Edição 488 | 04 Julho 2016

Intersecção entre metafísica e ética em Lima Vaz

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Márcia Junges | Edição João Vitor Santos

A Antropologia Filosófica, para Carlos Drawin, condensa o exato ponto de cruzamento entre metafísica e ética nos escritos do autor

Pesquisadores que analisam os escritos de Lima Vaz destacam sempre a atualidade de sua obra, bem como o seu exaustivo exercício de pensar a Filosofia para o seu tempo presente, num mundo real. Assim, em meio ao estado de crises em que vive o Brasil, é quase inevitável trazer o autor para reflexões acerca desse tempo. É esse movimento que faz o psicólogo e filósofo Carlos Roberto Drawin, que foi aluno de Vaz e destaca a extrema erudição e simplicidade do professor, ao pensar em ética. “A palavra ‘ética’ tornou-se banal em nosso tempo. Todos os grupos e segmentos da sociedade a reivindicam e não há quem se diga contrário à ‘ética’. Ao mesmo tempo, estamos mergulhados numa crise ética sem precedentes, porque já não partilhamos as mesmas crenças e a visão historicista dominante que difundiu o relativismo moral”, diagnostica.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, ainda elabora que “o relativismo moral muitas vezes é apresentado como apanágio da democracia, porém convive com a lógica férrea da globalização econômica e tecnológica. A consciência da liberdade individual se exacerba numa época de crescente coerção”. Assim, à luz da Antropologia Filosófica, entende que “a racionalidade lógica e operacional que ganhou primazia no mundo moderno não poderia arrostar tal crise porque a sua hegemonia é uma das causas desta mesma crise”. Por isso, acredita que só outro tipo de racionalidade será capaz “de resistir à absorção da transcendência na imanência do sujeito”. É assim que insere a razão metafísica, como fomento para alimentar a ideia de ética. “A ética requer, portanto, a metafísica”, conclui.

Carlos Roberto Drawin é graduado em Psicologia e bacharel em Filosofia, e mestre e doutor em Filosofia, todos pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Até 2010, quando se aposentou, foi professor do programa de pós-graduação em Filosofia da UFMG. Lecionou na UFMG diversas disciplinas nas áreas de psicanálise e filosofia, dedicando-se a pesquisar a interface psicanálise/filosofia. Atualmente é professor titular da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje e membro titular do colegiado do curso de pós-graduação em Filosofia. Entre os livros que publicou está Destinos da religião na contemporaneidade: um diálogo com a psicanálise, a filosofia e as ciências da religião (Curitiba: Editora CRV, 2015).

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Quais são as proposições fundamentais, a estrutura de Antropologia Filosófica, de Lima Vaz?

Carlos Roberto Drawin - A Antropologia Filosófica de Lima Vaz foi publicada em dois volumes (1991; 1992)  dividida em duas partes. Na primeira parte, o autor refez o itinerário das concepções do homem no pensamento ocidental.  Na segunda parte, ele expõe o sistema das categorias antropológicas abrangendo as estruturas e as relações fundamentais do ser humano, bem como a sua unidade. Não obstante, a rememoração histórica, apesar de seu conteúdo bem resumido, não pode ser minimizada e não figura na obra como um ornamento de erudição, mas se encontra intimamente articulada com a exposição das categorias fundamentais do sistema antropológico, pois cada uma delas é pensada à luz da aporética histórica que acompanha o seu desdobramento no tempo.

Ao contrário dos saberes científicos, a filosofia não pode prescindir da sua própria história, como testemunha a obra de Lima Vaz desde o seu início, quando ele, recém-chegado de seu doutorado em Roma, obtido na Pontifícia Universidade Gregoriana e professor na Faculdade de Filosofia em Nova Friburgo, publicou em 1954 “Itinerário da ontologia clássica”, um extraordinário artigo iniciado com as seguintes palavras: “nossa reflexão apresenta-se como uma indagação sobre a formação histórica do conceito de ontologia, ou ciência do ser (...) a reflexão filosófica, bem o sabemos, verifica por excelência a lei de todo pensamento autêntico: ela é progressiva e criadora”.  A “formação histórica” mostra-se essencial não só para compreendermos a nossa forma contemporânea de pensar, mas também para resgatarmos os aspectos esquecidos ou recalcados daquilo que já foi pensado no passado e poderia ressurgir como preciosa fonte de renovação do presente.     

