Edição 488 | 04 Julho 2016

Uma Antropologia Filosófica que se eleva à Metafísica

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Márcia Junges

Compreensão do ser humano na reflexão vaziana se dá através dos polos epistemológicos Natureza, Sujeito e Forma, tributários à Enciclopédia de 1830. Antropologia que se eleva à Metafísica é caracterizada por um pensamento filosófico de abrangência sistêmica

“Creio que Lima Vaz ofereceu importante contribuição à Filosofia expondo a organização sistemática das categorias filosóficas que expressam o processo real e total da autoconstituição do ser humano como sujeito”, reflete o filósofo Marcelo Fernandes de Aquino, SJ, reitor da Unisinos, na entrevista que concedeu à IHU On-Line por e-mail. “Contrariamente ao modo de fazer Filosofia consagrado no Brasil, caracterizado por um conhecimento verticalizado de um determinado autor, Pe. Lima Vaz desenvolveu um pensamento filosófico com abrangência sistêmica”, completa. Em seu ponto de vista, celebrar os 25 anos de publicação da Antropologia Filosófica “serve para fazer a memória desse insigne cristão e democrata que amava profundamente o Brasil”.

A compreensão vaziana do ser humano através dos polos epistemológicos Natureza, Sujeito e Forma “constituem o silogismo especulativo da Antropologia Filosófica. Penso que esse encadeamento dialético entre Natureza e Forma mediado pelo Sujeito se inspire no segundo silogismo da arquitetônica do Espírito Absoluto exposto por Hegel na Enciclopédia de 1830”, acrescenta Aquino.

“Lima Vaz diz que o discurso é a ação de dar ou negar razão (lógon didónai) de algo ou de alguém por parte de um sujeito. Ordem e sistema são duas categorias de extração metafísica que ele, fundindo-as, agrega à ação discursiva. Cabe lembrar a procedência platônica e aristotélica da categoria ordem (táxis) com sua respectiva assimilação agostiniana e tomásica, e a raiz moderna renascimental, ou seja, suareziana, da transformação da metafísica em sistema, própria da razão hipotético-dedutiva”, completa. 

Marcelo Fernandes de Aquino é graduado em Filosofia pela Pontifícia Faculdade Aloisianum, Itália, com especialização em Filosofia na Hoschschule für Philosophie, em Munique, Alemanha. É graduado e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, e mestre e doutor em Filosofia pela mesma universidade. Pós-doutor em Filosofia pelo Boston College, Estados Unidos, foi reitor do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, MG. Atualmente é o reitor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. 

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Quais são as suas observações preliminares sobre a Antropologia Filosófica vaziana?

Marcelo Fernandes de Aquino - Pe. Lima Vaz publicou em 1991, ou seja, há 25 anos, o primeiro volume de sua Antropologia Filosófica sob o número 15 da prestigiosa coleção Filosofia da Editora Loyola. O segundo volume, anunciado na Advertência Preliminar do primeiro volume, seguiu-se já em 1992, sob o número 22 das mesmas coleção e Editora.

Sua primeira versão consistiu em texto básico para o curso de Antropologia Filosófica que ele ministrou de 1968 a 1972 no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Uma segunda versão, refundida e atualizada, seguiu-se como texto básico para o curso de Antropologia Filosófica que ministrou em 1989 e 1990 na Faculdade de Filosofia do Centro de Estudos Superiores S.J. de Belo Horizonte. Os traços dessa origem didática na estrutura e na redação da obra, reforçada pela abundância das notas ao final de cada capítulo, são explicitamente reconhecidos por ele. 

Seus dois volumes, juntos, compõem parte histórica e parte sistemática, distribuídas a parte histórica e a primeira seção da parte sistemática no primeiro volume, e a segunda e terceira seções da sistemática aparecendo no segundo volume. A ampla exposição da parte histórica que ocupa metade do primeiro volume fez com que a primeira seção sistemática que dá início à exposição das categorias da Antropologia Filosófica tivesse que ser condensada, o que não é o caso da exposição das categorias feita no segundo volume.

