Edição 206 | 27 Novembro 2006

Livro da semana

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

LANG, Uwe Michael. Rivolti al Signore. L'orientamento nella preghiera liturgica. Prefácio Joseph Ratzinger. Tradução (do inglês) Laura Tasso. Siena: Edizioni Catangalli, 2006, 149p.

 

O espaço litúrgico em questão: uma proposta relevante ou uma discussão a mais?

Reproduzimos a seguir a resenha do livro de Uwe Lang, Rivolti al Signore, de autoria de Francisco Taborda, publicada na revista Perspectiva Teológica número 105, pp. 285-289. Francisco Taborda é bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Cristo Rei, de São Leopoldo (atualmente Unisinos); licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; licenciado em Teologia pela Philosophisch- Theologische Hochschule St. Georgen, Frankfurt-am-Main, Alemanha e doutor em Teologia pela Westfälische Wilhelms-Universität, Münster, Alemanha. Atualmente é professor de Teologia da Faculdade de Teologia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, de Belo Horizonte (ISI/CES). Francisco Taborda é autor de, entre outros livros, Sacramento, Práxis e Festa (Vozes, 1990). Os subtítulos são nossos. 

Publicada em 2004, nos Estados Unidos, com prefácio do então Cardeal Ratzinger, a presente obra foi lançada em tradução italiana, no mês de abril passado, causando frisson nos círculos eclesiásticos da Itália. A reação é compreensível, quando se considera a tese fundamental do livro e a autoridade (agora papal) do prefaciador. Lang defende que a oração litúrgica e, em especial, sua expressão máxima, a oração eucarística, devem ser pronunciadas estando todos os participantes (sacerdote, inclusive) “voltados ao Senhor” (rivolti al Signore) e não, como se tornou regra depois do Concílio, estando o sacerdote voltado para a assembléia. Não bastasse o prefácio (7-10), escrito pelo Cardeal Ratzinger aproximadamente dois anos antes de ser eleito papa (está datado do domingo Laetare de 2003), o lançamento da tradução italiana foi feito pelo arcebispo Malcolm Ranjith, do Sri Lanka, recém-nomeado por Bento XVI para Secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Acresce ainda que, no começo de junho, o prestigioso Mosteiro de Bose, uma comunidade monástica ecumênica sob a orientação do conhecido prior Enzo Bianchi, realizou um simpósio internacional sob o título “O espaço litúrgico e sua orientação”, em que Lang esteve presente.

O tema não é inocente e, em última análise, pode estar pondo em questão a reforma litúrgica do Vaticano II, tal como Paulo VI a executou. De fato, Nicola Bux, professor do Istituto San Nicola di Bari (Itália), no posfácio da tradução italiana (93-97), afirma com todas as letras que uma discussão dessa temática entre estudiosos e fiéis, poderia “contribuir a uma séria e equilibrada reforma da reforma litúrgica” (97, grifo do posfaciador), o que se poderia interpretar como uma crítica à reforma anterior como não séria nem equilibrada. Entretanto, não é este o caminho adequado para apresentar este livro, pois, como escrevia o então Cardeal Ratzinger no prefácio, “não se chega a nenhum resultado, etiquetando as posições como ‘pré-conciliares’, ‘reacionárias’, ‘conservadoras’ ou como ‘progressistas’ e ‘estranhas à fé’; vale uma nova abertura recíproca na busca do melhor cumprimento do memorial de Cristo” (8).

Os defensores da comum orientação de todos os participantes da oração litúrgica não se consideram contrários ao Concílio, pois ponderam que o Vaticano II não determinou nada a respeito da localização do altar. De fato, foi a instrução Inter oecumenici (26 de setembro de 1964), do Consilium ad exsequendam Constitutionem Liturgicam, órgão criado por Paulo VI para implementar a reforma determinada pelo Concílio, que propôs por primeiro a questão inserida posteriormente na introdução geral do novo Missal Romano. De qualquer forma, em nenhum caso houve obrigatoriedade na posição do sacerdote em relação à assembléia.