Por outro lado, a história não é um fluxo caótico de acontecimentos e ideias apenas extrinsecamente ordenados. A rememoração possibilita “des-cobrir” os elementos conceptuais presentes na autocompreensão do ser humano acerca de si mesmo de modo a apreender o sistema categorial por meio do qual o sujeito afirma um aspecto fundamental do seu ser e se propõe responder à pergunta “o que é o homem?”. 

 

Dimensões na antropologia vaziana

A profunda interpenetração entre as dimensões histórica e sistemática da antropologia vaziana se explicita em sua estrutura metódica com a distinção dos três níveis de conhecimento: a pré-compreensão, a compreensão explicativa e a compreensão filosófica. O método em toda sua sutileza e complexidade não pode ser desenvolvido; o seu significado estratégico, porém, pode ser facilmente apreendido: sem o concurso da pré-compreensão, a experiência viva do homem acerca de si mesmo ou da compreensão explicativa, a contribuição das teorias científicas acerca do fenômeno humano, o discurso filosófico pode facilmente resvalar na abstração e no formalismo.

A pré-compreensão sem as mediações da ciência e da filosofia pode mergulhar na ingenuidade e no subjetivismo. A compreensão explicativa, nível onde convergem as teorias científicas, tende à reificação das formas abstratas distanciadas da vida e da reflexão e a reduzir o homem em sua totalidade ao viés específico de seus procedimentos de subjetivação. Três perigos que a antropologia vaziana se propõe a contornar: o abstracionismo filosófico, o subjetivismo da vivência e o reducionismo científico. Em nosso mundo marcado pela hegemonia tecnocientífica, o risco mais evidente é o do reducionismo: a instauração da genética, das neurociências ou da economia como instâncias privilegiadas para a explicação do homem em sua essência.


IHU On-Line - Qual é a ontologia que subjaz a essa estrutura?

Carlos Roberto Drawin - No artigo de 1954, anteriormente citado — “Itinerário da ontologia clássica” —, Lima Vaz distingue a “ciência do ser” de todo outro tipo de saber científico. Se a ontologia é a ciência do ser, então o ser e o pensar estão indissoluvelmente ligados e, portanto, não há nenhum tipo de saber, inclusive as ciências ditas positivas, carente de pressuposição ontológica. Afinal de contas, todo conhecimento possui uma estrutura judicativa e o juízo contém implicitamente a afirmação do ser na simples fórmula do “S é p”. 

As ciências, no entanto, recortam metodologicamente a realidade de modo a demarcar um campo específico de objetividade e com este procedimento abdicam de intencionar a totalidade das coisas. O discurso filosófico não dispõe de tal recurso justamente por visar toda a realidade e também, por conseguinte, o seu fundamento, a unidade ou o princípio que reúne e dá inteligibilidade das coisas e dos acontecimentos, ou seja, eleva a multiplicidade da experiência à unidade da ciência. Não há filosofia sem ontologia. Certamente podemos interditar tal pretensão como desmedida e limitarmos o labor filosófico à leitura e exegese dos textos consagrados pela tradição ou considerá-la como mera elucidação dos procedimentos desta ou daquela ciência, como uma espécie de metalinguagem das ciências positivas consideradas como conhecimento efetivo da realidade. Mas se todo conhecimento traz consigo uma ontologia implícita, então haverá sempre algum lugar no universo discursivo em que o implícito possa explicitar-se, ainda que não queiramos designar tal explicitação como ontologia ou, simplesmente, como filosofia. O pensamento de Lima Vaz não padece de tais inibições e ao assumir-se como filosófico ele se explicita reflexivamente em sua orientação ontológica ou metafísica.

 

Resposta antropológica

A interrogação antropológica será respondida pelo conjunto das categorias que determinam a sua essência: o corpo próprio, o psiquismo e o espírito enquanto estruturas fundamentais; a objetividade, a intersubjetividade e a transcendência enquanto relações fundamentais; a realização e a pessoa como expressão de sua unidade fundamental. Ora, as categorias são as determinações essenciais do ser humano e nenhuma delas pode faltar numa conceptualização filosófica abrangente, senão ao preço de algum tipo de redução da complexidade humana em suas múltiplas dimensões.