 

Ideia unitária do ser humano

A parte histórica tem por foco a história das concepções do ser humano na filosofia ocidental. Lima Vaz mostra uma sucessão de modelos conceptuais com que a nossa tradição filosófica exprimiu sua reflexão sobre o ser humano. Subdivide-se nas concepções clássica, medieval, moderna e contemporânea do ser humano. Cada uma delas é acompanhada por ricas notas em que, frequentemente, Lima Vaz aprofunda a exposição do texto principal. 

A parte sistemática é precedida por importante preâmbulo intitulado “Objeto e método da Antropologia Filosófica”, em que Lima Vaz traça vários roteiros metodológicos cuja pretensão é a de que a Antropologia Filosófica venha a configurar uma ideia unitária do ser humano. Cada um deles é orientado por um procedimento epistemológico fundamental inspirado na ciência considerada a mais apta a fornecer uma explicação global do ser humano. São eles: método empírico-formal das ciências da natureza, método dialético das ciências da história, método fenomenológico das ciências do psiquismo, método hermenêutico das ciências da cultura e método ontológico da Antropologia clássica.


IHU On-Line - Qual a proposta de Lima Vaz para expressar a compreensão do ser humano?

Marcelo Fernandes de Aquino - A compreensão do ser humano na reflexão vaziana se define pelos polos epistemológicos Natureza, Sujeito e Forma, que constituem o silogismo especulativo N S F da Antropologia Filosófica. Penso que esse encadeamento dialético entre Natureza e Forma mediado pelo Sujeito se inspire no segundo silogismo da arquitetônica do Espírito Absoluto exposto por Hegel  na Enciclopédia de 1830. Cabe ao procedimento sistemático fundamental da Antropologia Filosófica coordenar esses três polos, sem que a ordem sistemática do discurso se desequilibre em favor de um deles, pois quando um destes polos passa a ser privilegiado e a determinar uma direção própria na ordem do discurso da compreensão do ser humano corre-se o risco de um certo reducionismo. Lima Vaz mostra uma genuína preocupação teórica com o equilíbrio desses polos epistemológicos na ordem sistemática do discurso da Antropologia Filosófica.


IHU On-Line - Poderia aprofundar algumas chaves hermenêuticas do pensamento antropológico-filosófico vaziano?

Marcelo Fernandes de Aquino - Penso que o sintagma ordem sistemática do discurso é um bom ponto de partida para a discussão. Lima Vaz diz que o discurso é a ação de dar ou negar razão (lógon didónai) de algo ou de alguém por parte de um sujeito. Ordem e sistema são duas categorias de extração metafísica que ele, fundindo-as, agrega à ação discursiva. Cabe lembrar a procedência platônica e aristotélica da categoria ordem (táxis) com sua respectiva assimilação agostiniana e tomásica, e a raiz moderna renascimental, ou seja, suareziana , da transformação da metafísica em sistema, própria da razão hipotético-dedutiva. 

Essa ordem sistemática do discurso percorre roteiro dialético desdobrado em duas chaves interpretativas. A primeira corresponde ao nível da inteligibilidade para-nós. Procede segundo a seriação das categorias e das regiões categoriais onde vigora a lei da negação dialética, ou Aufhebung  (suprassunção segundo a terminologia de Paulo Menezes ). A segunda corresponde ao nível da inteligibilidade em-si. Acompanha os níveis conceptuais que exprimem os princípios primeiros constitutivos do ser, essência e existência... É oportuno sugerir certa inspiração dos estudos eruditos de Joseph Gauvin  sobre a Fenomenologia do Espírito  nessa dialética do para-nós e do em-si no pensamento vaziano.

 

Dilemas metafísicos

A Antropologia Filosófica de Lima Vaz se ergue sobre seu longo labor filosófico de memória do Ser em plena expansão planetária da civilização científico-tecnológica, expressão dessa transformação da Metafísica em sistema. Em outras palavras, a Antropologia Filosófica vaziana se eleva à Metafísica. O quadro referencial teórico vaziano de um sistema aberto estabelecido a partir da crítica às pretensões hegemônicas da razão hipotético-dedutiva permite o procedimento metódico e a organização sistemática fundamentais do discurso vaziano sobre o ser humano. 

