Edição 479 | 21 Dezembro 2015

O desejo mimético, o bode expiatório e o espírito competidor: traços da antropologia humana

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Márcia Junges e Patricia Fachin | Tradução Vanise Dresch

“A revelação cristã bem entendida oferece, em realidade, a única resposta verdadeiramente adequada ao problema da violência”, frisa o teólogo Dominique Janthial

“Se a humanidade toma consciência de sua radical fragilidade no ser e se essa tomada de consciência desencadeia o desejo mimético (“querer ser como...”), então a única maneira de desativar a bomba mimética e de preservar a humanidade de todas as suas consequências mortíferas é outra tomada de consciência, aquela do oficial romano na cruz: ‘Realmente este homem era o Filho de Deus’ (Mc 15,39). Se, realmente, esse resto da humanidade que é Jesus na cruz é... (Filho de Deus), então mais ninguém precisa tentar ‘ser como... Deus’ (Gn 3,5)”, destaca Dominique Janthial na entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ao analisar os dois conceitos centrais da obra de René Girard: o desejo mimético e o bode expiatório. 

Ao comentar a atualidade desses conceitos na contemporaneidade, Janthial chama a atenção para a expressão “choque das civilizações”, utilizada para tentar explicar ou justificar os conflitos entre o Ocidente e o Oriente, a qual compreende como “uma ilusão”. Ele explica: “Pois, de um lado, a sociedade ocidental pena para se construir como civilização sobre os escombros do cristianismo, dado que se recusa a deixar operar, em seu seio, um modelo social que se imporia de forma restritiva para todos. E, do outro lado, os islamitas, apesar de todos os seus esforços ridículos visando distinguir-se dos Ocidentais, mostram apenas uma coisa, ou seja, que fazem definitivamente parte desta sociedade ocidental que afirmam rejeitar. ‘O ódio pelo Ocidente e por tudo aquilo que representa não vem do fato de que o (seu) espírito seja realmente estrangeiro... mas de que o espírito competidor lhes é tanto familiar como o é para nós’”.

Dominique Janthial nasceu em Paris, foi ordenado sacerdote e fez mestrado em Estudos Judeus no Instituto Católico de Paris. É PhD em Escrituras no Instituto de Estudos Teológicos (IET) em Bruxelas, desde 2001. De suas publicações, citamos sua tese L’oracle de Nathan et l’unité du livre d’Isaïe (Berlin-New-York: De Gruyter, 2004) e Apocalypse: ce qui doit être engendré bientôt (Paris: Édition de l'Emmanuel, 2012) . Desde 2004 é professor associado no IET. 

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line - Qual é o maior legado teórico de René Girard?

Dominique Janthial - O legado intelectual de René Girard se resume em duas teorias que são interdependentes uma da outra: a teoria do desejo mimético e a do bode expiatório. Enquanto tal, o empreendimento girardiano “permanece uma das raras hipóteses antropológicas que tenta explicar os fenômenos culturais e sociais voltando a suas origens” , .

O “desejo mimético”, primeiramente: Girard constata que o humano aparece com a imitação. Emprega-se a expressão “macaquear”, mas seria melhor dizer “bancar o humano”, pois os humanos são extraordinariamente mais imitadores do que seus primos distantes. Ora, essa propensão à imitação, destaca Girard, não se limita a imitar gestos, mais fundamentalmente, imita desejos . Trata-se da experiência clássica de dois bebês em um mesmo quarto com apenas dois brinquedos rigorosamente idênticos: se uma das crianças toma a iniciativa de se dirigir para um brinquedo em especial, a outra vai sistematicamente buscar o mesmo. 

É fácil compreender que essa propensão inerente ao ser humano pode se tornar fonte de uma violência que a sociedade terá de administrar posteriormente. Se toda a população de uma cidade se interessar por um bairro específico, ela não chegará necessariamente às vias de fato, mas os preços aumentam e há excluídos. Outra consequência, se todos imitarem todos, as pessoas acabam por se parecer cada vez mais, as diferenças estruturais se diluem e as relações de autoridade pervertem-se, até o ponto em que a sociedade inteira tende a se desestruturar. É o que Girard chama de crise de indiferenciação marcada pelo ciúme, pela proliferação dos duplos e, com certeza, a violência que, de acordo com a maneira pela qual Hobbes caracteriza o estado de natureza, se torna progressivamente guerra “de todos contra todos” .

