Edição 478 | 30 Novembro 2015

Quando o Estado nega o índio

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João Vitor Santos

Raphaela Lopes entende que o Estado brasileiro tem condições de cessar o genocídio. Entretanto, opta pela política desenvolvimentista que devasta a cultura dos povos originais e alimenta esse crime

A advogada Raphaela Lopes, ativista da causa de Direitos Humanos da Organização Não Governamental – ONG Justiça Global, é enfática: “o Estado Brasileiro, quando não é cúmplice, é omisso nas violações aos direitos dos povos indígenas”. Para ela, a legislação nacional acerca da proteção aos povos originários é suficiente para assegurar esse direito. “O país tem, sim, plenas condições de resolver seus conflitos indígenas, mas precisa optar por isso, de fato, elegendo a questão indígena como uma prioridade”. Entretanto, percebe que o Estado age como se não houvesse proteção constitucional a esses direitos. O resultado são conflitos entre projetos agrícolas e de infraestrutura que, além de remover os índios das terras originais, seguem empurrando esses povos para ocidentalização. O índio, com pouca voz, vê seus direitos violados e a vida ameaçada. “Esse quadro nos leva a concluir que há uma opção política do Estado pela mineração, pelos megaprojetos e pelo agronegócio, em detrimento da garantia dos direitos dos povos indígenas”, conclui.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Raphaela também analisa a postura do Estado durante audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que tratou do drama brasileiro através de relatos dos próprios índios Guarani Kaiowá. “O Estado inicialmente negou que houvesse uma relação entre as mortes de indígenas e os conflitos fundiários nos quais eles estão envolvidos e, na réplica, esse reconhecimento foi feito”, pontua. “É uma lástima ver que, quando se trata de defensores de direitos humanos ameaçados ou mortos, o argumento do Estado Brasileiro é sempre o mesmo: a existência do Programa Nacional de Defensores de Direitos Humanos, que não é efetivo na proteção de defensores de direitos humanos. Em vez de aprimorar o programa e acatar as críticas incessantemente apontadas pela sociedade civil, o Estado continua batendo na tecla da efetividade”, analisa.

Raphaela Lopes é formada em Direito pela Universidade Federal da Bahia - UFBA, com mestrado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atua como advogada na organização Justiça Global, na área de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais. A ONG trabalha com a proteção e promoção dos direitos humanos e o fortalecimento da sociedade civil e da democracia no Brasil. Nascida em Manaus, no Amazonas, Raphaela cresceu em Salvador, na Bahia, e vive desde 2012 no Rio de Janeiro. Sempre envolvida nas causas indígenas, resume: “lutar ao lado dos indígenas significa a disputa pela possibilidade de ser diferente, de ter hábitos, de ter uma vida diferente”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como compreender a violação de direitos de povos indígenas? O que está em jogo?

Raphaela Lopes - Muito mais do que a luta por ver garantida a propriedade coletiva de seus territórios, o que está em jogo é o direito à vida dessas comunidades, pois não há vida para essas comunidades sem a garantia dos territórios tradicionais, que é onde a cultura pode ser vivenciada. Há também uma disputa por um modelo econômico: de um lado os indígenas reivindicam a utilização da terra em uma perspectiva não mercantil, como expressão de um modo de vida. De outro, Estado e empresas imbuídas na realização de um projeto de desenvolvimento, que não traz benefícios para todos, viola direitos e espolia comunidades. Os indígenas representam modos de vida possíveis fora do capitalismo.

IHU On-Line - Como avalia a ação do Estado Brasileiro diante desse cenário de violação de direitos dos povos indígenas?

Raphaela Lopes - O Estado Brasileiro, quando não é cúmplice, é omisso nas violações aos direitos dos povos indígenas. O Executivo tem sido negligente na demarcação de terras indígenas e tem fortalecido posições políticas contrárias aos direitos indígenas. No Judiciário, há um desequilíbrio na apuração de crimes supostamente cometidos por indígenas e os cometidos contra indígenas, principalmente lideranças: a persecução penal se dá de modo muito mais célere no primeiro caso, em relação ao segundo. Além disso, interpretações recentes do Supremo Tribunal Federal - STF têm restringido os direitos territoriais dos povos indígenas.