Todavia, o conjunto de todas estas categorias não esgota o ser humano uma vez que no movimento de sua autocompreensão ele se afirma ultrapassando cada uma delas. Por isso, no final de cada uma das categorias nos deparamos com a tensão dialética entre a afirmação e a negação, entre o princípio de limitação eidética que afirma o que ele é — eu sou corpo, eu sou psiquismo, eu sou espírito — e o princípio de ilimitação tética — eu não sou corpo, eu não sou psiquismo, eu não sou espírito — que impulsiona o discurso antropológico para um horizonte de totalização e de permanente abertura e inacabamento. Por quê? Porque o homem em sua autocompreensão somente se afirma se transcendendo, pois em seus atos espirituais, em sua inteligência e sua liberdade ele se revela como Eu transcendental, como sujeito ontológico. Como escreve Lima Vaz: “A vida do espírito enquanto inteligência tem, pois, como sua operação suprema a contemplação (nóesis ou theoría), ou seja, o acolhimento do ser; e enquanto liberdade tem como sua operação suprema o amor desinteressado (ágape), ou seja, o dom ao ser.” A vida do espírito revela, portanto, a íntima inter-relação entre o homem e o ser, entre a antropologia e a ontologia.  


IHU On-Line - Como o problema clássico da essência “o que é o homem” surge nessa obra?

Carlos Roberto Drawin - Contra a dispersão do fenômeno humano na multiplicidade dos objetos das Ciências do Homem, a antropologia vaziana reafirma a legitimidade da pergunta clássica acerca da essência do homem como o ser que compreende reflexivamente todas as suas determinações objetivas. A resposta à pergunta clássica encontra-se no sistema categorial que define o homem em seu ser e o faz pela mediação do sujeito que constitui a si mesmo “na passagem incessante do dado ao significado”. Os dados provenientes da experiência da vida em múltiplas culturas e produzidos pelas teorias científicas em suas diversas disciplinas e ramificações são assimilados pelo sujeito que se expressa a partir deles por meio de linguagens mais ou menos elaboradas, por meio dos conceitos científicos e das categorias filosóficas.

No entanto, não há nenhuma forma absoluta de expressão, nem as teorias científicas e nem o discurso filosófico em sua máxima abrangência esgotam a tensão que habita o sujeito no permanente esforço de mediação de si mesmo, não há como resolver a “oposição entre o categorial e o transcendental ou entre o finito e o infinito presente no próprio coração do eidos da pessoa”. Essa tensão brota da própria unidade do homem enquanto pessoa, enquanto se mostra como unitas oppositorum e não pode ser resolvida no plano imanente do discurso filosófico, e da sucessão das categorias que determina a resposta que o homem põe a si mesmo acerca de sua essência.

O discurso antropológico não se fecha como sistema, o sujeito não pode ser enclausurado em nenhum tipo de conceptualização imanente, pois em seu dinamismo pessoal “o sujeito rompe a limitação eidética da sua finitude e da sua situação, abrindo-se à infinitude intencional do ser e tendo a orientar o dinamismo mais profundo da sua autorrealização o alvo da união final, pela contemplação e pelo amor, com a infinitude real do Existente absoluto (Ipsum esse subsistens)”. Vê-se, portanto, como na antropologia de Lima Vaz o problema clássico da essência, embora acolhido, é profundamente transfigurado pelo impacto da revelação bíblica como força geradora de razão.    


IHU On-Line - Por que essa obra continua atual e desafiadora nos debates filosóficos? 