O desiquilíbrio entre os polos epistemológicos Natureza, Sujeito e Forma na compreensão do ser humano nos discursos contemporâneos da Antropologia Filosófica deve-se ao déficit metafísico da cultura resultante da transformação da razão greco-cristã em cálculo raciocinante que, por sua vez, engendra o mito da práxis absoluta na Modernidade tardia. Ou seja, a cultura contemporânea mostra-se avessa a experimentar os dilemas metafísicos fundamentais — o ser e o nada, o uno e o múltiplo, o ser e o poder-ser, o ser e o dever-ser, o ser e o devir — como dilemas existenciais que acompanham nosso modo de ser-no-mundo-com-os-outros na mediação da linguagem e abertos à plenitude de inteligibilidade do próton noetón. 

 

Discurso com ordem sistemática

Em seu procedimento metódico e em sua organização sistemática, a Antropologia Filosófica vaziana leva em conta três níveis de conhecimento do ser humano: a) a pré-compreensão; b) a compreensão explicativa; c) a compreensão filosófica. No primeiro caso, o objeto do discurso sistemático da Antropologia Filosófica, o ser humano, é também sujeito. Forma uma compreensão natural e espontânea de si mesmo segundo a qual modela uma imagem de si mesmo pela tradição cultural em que se insere e pelo estilo de vida que adota. No segundo caso, adota os cânones metodológicos das ciências do homem, compreendendo o ser humano por meio de explicações científicas. No terceiro caso, expressa intelectualmente a experiência original que o ser humano faz de si com categorias propriamente filosóficas. Segundo Lima Vaz, a tarefa da Antropologia Filosófica é identificar essas categorias, definir seu conteúdo e articulá-las de modo a que se constitua com elas um discurso com uma ordem sistemática.


IHU On-Line - Qual é o alcance teórico que os polos epistemológicos Natureza, Sujeito, Forma têm na ordem do discurso sistemático da Antropologia Filosófica vaziana?

Marcelo Fernandes de Aquino - Lima Vaz propõe-se evitar o escolho tanto do essencialismo estático de uma substância que permanece imóvel sob suas propriedades, como do puro dinamismo de uma existência sem sujeito. No primeiro caso, penso tratar-se de crítica à neoescolástica oitocentesca e sua leitura de Tomás de Aquino  sob regência de certa Lógica do entendimento. No segundo caso se trataria de certo perspectivismo relativístico contemporâneo. Para tanto, desde o nível da pré-compreensão, seu foco é a manifestação concreta do ser humano como movimento dialético de passagem do dado à expressão, ou da Natureza à Forma. 

Lima Vaz distingue, por um lado, o sujeito lógico das proposições da Antropologia Filosófica que é o sujeito como totalidade do movimento de passagem da Natureza à Forma, e que responde à interrogação o que é o ser humano? Por outro lado, o sujeito que exerce uma função ontológica, isto é, o sujeito como Eu propriamente dito que medeia a Natureza e a Forma, isto é, articula a lógica do ser da subjetividade, e que é o ser próprio do ser humano, momento mediador desse movimento dialético que se deixa representar pelo esquema, ou melhor, pelo silogismo especulativo N S F. Esse movimento dialético é o da constituição progressiva do ser humano, que é identicamente o movimento da sua autoexpressão. Em poucas palavras, o ser humano é expressividade. Penso que o sintagma ordem sistemática do discurso antropológico-filosófico vaziano corresponda equioriginariamente ao silogismo N S F.


IHU On-Line - Lembrando essa distinção entre o “lógico” e o “ontológico”, cabe perguntar: qual a Lógica com que Lima Vaz faz seu discurso antropológico-filosófico sistematicamente ordenado?