No Legislativo, a PEC 215/00 , bem como o Projeto de Lei 1.610/96 , que permite a exploração mineral em terras indígenas, são afrontas diretas aos direitos indígenas. Além disso, o Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos encontra-se sucateado e tem muitos problemas, o que torna a situação de lideranças e comunidades indígenas ainda mais vulnerável. Esse quadro nos leva a concluir que há uma opção política do Estado pela mineração, pelos megaprojetos e pelo agronegócio, em detrimento da garantia dos direitos dos povos indígenas. 

IHU On-Line - A Constituição de 1988 assegura uma série de direitos aos povos nativos. Em que medida as diretrizes contidas ali se materializam na realidade da vida de povos indígenas? Há pontos que precisam ser revistos, ou o maior desafio é implementar o que está na Constituição?

Raphaela Lopes – Acho que são as duas coisas. Há uma distância muito grande entre o tratamento conferido, na teoria, pela Constituição da República aos povos indígenas e como isso se dá na realidade. O número de indígenas mortos nos últimos anos é emblemático dessa contradição entre norma e realidade: apenas entre os Guarani-Kaiowá, foram 16 lideranças mortas nos últimos dez anos de luta pela terra. Então, isso diz respeito a garantias que são previstas, mas não implementadas.

Por outro lado, acho que normativamente e conceitualmente precisamos avançar ainda em direção a uma autonomia maior aos indígenas. Por exemplo, pelo reconhecimento de mecanismos internos de distribuição de Justiça, mediante alguns critérios, na regulamentação do mecanismo de consulta prévia, livre e informada, que possa ser capaz de impedir a implementação de projetos econômicos e também no direito à integridade cultural indígena. O Estado precisa ser mais indígena. 

IHU On-Line - A PEC 215 é motivo de discussão por conceder ao Legislativo a prerrogativa de demarcação de terras. Em que medida essa proposta representa um risco às terras indígenas? Qual a importância dos processos demarcatórios para dirimir os conflitos e porque devem ser conduzidos pelo Executivo?

Raphaela Lopes – O território é fundamental para a reprodução do modo de vida indígena. Hoje, grande parte dos conflitos envolvendo indígenas e mortes de lideranças está ligada a disputas por terra. A indefinição por parte do Executivo sobre a titulação de determinado território fomenta a tensão entre indígenas e não indígenas, ocasionando mortes e violações à integridade física e psicológica de membros de comunidades indígenas. Nesse sentido, portanto, a PEC 215/00 representa um grande retrocesso na garantia dos direitos indígenas. Isto porque, ao transferir para o Legislativo a competência de demarcar terras indígenas, a proposta de emenda constitucional traz para o âmbito do político uma decisão que deve ser técnica, amparada em estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais realizados pela Funai. 

Além disso, com um Congresso Nacional conservador como o nosso, em que a bancada ruralista conta com tantos membros e em uma posição tão fortalecida politicamente, o risco de terras indígenas não serem mais demarcadas no país é real. Não podemos permitir que isso aconteça.

IHU On-Line - O Estado brasileiro tem condições (políticas e de aparato legal) de resolver os conflitos em terras indígenas sozinho, sem ação de organismos internacionais?

Raphaela Lopes – O envolvimento de organismos internacionais é muito mais uma forma de fazer pressão sobre os compromissos em relação aos direitos humanos que o país celebrou, do que um envolvimento para resolver a questão. É uma espécie de consciência. O país tem, sim, plenas condições de resolver seus conflitos indígenas, mas precisa optar por isso, de fato, elegendo a questão indígena como uma prioridade. 

IHU On-Line - Como avalia a atuação de organismos internacionais acerca dos conflitos entre índios e brancos no Brasil?

Raphaela Lopes – As instâncias internacionais costumam ser bastante receptivas a denúncias envolvendo populações indígenas e parecem considerar a temática prioritária, sendo, portanto, um importante instrumento de pressão sobre o Estado brasileiro. 