Carlos Roberto Drawin - As respostas às questões anteriores não dão sequer uma pálida e enevoada imagem da obra profunda e original de Lima Vaz. A exigência metódica e sistemática, a amplitude da erudição, a orientação metafísica, a linguagem jamais hermética, mas extraordinariamente densa das exposições e, não menos importante, a identidade cristã do autor foram desde sempre formidáveis escolhos para a sua recepção e merecida difusão. Não obstante tais dificuldades, o tempo da filosofia flui de maneira lenta e penetrante, contornando quer as efervescências da moda, quer as interdições das crenças dominantes. Aos poucos, vão sendo publicados artigos e livros sobre a obra de Lima Vaz. E muito ainda há para ser estudado e compreendido e muito ainda há para ser publicado: os manuscritos inéditos de seus cursos, conferências e anotações pessoais e a série de textos que compõem os Manuscritos Hegelianos, cujo primeiro volume foi recentemente publicado (2014). O acervo encontra-se reunido e classificado no “Memorial Padre Vaz” da Biblioteca Padre Vaz, da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - Faje de Belo Horizonte, ao qual os pesquisadores têm acesso por meio do site  que foi preparado pelo Prof. Rubens Godoy Sampaio . (Cf. Pe. João A. Mac Dowell, coordenador da Obra Filosófica Inédita de Henrique Cláudio de Lima Vaz, na “Apresentação” de “A formação do pensamento de Hegel”). 

Por todas as razões acima expostas, a obra de Lima Vaz permanece atual e desafiadora. Mas dois aspectos devem ser ressaltados. A comunidade filosófica brasileira, em decorrência da implantação dos cursos de pós-graduação, de sua extraordinária expansão e organização nas últimas décadas, alcançou um elevado nível de competência e maturidade intelectual. Apesar desses avanços notáveis, há sempre o risco de a comunidade filosófica, mimetizando o ethos das ciências “duras”, se fragmentar em guetos de especialistas voltados para os seus próprios interesses e alheios aos problemas contemporâneos.

A obra de Lima Vaz, em que pese o seu imenso lastro de leituras, realizadas ao longo de muitos anos de estudo e recolhimento, confronta os desafios culturais, éticos e políticos postos pelo mundo. Em sua obra a leitura dos textos não nos ensimesma na erudição, nos faz pensar e não cala a perplexidade dos tempos. Por outro lado, numa época que se quer pós-metafísica e pós-cristã, o pensamento vaziano reivindica e conflui essas duas fontes da tradição ocidental — a inteligibilidade da metafísica platônica e aristotélica e a intellectus fidei propiciada pela revelação bíblica — numa crítica lúcida, serena e não menos contundente de nossa modernidade.

Por isso, a sua leitura permanece instigante e eminentemente contemporânea, pois a ela se aplica a observação de Giorgio Agamben : “a contemporaneidade... é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela” (Cf. G. Agamben. O que é o contemporâneo? e outros ensaios).


IHU On-Line - Por que a Antropologia Filosófica se situa em uma intersecção entre a Metafísica e a Ética?

Carlos Roberto Drawin - A palavra “ética” tornou-se banal em nosso tempo. Todos os grupos e segmentos da sociedade a reivindicam e não há que se diga contrário à “ética”. Ao mesmo tempo, estamos mergulhados numa crise ética sem precedentes, porque já não partilhamos as mesmas crenças e a visão historicista dominante difundiu o relativismo moral. Acreditamos que cada povo e cada época têm seus costumes, valores e leis e até mesmo os grupos e os indivíduos devem se afirmar em suas convicções específicas. Resta-nos como valor certa tolerância misturada à indiferença em relação aos outros.

O relativismo moral muitas vezes é apresentado como apanágio da democracia, porém convive com a lógica férrea da globalização econômica e tecnológica. A consciência da liberdade individual se exacerba numa época de crescente coerção sistêmica e esta contradição seria “resolvida” por meio da expectativa de máxima satisfação das necessidades e carências dos indivíduos.

Por isso, num artigo notável de 1995 (Ética e razão moderna) Lima Vaz afirmou: “Não é, pois, no terreno da produção dos bens materiais e da satisfação das necessidades vitais que a crise profunda se delineia. É no terreno das razões de viver e dos fins capazes de dar sentido à aventura humana sobre a terra. Em sua a crise da civilização num futuro que já se anuncia no nosso presente, não será uma crise do ter, mas uma crise do ser. Será um conflito dramático não apenas nas consciências individuais, mas igualmente na consciência social entre sentido e não-sentido”.