Marcelo Fernandes de Aquino - Antes de mais nada, é preciso elucidar a estrutura da conceptualização filosófica empregada por Lima Vaz na Antropologia Filosófica. Em outras palavras, elucidar o processo metodologicamente ordenado de construção das categorias. Entende-se por categorias os conceitos fundamentais que são articulados no discurso filosófico. Além disso, cabe levar em conta as peculiaridades da originalidade da experiência que o ser humano faz de si mesmo como ser capaz de dar, ou não, razão de si mesmo. Essa experiência filosófica tem sua dificuldade própria, pois seu objeto é o sujeito da experiência. Além disso, acrescentem-se as dificuldades provindas da pluralidade cultural da pré-compreensão na cultura contemporânea e da multiplicação das ciências do homem que sugerem a imagem de um ser humano pluriversal.

Nessa análise do saber acontece complexa confluência de influências de Aristóteles , Tomás de Aquino  e Hegel na constituição da Denkform vaziana que busca organizar sistematicamente o saber de si mesmo — o dar razão de si mesmo — que é constitutivo do ser humano enquanto humano. Como tal não se limita objetivamente a uma esfera apenas de manifestação do ser humano — caso das ciências humanas —, mas deve exprimir, no nível da conceptualização filosófica, o processo real e total do seu autoconstituir-se como sujeito. Creio que Lima Vaz ofereceu importante contribuição à Filosofia expondo a organização sistemática das categorias filosóficas que expressam o processo real e total da autoconstituição do ser humano como sujeito.

 

Função ontológica e estrutura dialética

O problema do sujeito na pré-compreensão, na compreensão explicativa das ciências do homem e na compreensão filosófica da Antropologia Filosófica consiste na elucidação dessa mediação subjetiva. O sujeito considerado em sua função ontológica é constituído por uma estrutura dialética. Seu ser se exprime mediante Lógica dialética estruturada como movimento de suprassunção da Natureza na Forma, do mundo das coisas no mundo do sentido, pela mediação do Sujeito no sentido estrito de sua subjetividade ou da sua egoidade. Seria interessante desenvolver a seguinte hipótese de trabalho: teria Lima Vaz em sua maturidade concebido a Metafísica como Lógica dialético-especulativa? 


IHU On-Line - Poderia aprofundar o processo de conceptualização filosófica percorrido por Lima Vaz, antes de continuar a questão da Lógica dialética?

Marcelo Fernandes de Aquino - Lima Vaz acompanha a análise aristotélica do saber, constituída por objeto, conceito e discurso. O primeiro momento, ou seja, a determinação do objeto é um momento aporético, isto é, a problematização do objeto tanto do ponto de vista histórico, como do ponto de vista crítico. No primeiro caso, trata-se de recuperação ou rememoração (anámnesis, Erinnerung) que pertence intrinsecamente à estrutura da conceptualização filosófica conforme ensinam Platão, Aristóteles e Hegel, entre outros. No segundo caso, trata-se de referir o contexto problemático da pergunta pelo saber do ser humano sobre si mesmo, como se apresenta na atualidade da pré-compreensão e da compreensão explicativa. Consta de dois passos: momento eidético e momento tético. No primeiro, se levam em conta os elementos conceptuais que emergem da pergunta, seja a partir dos momentos antecedentes, seja a partir das conclusões das ciências humanas. No segundo, a pergunta é referida à mediação do sujeito enquanto sujeito, isto é, a uma expressão determinada de autossignificação do seu ser.

 

Elaboração da categoria

O segundo momento da conceptualização filosófica é a elaboração da categoria. Do ponto de vista do movimento dialético que conduz à elaboração da categoria, esta constitui o nível do concreto conceptual, ou da mediação ontológica, suprassumindo o concreto empírico da pré-compreensão e o momento abstrato da compreensão explicativa. Partindo da situação do sujeito empírico e passando pelo modelo do sujeito abstrato, a elaboração da categoria alcança o nível do conceito ontológico, que é o sujeito do discurso sobre o ser humano, ou dialética, que é propriamente o discurso da Antropologia Filosófica.