Aqui entra a segunda intuição maior de Girard. Intuição que ele se empenhou em demonstrar de forma científica em algumas obras, dentre as quais a primeira foi La violence et le sacré [A violência e o sagrado]. Examinando os mitos e as culturas primitivas, ele demonstra que a resolução desta “guerra de todos contra todos” passa pela designação de uma vítima contra a qual o consenso se forma. Essa vítima é designada como responsável pela crise que afeta o grupo humano, pois ela se tornou culpada de transgressões tão graves que destruíram os próprios fundamentos da ordem social e mesmo cósmica. Assim, por exemplo, “a peste”, por detrás da qual se encontra uma designação metafórica da crise de indiferenciação, atinge a cidade de Tebas porque Édipo  se tornou culpado de parricídio e de incesto. A acusação da vítima e seu linchamento fazem com que a “guerra de todos contra todos” se transforme em guerra de “todos contra um”, permitindo assim reconstituir a unidade do grupo humano. Evidentemente, as acusações contra o bode expiatório são parcial ou totalmente falsas. De qualquer forma, é certo que não pode ser responsável pela “peste” em si: uma contraverdade está, portanto, na origem da ordem social. Contudo, como o linchamento produz efetivamente a cura do corpo social e o retorno da paz, a responsabilidade da vítima parecer ser confirmada, e o desconhecimento se instala. 

A vítima na origem do milagre

Após seu linchamento, a vítima que está na origem do milagre do retorno à ordem se torna um ídolo tanto maléfico (ela causou a “peste”!) quanto benéfico, pois é graças a ela que o grupo humano foi resgatado de seu furor autodestrutivo. Sobre seu cadáver se constrói toda a ordem social e religiosa. Os mitos contam o milagre, mas do ponto de vista do desconhecimento: a execução da vítima possibilitou o fim do flagelo, pois ela era responsável por isso. Os ritos visam, por sua vez, reproduzir da forma mais próxima possível o evento para perpetuar seus efeitos benéficos: assim foram instituídos os sacrifícios. A ordem social está, portanto, fundada no horror provocado pelo linchamento e que os ritos religiosos imitam. Quem transgredir as regras estabelecidas pode vir a sofrer a mesma sorte da vítima expiatória. O esquema de base da coesão social se torna, assim, a exclusão com base sacral, seu corolário sendo o medo e a vergonha no coração humano. 

 

IHU On-Line - Quem são as grandes influências teológicas e filosóficas desse pensador?

Dominique Janthial - Parece-me que os primeiros mestres de Girard não foram nem teólogos nem filósofos, mas os grandes escritores da literatura mundial cujas obras ele esquadrinhou. Isso levou ao magnífico estudo de literatura comparada publicado com o título Mensonge romantique et vérité romanesque [Mentira romântica e verdade romanesca]. Trata-se destes finos conhecedores da alma humana que são Dante , Cervantes , Shakespeare , Stendhal , Dostoiévski , Proust , Camus ... Sobretudo Shakespeare, o qual lhe permitiu relacionar os dois aspectos de sua teoria antropológica quando da descoberta, na primeira tragédia do grande autor inglês, Júlio César, da ilustração da morte fundadora de toda uma sociedade, o Império Romano no caso, como monarquia sagrada. Essa descoberta será tema de uma obra inteira: Shakespeare, les feux de l’envie [Shakespeare, os fogos da inveja] e Girard revelará: “Toda a teoria mimética está presente em Shakespeare sob uma forma tão explícita que, cada vez que penso nisso, o entusiasmo me invade” .