 

Uma outra razão, para além da racionalidade

Ora, a racionalidade lógica e operacional que ganhou primazia no mundo moderno não poderia arrostar tal crise porque a sua hegemonia é uma das causas desta mesma crise. Somente um outro tipo de racionalidade, a razão metafísica,  capaz de resistir à absorção da transcendência na imanência do sujeito, poderia prover de um fundamento a “ciência do ethos” e reconhecer na liberdade humana, condição última de possibilidade da vida moral, um signo desta mesma transcendência. Por isso, o artigo se encerra com a afirmação de Robert Spaemann  “não há ética sem metafísica”, mesma afirmação com que concluiu a sua ética sistemática. A ética requer, portanto, a metafísica. Ora, o predicado da liberdade que distingue a pessoa moral e só pode ser reconhecido pela razão metafísica não é mais do que “a interpretação ética da categoria de pessoa” apresentada como ponto nodal no qual se entrelaçam todas as categorias antropológicas. Vemos, então, como se amarram sistematicamente a Antropologia, a Ética e a Metafísica.


IHU On-Line - Como se apresenta nessa obra a passagem dialética do homem de sua forma “dada” à expressão do seu ser?

Carlos Roberto Drawin - Como já foi antes observado, o método exposto na antropologia entrecruza os momentos epistêmicos do discurso — a pré-compreensão, a compreensão explicativa e a compreensão filosófica — com os momentos estruturais do discurso — natureza, sujeito e forma. Cada categoria filosófica é construída por meio da suprassunção dialética dos níveis epistêmicos logicamente precedentes. Em cada nível o dado provido pela experiência ordinária ou pela experimentação científica é mediado pelo sujeito numa forma que é a sua expressão mais ou menos elaborada. Na compreensão filosófica, o sujeito de todas as mediações, empíricas e abstratas, se expressa em seu ser de sujeito, ou seja, em seu estatuto ontológico. No entanto, a expressão do ser do sujeito também é mediada, o que abre a essência finita homem para a infinitude do ser.  


IHU On-Line - Como eram as aulas de Lima Vaz, as quais o senhor assistiu como aluno? O que recorda de suas reflexões acerca da temática da Antropologia Filosófica?

Carlos Roberto Drawin - Eu tive o privilégio de assistir diversas conferências e seguir diversos cursos do Padre Vaz. Os cursos de Ética, de Filosofia da natureza e de Antropologia Filosófica, bem como alguns dos que versaram sobre a obra kantiana e hegeliana. Nele sempre me impressionou o contraste entre a extrema simplicidade do homem e sua cativante bonomia e a amplidão de seu conhecimento e envergadura de pensamento. Ao contrário de seus textos, muitas vezes difíceis, as suas aulas eram simples e sem arroubos retóricos. Falava fluentemente e às vezes consultava o seu caderno de anotações no qual havia na página direita os esquemas teóricos e na página esquerda as referências bibliográficas.

Como já foi dito de Hegel , durante suas aulas era possível perceber em sua ampla fronte os pequenos sulcos produzidos pela concentração do pensamento. Eu era muito jovem e a presença intelectual dele me deslumbrava, mas confesso, apesar da grande clareza das exposições, que muita coisa eu não conseguia entender. Eu estava empolgado demais pelos modismos filosóficos da época para acompanhá-lo na profundidade de suas reflexões. Foi o que ocorreu com a Ética e com a Antropologia Filosófica. Aos poucos, com o passar dos anos e o esforço da leitura de seus textos, fui descobrindo o alcance crítico e sistemático de sua obra.


IHU On-Line - A partir do legado vaziano, em que medida se pode falar numa filosofia da pessoa? Quais seriam as suas formas de afirmação e perspectivas?

Carlos Roberto Drawin - O termo “pessoa” caiu em desuso no nosso atual universo intelectual e muitas vezes é encarado como índice de um humanismo ingênuo incapaz de dar conta das múltiplas determinações que atravessam o sujeito humano e que foram desveladas pelas Ciências Humanas. Estas desacreditaram as ideias de identidade e unidade do ser humano e a própria concepção da existência de “algo” como uma essência do homem. Não há uma totalidade que se possa denominar “homem”, mas somente estruturas linguísticas, econômicas, simbólicas.