“Voltados para Deus”: “ao falar com o interlocutor nos voltamos a Ele”

O livro está dividido em quatro capítulos. O primeiro (17-25) apresenta o status quaestionis, mostrando que, na reforma litúrgica pós-Vaticano II, jamais foi ordenado como obrigação que o sacerdote que preside a eucaristia esteja de frente para o povo (versus populum). Apenas se abriu tal possibilidade. Inclusive J. A. Jungmann, um dos corifeus  da reforma litúrgica, insiste neste ponto, advertindo contra o perigo de tornar essa prática uma moda a que se sucumbe sem pensar (cf. artigo Der neue Altar, em: Der Seelsorger 37 [1967] 374-381). O Cardeal Lercaro, que dirigiu o já citado Consilium, em carta de 25 de janeiro de 1966 aos Presidentes das Conferências Episcopais, recomenda prudência na mudança do altar. As próprias rubricas do Missal Romano de Paulo VI supõem que o padre esteja de costas para o povo e se volte a ele quando o saúda ou a ele se dirige. Aliás, há um erro em afirmar que o padre celebra “de costas para o povo”: não é a assembléia a referência, mas Deus. Na posição propugnada pelo livro, sacerdote e assembléia estão voltados na mesma direção, “voltados ao Senhor”, como diz o título do livro. Como numa conversa, ao falar com o interlocutor nos voltamos a ele, assim também nas orações litúrgicas, que constituem o cerne de toda celebração, quem preside deveria estar, com todos os presentes, “voltado ao Senhor”, em todo o caso em espírito. Entretanto, conforme a índole própria da liturgia, a atitude interior deveria expressar-se no gesto exterior.

Fundamentação histórica

O segundo capítulo (27-64) procura demonstrar a tese do livro com base na história. A orientação tradicional da oração cristã é voltar-se para o oriente, prática conhecida e generalizada no culto do sol em todo o âmbito geográfico que vai da Bacia Mediterrânea até a Índia. O cristianismo dá ao gesto um novo sentido: o verdadeiro Sol é Cristo (oriens ex alto, cf. Lc 1,78). O nascer do sol evoca assim a vinda de Cristo. O cristão que espera em oração a segunda vinda do Senhor, volta-se para o oriente nessa expectativa. Na orientação topográfica da oração, o cristianismo segue também o judaísmo da diáspora que orava voltado para Jerusalém e orientava suas sinagogas de forma que o nicho onde se guardavam os rolos da Torá, estivesse na direção da Cidade Santa. O autor cita inúmeros Padres e outros documentos para provar sua tese de que o cristão ora voltado para a direção do sol nascente. Até mesmo Tomás de Aquino ainda reconhece que essa orientação é apropriada (secundum quandam decentiam, STh II-II q. 84 a. 3, ad3).

A seguir, o autor discorre sobre a posição do “celebrante” no altar, posicionando-se na polêmica (1965-1971) entre O. Nuâbaum e M. Metzger, o primeiro (cf. Die Zelebration versus populum und der Opfercharakter der Messe, em: ZKTh 93 [1971] 148-167) favorável a que a forma original de celebração era com o presidente voltado ao povo e só à medida que cresce a consciência do caráter sacrifical da eucaristia, se adota a posição de costas para o povo. Metzger (cf. La place des liturges à l’autel, em: RevSR 45 [1971] 113-145) refuta a argumentação de Nuâbaum, usando os dados arqueológicos das construções paleocristãs.

Tampouco vale a afirmação de que a última ceia foi celebrada versus populum, pois não foi bem assim. O costume convivial na antiguidade não dispunha que o lugar principal fosse no centro (como na Ceia de Leonardo da Vinci) ou na cabeceira (como o uso atual), mas como primeiro num semicírculo de convivas (cf. mosaico na Igreja de Sant’Apollinare Nuovo, em Ravenna). No caso de a Igreja não ter a ábside ao oriente, uma representação do Cristo Pantocrátor (como na Catedral de Monreale, Sicília) ou da cruz gloriosa (como na Basílica de São Clemente em Roma) constituem o “Oriente simbólico”. Por fim, com ajuda de plantas de edifícios paleocristãos, o autor corrobora sua tese, observando a relação entre arquitetura e liturgia.