No início, e como ele mesmo reconhece, “não convive muito com os filósofos”. O primeiro que entende sem, porém, aderir, é o Sartre de O Ser e o Nada. Depois, foi o contato com a “desconstrução”, que ele acolhe inicialmente de forma favorável porque, nos ambientes literários americanos, ela proporcionou um “retorno à filosofia, uma perspectiva ampliada, uma reabilitação do pensamento” . Em outubro de 1966, ele organiza na universidade Johns Hopkins um colóquio internacional do qual participaram, entre outros, Roland Barthes , Jacques Derrida e Jacques Lacan. Tratou-se da chegada do estruturalismo na América, mas, a essa altura, não se pode mais falar propriamente de uma influência sobre Girard, mas já de uma influência de Girard... E isso apesar de ele ter se afastado rapidamente da desconstrução. Talvez em razão de sua conversão, pois, como Pierpaolo de Castro Rocha destaca: “Desconstruímos tudo, à exceção de nossa certeza de sermos autônomos e de que os perseguidores sempre serão os outros" . Em contrapartida, o encontro com Michel Serres , autor notadamente de Roma, o livro das fundações, foi importante na elaboração de sua teoria, mas isso ocorreu tardiamente, em 1975. 

Em matéria de antropologia, a primeira iluminação lhe veio da leitura de Sir James George Frazer , após a qual começará uma formação de autodidata em antropologia, com a leitura de Edward B. Tylor , William Robertson Smith , Alfred R. Radcliffe-Brown , B. Malinowski , ou seja, todos os teóricos ingleses da sociologia das religiões. Girard reconhece de bom grado sua dívida com Lévi-Strauss . “Lévi-Strauss que, por intermédio de seus livros, foi (seu) professor de antropologia”. No entanto, o que o separa do “estruturalismo antropológico é ainda mais importante do que aquilo que o aproxima dele”. Além disso, ele julga a atitude “blasée” de Lévi-Strauss, anticientífica. 

Quanto aos teólogos, Girard os frequentou ainda menos do que os filósofos. Quando lê a Escritura, adota o que ele chama, após Auerbach, de “interpretação figural” . Como ele mesmo reconhece, não tenta se comportar como teólogo, desejando, no entanto, que sua obra esteja “conforme as grandes teologias tradicionais” . 

 

IHU On-Line - Pode-se falar numa “escola” surgida a partir das reflexões realizadas por Girard?

Dominique Janthial - O termo “escola” talvez não seja o mais apropriado, devido a, pelo menos, duas razões. A primeira é que uma “escola” se desenvolve dentro de uma dada disciplina. Parece mais que as análises de Girard possuam, atualmente, uma influência crescente nas mais diversas áreas, não apenas na psicologia, na antropologia e na sociologia, mas também nas ciências políticas, na economia ou ainda na história.

A segunda razão pela qual Girard não desejaria, sem dúvida, estar na origem de uma “escola” de pensamento é a dimensão inevitavelmente mimética, portanto, violenta de tais movimentos. A rejeição de suas ideias por parte da universidade francesa durante muitos anos representava, aliás, um fenômeno de escola: qualquer voz que discordasse do estruturalismo triunfante penava para se fazer ouvir. 

 

IHU On-Line - Poderia retomar a importância da aproximação entre Girard e a Bíblia como fundamento de sua descoberta do mecanismo do bode expiatório?

Dominique Janthial - Quando lhe pedem para definir-se, o próprio Girard emprega a expressão: “uma espécie de exegeta” . Foi sua leitura da Bíblia que lhe revelou o mecanismo do bode expiatório. Sem dúvida, ele levou a sério a interpelação de Jesus aos especialistas da Lei: “Que é isto, pois, que está escrito? A pedra, que os edificadores reprovaram, Essa foi feita a pedra mais importante”? (Lc 20,17). Depois, ele atualizou a pertinência antropológica universal do mecanismo de produção dos mitos e dos ritos a partir do sacrifício de uma vítima humana inocente, mas “culpada pelos pecados” de todos. Com certeza, a linguagem do “pecado” não é a do antropólogo, mas a construção das civilizações se faz com base no desconhecimento. O bode expiatório é tachado de ter causado todos os males da cidade, de modo que apenas sua execução pode salvar essa cidade. No entanto, como a execução restabelece a ordem e põe fim à guerra de todos contra todos canalizando a violência sobre um só, atribui-se ao bode expiatório um poder benéfico que o torna uma espécie de “deus”, senhor do bem e do mal! Ora, Girard descobre no quarto canto do Servo que esse desconhecimento se rompe: trata-se da célebre confissão do grupo do nós (Is 53,4): a vítima não é culpada.  