 

Discurso dialético

O terceiro momento, finalmente, é a dialética que se define como discurso da Antropologia Filosófica. O discurso dialético supõe sempre uma relação de oposição entre seus termos e de suprassunção progressiva dos termos, o que constitui a ordem do discurso. Seus princípios são três. A limitação eidética é exigida pelo caráter não intuitivo do conhecimento intelectual, ao qual impõe a necessidade de exprimir o objeto na forma do conceito que delimita uma região de objetividade e não coincide, por definição, com uma intuição totalizante do objeto. A ilimitação tética decorre do dinamismo do nosso conhecimento intelectual que aponta para a ilimitação ou infinidade do ser e, portanto, vai além de todo horizonte do objeto na sua limitação eidética. 

Ao introduzir a negatividade no seio da limitação eidética dá origem à oposição entre as categorias que leva adiante o movimento dialético do discurso. Penso que aqui confluem, por um lado, a doutrina tomásica do juízo em sua versão elaborada por Maréchal , e, por outro lado, a leitura vaziana da Fenomenologia do Espírito de Hegel. A totalização mantém o princípio da ilimitação tética apontada para o horizonte último do ser. Segundo essa, o movimento dialético do discurso deve ter como alvo a igualdade inteligível entre o objeto e o ser, deve organizar-se em sistema de categorias.


IHU On-Line - Voltando à Lógica, como se dá a estruturação lógico-dialética da Antropologia Filosófica?

Marcelo Fernandes de Aquino - Na concepção vaziana do ser humano como expressividade, o sujeito é pensado como movimento incessante de mediação entre o ser que é simplesmente e o ser que se significa, seja no plano da sua estrutura (ser-em-si), seja no plano das suas relações (ser-para-outro).  As categorias corpo próprio, psiquismo e espírito, por um lado, e objetividade, intersubjetividade e transcendência, por outro lado, são formas ou expressões dialeticamente opostas, respectivamente, das regiões categoriais do ser-em-si e do ser-para-outro do sujeito ontológico. 

No domínio das categorias espírito e transcendência, o discurso dialético apresenta uma curva que manifesta uma singularidade na ordem sistemática do discurso antropológico-filosófico vaziano. A singularidade consiste na ruptura da univocidade do discurso pela irrupção, no conteúdo da categoria, de uma realidade que só pode ser pensada analogicamente: a realidade do espírito, e do termo ad quem da relação de transcendência. Trata-se da ruptura da finitude categorial pela infinitude transcendental. A dialética que rege o discurso da Antropologia Filosófica conhece, no domínio das categorias espírito e transcendência, uma inversão no que diz respeito à aplicação da limitação eidética e da ilimitação tética ao dinamismo do Eu sou. 

Apesar de Lima Vaz falar de uma inversão, penso ser mais adequado falar de uma inversão da inversão do vetor intencional próprio da Metafísica da subjetividade direcionado para o Eu cognoscente. A partir dessa inversão da inversão levada a cabo pela que alhures chamou de modernidade moderna, ele dá um passo para frente em sua reflexão, avançando para além de uma concepção de sistema fechado de matriz hipotético-dedutiva. Sua concepção de sistema aberto leva-o a falar da plenitude de inteligibilidade do próton noetón ou sentido radical, que para Lima Vaz é o Absoluto pessoal, Deus, para o qual se dirige o vetor intencional do conhecimento humano.

 

“O outro de mim mesmo”

Mediante a dialética da identidade e da diferença, Lima Vaz desenha e articula inter e transcategorialmente a cadeia ordenada de mediações anteriores pelas quais o ser humano se exprime como estrutura e relações: da mediação com que o sujeito se exprimiu como Eu corporal na forma de corpo próprio, à mediação com que se exprimiu como Eu espiritual na forma da relação de transcendência. Essa é uma cadeia ordenada, cujos elos se articulam na dupla direção da inteligibilidade para-nós e da inteligibilidade em-si.