No final de sua “arqueologia das ciências humanas” , Michel Foucault  fez o célebre anúncio de seu desaparecimento: “O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim” e se as disposições que o fizeram surgir se desvanecessem também “o homem se desvaneceria, como à beira do mar um rosto de areia”. Por conseguinte, a noção de pessoa sobreviveria apenas como um resíduo do antigo humanismo filosófico, um desses destroços do naufrágio da tradição que ainda são visíveis nas margens do pensamento.

No universo ateológico, em que nós vivemos o ostracismo da noção de pessoa parece evidente justamente porque o emaranhado de suas múltiplas raízes encontrou a sua seiva vital no chão da teologia e o seu nascimento conceitual se deu “no terreno de encontro entre o logos bíblico-cristão e o logos grego”. Ao colocar a noção de pessoa no centro de sua Antropologia Filosófica, Lima Vaz não apenas se distancia da evidência contemporânea, mas a coloca no lugar de uma instância crítica na época da entronização do indivíduo como homo psychologicus.   


IHU On-Line - Após 25 anos de seu lançamento, o que a Antropologia Filosófica de Vaz tem a dizer a nós no momento político e social que atravessamos no Brasil? 

Carlos Roberto Drawin - Vivemos em nosso país numa época sombria. A gritaria nas redes sociais, o ruído ensurdecedor dos interesses em conflito, a desfaçatez com que a mídia e a casta política invocam continuamente a ética não podem ocultar a profunda crise espiritual em que nos mergulhamos. Já com Platão, um de seus pontos culminantes, a filosofia se colocou como “uma interpelação crítica da cultura e uma restituição ontológica de sua inteligibilidade essencial”. Se desacreditarmos desta possibilidade, a política deixará de ser a busca do bem comum para converter-se na certeza da violência, num rastro de “som e fúria”. 

Na “Advertência Preliminar” ao segundo volume de seus “Escritos filosóficos” Lima Vaz relembra a indagação fundamental que animava a sua reflexão: “uma civilização que celebra a Razão, mas abandona a Metafísica e a Ética é semelhante, para lembrar uma comparação de Hegel, a um templo sem altar; que outro destino lhe resta senão o de tornar-se uma spelunca latronum (Mt 21,13)? Deveríamos, pois, nos espantar com o triste quadro que hoje testemunhamos em nosso país?


IHU On-Line - Em que medida a afirmação da pessoa, ao invés do indivíduo, serve como inspiração para a resistência em nosso tempo? 

Carlos Roberto Drawin - O indivíduo é um prisioneiro de sua particularidade e fácil presa de nossa inclinação comum para o egoísmo. Por isso, ele vive numa situação paradoxal: quanto mais se empenha na busca de si mesmo, mais se deixa enredar pela insensatez de uma sociedade devorada pela necessidade de reproduzir incessantemente a sua vida material. A noção de pessoa, como singularidade encarnada e abertura aos outros e ao Outro, pode abrir um pequeno sulco de resistência no pensamento.


IHU On-Line - Como razão e liberdade se inter-relacionam no pensamento de Vaz?

Carlos Roberto Drawin - Como já foi dito na resposta à segunda questão, Razão e liberdade não são duas grandezas díspares a serem depois articuladas. São duas faces da mesma vida do espírito: a Razão como o acolhimento do ser em sua inteligibilidade e a liberdade como doação ao ser por meio do amor, como atração pela própria amabilidade do ser. A destituição do espírito traz consigo essa dupla negação: a da Razão e a da Liberdade. 


IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Carlos Roberto Drawin - Resta-me evocar com emoção a sua presença inesquecível, agora reiterada na fecundidade de sua obra. Resta-me agradecer pelo imenso privilégio de tê-lo conhecido e fruído um pouco de sua generosa sabedoria. ■

 

Leia mais...

- Um mestre. Entrevista com Carlos Roberto Drawin, publicada na revista IHU On-Line número 394, de 28-05-2012.

- A mística “sopra onde quer”. Entrevista com Carlos Roberto Drawin, publicada na revista IHU On-Line número 435, de 16-12-2013.

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