IHU On-Line - Qual sua avaliação da audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos - Cidh, da Organização dos Estados Americanos – OEA , que tratou dos conflitos brasileiros?

Raphaela Lopes – A audiência foi avaliada de modo muito positivo. O Estado inicialmente negou que houvesse uma relação entre as mortes de indígenas e os conflitos fundiários nos quais eles estão envolvidos e, na réplica, esse reconhecimento foi feito. Isso já foi um pequeno avanço, que se deveu a uma postura provocadora dos Comissionados e da força dos nossos argumentos e relatos. Entretanto, é uma lástima ver que, quando se trata de defensores de direitos humanos ameaçados ou mortos, o argumento do Estado Brasileiro é sempre o mesmo: a existência do Programa Nacional de Defensores de Direitos Humanos, que não é efetivo na proteção de defensores de direitos humanos. Em vez de aprimorar o programa e acatar as críticas incessantemente apontadas pela sociedade civil, o Estado continua batendo na tecla da efetividade do programa. 

IHU On-Line - OEA também recebeu denúncias de violações sistemáticas do direito à água por projetos de mineração e hidrelétricas nas Américas. Gostaria que detalhasse essa denúncia. Em que medida se relaciona com a questão indígena?

Raphaela Lopes – A audiência sobre Direitos Humanos e Água foi regional, ou seja, foi solicitada por entidades da sociedade civil das Américas, em virtude de existirem certos padrões na região de afetação ao direito à água como consequência da implementação de projetos extrativos. A Justiça Global esteve nessa audiência representando também o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração, que nos ajudou a construir a parte relativa ao Brasil.

Nessa audiência, pautamos o perigo de retrocesso com a aprovação do novo Código da Mineração  e a atribuição à empresa concessionada do direito de usar a água necessária para sua operação, sem qualquer menção aos impactos causados à água e à necessidade de protegê-la para garantir o consumo humano. Trouxemos o caso da empresa Anglo American, que explora uma mina de minério de ferro e possui uma fábrica de processamento do material e também um mineroduto, em Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais, que provocou o tapamento de fontes de água e a sanilização da terra em alguns trechos, contaminando-a. Denunciamos a poluição de rios e nascentes em Minas Gerais e na Bahia, bem como a operação da Vale no Pará e no Maranhão, que tem afetado a oferta de água na região de Parauapebas, no Pará, e tem aterrado igarapés no Maranhão, nas obras de ampliação da Estrada de Ferro Carajás.

Também pautamos a falta de consulta livre, prévia e informada ao povo Munduruku , para a construção de represas no rio Tapajós, no Pará. Esse cenário de violações ao direito à água afeta especialmente os indígenas, na medida em que eles são uma das populações que mais sofre com os impactos de tais projetos, já que seus territórios se localizam em áreas visadas pela mineração e pelos projetos hidrelétricos; daí por que os parlamentares que querem garantir privilégios para a mineração, por exemplo, ataquem direitos territoriais indígenas. 

IHU On-Line - Quais os maiores desafios e dificuldades nessa luta para assegurar direito a povos indígenas?

Raphaela Lopes – Assegurar os direitos dos povos indígenas tem a ver com o passado e o futuro. Eles compõem a nação brasileira e precisam ser reconhecidos como uma coletividade que nos influenciou e continua nos influenciando. Por outro lado, eles também representam um modo de vida diferente, uma outra possibilidade de sociabilidade mesmo e de encarar o mundo, então é importante garantir sua existência.

Para mim, então, lutar ao lado dos indígenas significa a disputa pela possibilidade de ser diferente, de ter hábitos, de ter uma vida diferente. Eu sou parte de uma história, da qual eles também fazem parte, então é uma luta pela minha história também e pela minha possibilidade de ter um modo de vida outro. É uma luta que realmente me toca muito, porque para mim tem a ver com liberdade e com ancestralidade e que acho que se mistura à minha própria história de vida de uma amazonense da Bahia, que vive hoje no sudeste. 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Raphaela Lopes – Demarcação já!■

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