O discurso alcança outro patamar de inteligibilidade com a unificação no ser humano das formas da sua autoexpressão na dialética da ipseidade (identidade da sua presença a si mesmo) e alteridade (sua diferença do outro do qual se distingue, mas com o qual necessariamente se relaciona como finito e situado). A ipseidade definindo-o como ser-para-si, e a alteridade como ser-para-outro. Em ambas o outro está presente tanto como em-si, ou o lugar ontológico da situação e da finitude do ser humano, e ao qual ele está necessariamente referido, quanto na constituição do para-si da sua estrutura ou nas formas para-o-outro do seu ser relativo. Vale lembrar que na ontologia dialética de Hegel “eu sou o outro de mim mesmo”.

 

Tangenciamento entre Antropologia Filosófica e Ética

A passagem às categorias de unidade, que deverão levar o discurso a seu termo na categoria de pessoa, resulta do movimento dialético que conduz o discurso de compreender a categoria de transcendência, sob a regência da inversão da limitação eidética e da ilimitação tética.  Essa inversão permitirá a síntese das categorias de estrutura e relações.

A essência do ser humano, no domínio do ser-em-si da estrutura e do ser-para-outro da relação, assegura a unidade indivisa do seu ser e a distinção que o faz ser entre os seres. No domínio do ser-para-si propriamente dito, isto é, da sua reflexividade essencial desenrola-se o movimento da autorrealização que se exprime na sua autoafirmação como sujeito. A categoria de realização assinala a entrada da dialética que rege o discurso no domínio da existência propriamente dita, operando a síntese dinâmica entre as categorias de estrutura e de relação. O ser-em-si da estrutura e o ser-para-outro da relação são suprassumidos no ser-para-si da realização na conquista, pelo sujeito, da unidade profunda que ele é como essência, mas que deve tornar-se como existência. Nesse nível do discurso, a Antropologia Filosófica e a Ética se tangenciam.

 

Inspiração platônica

A formulação do problema da realização do ser humano diz respeito à oposição primordial entre ser e devir, que penetra no âmago da constituição ontológica do ser humano. No discurso antropológico-filosófico, ela se formula como oposição entre a primazia a ser atribuída à essência ou à existência, à natureza ou à condição, à estrutura ou à situação. A realização se mostra, portanto, como passagem do ser que é ao ser que se torna ele mesmo pela negação dialética do outro no ativo relacionar-se com ele, o que implica a suprassunção do outro no desdobrar-se da unidade fundamental. Aqui Lima Vaz se inspira na dialética platônica do mesmo e do outro, do repouso e do movimento no seu entrelaçamento no ser para a formação da mais elementar rede conceptual para compreender filosoficamente a realização humana.

No domínio da categoria da realização humana, a dialética que rege o discurso da Antropologia Filosófica conhece inversão análoga à que se manifestara nas categorias de espírito e de transcendência no que diz respeito à aplicação dos princípios de limitação eidética e de ilimitação tética ao dinamismo do Eu sou. Graças à racionalidade analógica, o discurso vaziano transgride os limites eidéticos da categoria traçados segundo a finitude e a situação do sujeito. A racionalidade analógica refere o conteúdo do eidos da realização humana ao absoluto da Verdade, do Bem e da Existência. Nessa referência, o vetor ontológico da ilimitação tética que tem origem no sujeito e extremidade na infinitude intencional do ser-mais como horizonte do seu fazer (operar poiético) e do seu agir (operar prático), vê no horizonte da teoria (operar teórico), invertido o seu sentido na acepção de que a ponta extrema do movimento da realização humana na ordem da teoria não procede da posição (thésis) do Eu sou ou do seu dinamismo imanente. É posta pelo Absoluto ao qual o sujeito constitutivamente se refere (relação de transcendência) nos atos supremos do existir humano: conhecer a Verdade, consentir ao Bem, reconhecer no Absoluto de existência a fonte primeira da Verdade e do Bem. 