 

IHU On-Line - Qual é a atualidade dessa ideia do bode expiatório?

Dominique Janthial - A ideia do bode expiatório é, na realidade, uma ideia “inatual”, Unzeitgemäss, como diria Nietzsche . Esse adjetivo é duplamente apropriado: de um lado, porque a teoria do bode expiatório serve para descrever um mecanismo estrutural que sustenta as sociedades humanas de todas as épocas e sob todas as latitudes; do outro, porque sua eventual divulgação tenderia a torná-lo inoperante: a partir do momento em que a teoria do bode expiatório seria conhecida e realmente entendida por muitos, o mecanismo não poderia mais funcionar, pois exige o desconhecimento da multidão.

Ora, trata-se precisamente do que talvez esteja acontecendo nas sociedades pós-cristãs do século XXI, as quais recusam uma religião que mantenha sua influência sobre os fiéis através do medo e da vergonha. A força organizadora das religiões não pode mais operar em nossa sociedade porque temos uns “Charlie” que certamente farão brincadeira se lhe for dito que Deus os condena ou que serão malditos. A partir do momento em que a ideia do bode expiatório se difunde, se torna atual, a sociedade humana deve enfrentar uma grande instabilidade.

 

IHU On-Line - Em que medida o conceito de bode expiatório ajuda a explicar a lógica sacrificial que permeia a contemporaneidade?

Dominique Janthial - O mundo contemporâneo assumiu na íntegra a implementação da abolição das diferenças da qual fala São Paulo  na epístola aos Gálatas: “Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Ga 3,28). A ideologia marxista quer acabar com a diferença servo/livre pela ditadura dos servos contra os homens livres, a ideologia hitleriana, com a diferença judeu/gói pela ditadura dos gói contra os judeus, a ideologia feminista e suas extensões centram na diferença homem/mulher. Ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, a palavra de Cristo, “até agora, se faz violência ao reino dos céus, e pela força se apoderam dele” (Mt 11,12), encontra uma ilustração histórica especialmente evidente no surgimento das grandes ideologias. Cada vez, o desejo de fazer vir o Reino de Deus pela violência provoca carnificinas, até aquela provocada pelas violências perpetradas contra a maternidade das mulheres que fazem dezenas de milhões de vítimas por ano.

Além disso, a abolição progressiva das diferenças cria uma sociedade cada vez mais competitiva e essa competição se torna planetária: “A concepção rivalizadora que nosso exemplo impõe a todo o planeta não pode tornar-nos vencedores sem fazer, em outros lugares, inumeráveis vencidos, inumeráveis vítimas” .

 

IHU On-Line - Por outro lado, em que medida o bode expiatório é um mecanismo fundador das sociedades, ou ainda, civilizador?

Dominique Janthial - Há um episódio muito curioso nos evangelhos sinópticos, que é o dos demônios de Gerasa, e Girard realiza uma análise muito atenta disso em Bouc émissaire [Bode expiatório] . A história do (ou dos dois, em Mateus) demônio(s) curados por Jesus, da “Legião” de demônios que querem entrar nos porcos que, imediatamente, se comportam como carneiros se precipitando no mar, tudo isso é aparentemente rocambolesco no mais alto grau. E o mais surpreendente em toda essa história é a reação dos habitantes de Gerasa, que pedem gentilmente a Jesus para sair do território deles porque, como diz Lucas, “estavam dominados pelo medo” (Lc 8,37). Esse medo vem do fato de que a cura dos demônios põe em risco essa civilização, a qual, como todas as civilizações, todas as culturas, está fundada na exclusão pela qual a ordem suplanta a desordem, quando a guerra de todos contra todos se transforma em guerra de todos contra um.

