem um compromisso com estudo. Ele recebeu a missão de ensinar filosofia aos estudantes jesuítas em 1953 e permaneceu nesta missão até 1963, retomando-a novamente a partir de 1975 até sua morte em 2002.  Para ele, o estudo é trabalho. Porém, um trabalho que não o aliena da realidade, mas o lança nela mesma, entendendo-a como missão, pois “o mundo é nossa casa”.


IHU On-Line - O que há de novidades no Memorial desde 2011, quando o senhor mencionou o trabalho coordenado pelo Prof. Dr.  João Mac Dowell e no Grupo de Estudos Vazianos – GEVaz?

Delmar Cardoso – Uma novidade é o segundo volume da coleção “Obra filosófica inédita de Henrique Cláudio de Lima Vaz”, sob o título A formação do pensamento de Hegel (São Paulo: Loyola, 2014). O site do Memorial Padre Vaz  foi totalmente refeito e relançado neste primeiro semestre de 2016. O site é um instrumento para quem quiser conhecer a obra filosófica de Lima Vaz, disponibilizando aos internautas também manuscritos e áudios de Lima Vaz. No site, cada item do memorial conta com uma descrição, facilitando o trabalho do pesquisador interessado em conhecer a obra filosófica de Henrique Vaz. Vale a pena conferir. 


IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Delmar Cardoso - É bom lembrar que Lima Vaz é tema de estudos em nível de graduação e pós-graduação não só na Faje, mas em outras instituições do Brasil. Mas é uma pena que seus textos ficaram praticamente restritos aos confins geográficos do Brasil.■

 

Leia mais...

- Lima Vaz, um trabalhador da filosofia. Entrevista com Delmar Cardoso, publicada na revista IHU On-Line, número 374, de 26-09-2011.

- A alma como centro do filosofar de Platão. Entrevista com Delmar Cardoso, publicada na revista IHU On-Line, número 207, de 04-12-2006.

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