 

Primazia da inteligibilidade em-si do sujeito

Com a submissão da categoria de realização ao princípio da totalização, a ordem sistemática do discurso antropológico-filosófico vaziano chega ao limiar da afirmação da igualdade inteligível entre o sujeito (o Eu no movimento da sua automanifestação) e o ser (manifestado na ordem das categorias encadeadas pelo discurso). Lima Vaz afirma essa igualdade inteligível na categoria de pessoa que restitui a primazia da inteligibilidade em-si do sujeito (o sujeito afirmado como ser) que ao longo do discurso se desdobrara como inteligibilidade para-nós. A inteligibilidade em-si tornou possível o discurso. Agora se mostra como seu verdadeiro princípio, tendo demonstrado dialeticamente seu fim.


IHU On-Line - A exposição das categorias antropológico-filosóficas alcança seu cerne inteligível com a categoria da pessoa? 

Marcelo Fernandes de Aquino - Certamente. Com a categoria de pessoa o discurso da Antropologia Filosófica alcança seu termo. Ela se mostra como síntese dos momentos eidéticos percorridos pelo movimento dialético e, igualmente, como o alvo apontado pelos momentos da ilimitação tética que fizeram avançar o movimento. Ela é a expressão acabada do Eu sou. Responde à interrogação inicial “que é o homem?” tendo sido estabelecida por Lima Vaz como a identidade mediatizada pela sequência das categorias entre sujeito e pessoa. 

A pessoa é a expressão adequada com a qual o sujeito ou o Eu se exprime e se diz a si mesmo. Na ordem da inteligibilidade para-nós, isto é, considerada na sua expressão categorial como síntese ou fecho do discurso dialético, ela é um resultado. Na ordem da inteligibilidade em-si, ela é a origem inteligível de todo discurso e, como tal, começo absoluto, que se faz presente, surgindo na sua radical originariedade, em toda afirmação e em toda invocação do sujeito. 

Como princípio, a pessoa se põe absolutamente na raiz inteligível da afirmação Eu sou que percorre todo o discurso antropológico como mediação pela qual o ser humano se significa e se unifica segundo os diversos aspectos do seu ser. Como fim, a pessoa, suprassumindo a oposição entre essência e existência ou entre estrutura e relações de um lado, e realização de outro, mostra-se como a unidade que se realiza existencialmente entre o em-si da estrutura e o para-outro da relação. É um em-si que é tal no seu abrir-se para o outro.


IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algo?

Marcelo Fernandes de Aquino - Contrariamente ao modo de fazer Filosofia consagrado no Brasil, caracterizado por um conhecimento verticalizado de um determinado autor, Pe. Lima Vaz desenvolveu um pensamento filosófico com abrangência sistêmica. Ele foi aluno do Pe. Roser , que o introduziu no pensamento científico da Mecânica Relativística e da Mecânica Quântica. Conhecia as fontes da história do Brasil como poucos, tinha sensibilidade para a literatura, conhecendo muita poesia grega, latina, brasileira, seguia as tramas da economia e da política e, como poucos, conhecia as fontes da Filosofia. Seus cadernos mostram que no estudo de um determinado autor, digamos Hegel, ele recuperava a escritura palimpsesta que subjazia no trecho da Ciência da Lógica ou da Fenomenologia que estivesse lendo. A celebração dos 25 anos de publicação da sua Antropologia Filosófica serve para fazer a memória desse insigne cristão e democrata que amava profundamente o Brasil.

 

Leia mais...

- A experiência inaciana e o caminho espiritual de Bergoglio. Publicada na IHU On-Line 465, de 18-05-2015. 

- Será a humanidade absorvida pelo mundo dos objetos, hoje virtuais? Uma pergunta que não cala. Publicada na IHU On-Line 374, de 26-09-2011. 

- A pós-metafísica e a narrativa de Deus. Publicada na IHU On-Line 308, de 14-09-2009. 

- Liberdade, necessitarismo e ética em Hegel. Publicada na IHU On-Line 217, de 30-04-2007. 

- A religião como fato cultural passa a ser apenas objeto da filosofia. Publicada na IHU On-Line 245, de 26-11-2007. 

- Os arranjos colaborativos e complementares de ensino, pesquisa e extensão na educação superior brasileira e sua contribuição para um projeto de sociedade sustentável no Brasil. Cadernos IHU ideias - 187ª edição.

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