A expressão “choque das civilizações”, que se tornou célebre — a ponto de ser recentemente utilizada por um ministro francês de esquerda após os atentados de Paris —, poderia ser apenas uma ilusão . Pois, de um lado, a sociedade ocidental pena para se construir como civilização sobre os escombros do cristianismo, dado que se recusa a deixar operar, em seu seio, um modelo social que se imporia de forma restritiva para todos. E, do outro lado, os islamitas, apesar de todos os seus esforços ridículos visando distinguir-se dos Ocidentais, mostram apenas uma coisa, ou seja, que fazem definitivamente parte desta sociedade ocidental que afirmam rejeitar. “O ódio pelo Ocidente e por tudo aquilo que representa não vem do fato de que o (seu) espírito seja realmente estrangeiro... mas de que o espírito competidor lhes é tanto familiar como o é para nós” .

Ao mesmo tempo, voltar para trás parece impossível; deveríamos, então, renunciar, a mais ou menos curto prazo, aos efeitos positivos e civilizadores do bode expiatório, pois sua eficácia é tão reduzida que é necessária uma quantidade cada vez mais assustadora de vítimas para que possa eventualmente produzir seus efeitos.

 

IHU On-Line - Em tempos marcados pela exacerbação do consumo, qual é a importância de compreendermos o desejo mimético e a lógica sacrificial que estão por trás da economia neoliberal?

Dominique Janthial - A teoria liberal postula que o mercado se autorregula por si mesmo. A antropologia de Girard mostra que não é assim, pois o desejo não cessa de se exacerbar e a concupiscência desregulada não tem limites. Isso leva a um planeta em que, de um lado, é necessário que a publicidade invista na totalidade do conteúdo mental dos que possuem para convencê-los a se tornarem adquirentes daquilo que o processo de produção não cessa de regurgitar sobre o mercado. E, ao mesmo tempo, uma parte cada vez maior da humanidade é afastada da fruição desses bens porque a obsessão pelo lucro comporta, cada vez mais, a expulsão do trabalho humano do processo de produção .

 

IHU On-Line - Quais são as relações entre o desejo mimético e a violência nesse contexto de neoliberalismo econômico e político?

Dominique Janthial - A exacerbação do desejo que esse sistema gera faz, portanto, um número incessantemente crescente de vítimas, sem falar de seu impacto sobre a natureza que é, talvez, sempre a primeira “vítima”, antes de ela mesma se tornar algoz quando a violência dos elementos naturais se sucede de forma catastrófica contra as multidões: tempestades, terremotos, tsunami, aquecimento e enchentes...

Além disso, a multiplicação, a globalização e a rapidez crescente das trocas comerciais comportam o risco de um desenvolvimento exponencial da má reciprocidade. Isso poderia provocar um acerto de contas em escala planetária . Em 2001, Girard já escrevia: “Parece que estamos indo em direção a um encontro planetário de toda a humanidade com sua própria violência. Quando a globalização era esperada, todo mundo a desejava. A unidade do planeta representava um grande assunto da modernidade triunfante. Multiplicavam-se, em sua homenagem, as ‘exposições internacionais’. Agora que chegou, ela suscita mais angústia do que orgulho. A anulação das diferenças não é, provavelmente, a reconciliação universal que se dava por certa” . Hoje em dia, “há a utilização de estruturas de ‘contenção’ que, fundadas em formas de transcendência leiga (ideologia democrática, tecnologia, espetáculo midiático, mercantilismo das relações individuais), conseguem retardar o evento apocalíptico”, mas por quanto tempo ?

 

IHU On-Line - Guardadas as singularidades de cada caso, como podemos compreender o sacrifício de Jesus Cristo e o de Isaque, que terminou por não se concretizar?

Dominique Janthial - O evento da “ligadura (‘Aqedah) de Isaque” não apresenta característica alguma de um sacrifício fundador. Ele acontece enquanto o capítulo 21 de Gênesis “marca certa conclusão na vida de Abraão, ao final de um longo caminho tanto interno quanto externo. Com o nascimento de Isaque, a promessa divina de uma descendência se realizou. Tudo está pronto para virar a página “Abraão” e seguir a partir dali as aventuras de Isaque” . Não se encontram, então, sintomas que prenunciem o desencadeamento de uma crise mimética com sua fase de indiferenciação crescente dentro do grupo humano, de proliferação consequente da violência e de resolução no sacrifício — ritualizado ou não da vítima expiatória.

Girard não erra ao não mencionar absolutamente a ligadura de Isaque na revisão que ele faz da “escritura judaico-cristã” em Des choses cachées [Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo]: passa diretamente de Caim ao ciclo de José . Na realidade, o episódio relatado em Gn 21 é uma prefiguração do cumprimento do projeto de Deus na cruz. A semelhança de Deus, restaurada no pai dos crentes, é espantosa (Gn 22). No monte Moriá, Abraão aceita — como Deus no Gólgota — oferecer seu filho para que se realize a salvação da humanidade. Ora, esse projeto não passa pela morte dos filhos, mas por sua ressurreição para a via eterna! É o que se manifesta no monte Moriá como no Gólgota. Assim, a imagem de Deus é plenamente restaurada perante uma humanidade que sempre imagina um Deus que exige sacrifícios . Porque o desejo de Deus não é a morte do homem, mas sua vida.

Contrariamente ao relato da ligadura de Isaque, os evangelhos da Paixão reúnem de forma sistemática todos os ingredientes da fabricação do bode expiatório. Porém, desta vez, o relato subverte totalmente esse mecanismo: Cristo se oferece. “Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45). O “triunfo da cruz” consiste no Cristo que, como escreve São Paulo, “tendo despojado os poderes e as autoridades, fez deles um espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Col 2, 14-15) . Pela cruz, todo o mecanismo oculto dos poderes que regem esse mundo é desvelado e o desígnio bondoso do único verdadeiro Deus é revelado. 

 

IHU On-Line - O que os dois sacrifícios, emblemáticos nas Escrituras, têm a nos dizer na contemporaneidade?

Dominique Janthial - Para responder a essa última pergunta, começarei citando uma observação da maior pertinência feita pelo professor brasileiro João Cezar de Castro Rocha , no prefácio à edição francesa de Origines de la culture [Origens da cultura]: “A cultura ocidental, enquanto parece querer se livrar definitivamente dos vínculos religiosos e confessionais — por uma ‘expulsão’ racionalista do religioso — revela suas raízes mais profundamente cristãs” . É em uma obediência — geralmente inconsciente — à exigência evangélica de verdade que, superando o relativismo dos antigos etnólogos que proclamavam como equivalentes todas as religiões, um número crescente de nossos contemporâneos rejeita todas as religiões; pois a verdade é que elas são todas más. Todas se fundam de forma oculta no sacrifício de vítimas expiatórias, inclusive o cristianismo em sua realização histórica.

A revelação cristã bem entendida oferece, em realidade, a única resposta verdadeiramente adequada ao problema da violência. Se a humanidade toma consciência de sua radical fragilidade no ser — com o que todos os antropólogos concordam: surgimento da sepultura etc. — e se essa tomada de consciência desencadeia o desejo mimético (“querer ser como...”), então a única maneira de desativar a bomba mimética e de preservar a humanidade de todas as suas consequências mortíferas é outra tomada de consciência, aquela do oficial romano na cruz: “Realmente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39). Se, realmente, esse resto da humanidade que é Jesus na cruz é... (Filho de Deus), então mais ninguém precisa tentar “ser como... Deus” (Gn 3,5). ■ 

 

Leia Mais...

- René Girard, leitor de Isaías. Entrevista com Dominique Janthial, publicada na edição número 393, de 21-05-2012.  

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