Pressupostos teológicos e espirituais

O capítulo terceiro (65-85) procura fundamentar a tese, indicando os pressupostos teológicos e espirituais da orientação de quem preside a celebração. Primeiramente o autor discute a questão do “arqueologismo”, acusação que tanto poderia ser feita à sua tese, como à tese contrária, quando argumenta que na última ceia Cristo estava voltado aos apóstolos. Aduz a atitude de Lutero que, baseando-se neste argumento, propugnou a celebração versus populum, no que, entretanto, não foi seguido, de forma que até hoje o altar nas Igrejas protestantes está no fundo da ábside, “voltado ao Senhor”. Acentua que a questão não é estar quem preside voltado de frente ou de costas para a assembléia, nem a orientação para o leste, mas “a orientação comum do sacerdote e da assembléia na oração litúrgica” (73).

Abordando a dimensão teológica da prática propugnada, o autor explicita o simbolismo cósmico do culto sacramental para expressar a verdadeira natureza da eucaristia “como ato comum de adoração trinitária” (73). O gesto expressa que o verdadeiro contexto da eucaristia é o cosmos todo. O simbolismo cósmico do sol que nasce, tem uma dupla valência: “Em primeiro lugar, como sinal do Cristo ressuscitado e, portanto, também do poder do Pai e da obra do Espírito Santo; em segundo lugar, como sinal de esperança na parusia” (ib.), que é o evento “que realiza a síntese cristã de cosmo e história” (ib.). Em suma, “O simbolismo cósmico do culto sacramental consente ao mundo permanecer transparente à realidade transcendental [sic!]” (ib.). Em oposição a isso, “a posição constantemente face a face do sacerdote e do povo [...] sugere um círculo fechado” (75), com o perigo de que a comunidade se encapsule. Além disso, trai “um conceito errôneo de Deus” (ib.): o eclipse da transcendência, com a conseqüente dessacralização e secularização da liturgia. O olvido da transcendência corresponde ao Zeitgeist (“espírito do tempo [atual]”, em alemão na tradução italiana) e caberia à liturgia opor-se-lhe visivelmente. Mais ainda, como observava Hans Urs von Balthasar, longe de manifestar um caráter mormente comunitário, o sacerdote sempre voltado para a assembléia traz consigo uma nova forma de clericalismo (cf. Die Würde der Liturgie, em: IkaZ 7 [1978] 481-487), em que os que presidem, são protagonistas e não mais, como diria mais tarde Max Thurian, “servos humildes e discretos” do mistério (citado na p. 85, cf. La liturgie, contemplation du mystère, em: Not. 32 [1996] 690-697).

Outro aspecto teológico da questão é o enfraquecimento da concepção da eucaristia como sacrifício em favor de uma visão convivial. Ser sacrifício e ser banquete não se opõem. A eucaristia é ambas as coisas e os dois aspectos não podem ser isolados. Mas “nem a melhor catequese mistagógica pode compensar o declínio na compreensão da missa entre os católicos, se a celebração litúrgica comunica sinais contrários” (83).
Por fim, o autor transcreve amplamente trechos do já mencionado artigo de Max Thurian, em que o monge de Taizé, posteriormente convertido ao catolicismo, vê a carência fundamental da vida litúrgica contemporânea no fato de a liturgia se ver privada de seu caráter de mistério. E critica: “A celebração inteira muitas vezes é conduzida como se fosse uma conversa e um diálogo no qual não há espaço para a adoração, a contemplação e o silêncio. O fato de que celebrante e fiéis estejam constantemente uns diante dos outros encerra a liturgia em si mesma [...] e impede a orientação contemplativa de toda a comunidade na adoração direcionada ao lugar simbólico da presença do Senhor e na expectativa escatológica de seu retorno” (84 e 85, citando Thurian, ib., 692 e 694).

O capítulo quarto (87-92) retoma a tese e propõe que a proclamação da Palavra, os ritos introdutórios e conclusivos, a comunhão e todas as partes que são diálogo entre o sacerdote e os fiéis sejam feitas numa posição face a face. Para a liturgia eucarística em sentido estrito e, em especial, para a anáfora “seria bem mais apropriado que toda a assembléia, inclusive o celebrante, se voltassem ao Senhor e isso se exprime, voltando-se para o altar, quer este seja orientado [para o leste], quer indique simplesmente o Oriente ‘litúrgico’” (89). A razão teológica do posicionamento diferente de quem preside, está em que, embora a proclamação da Palavra também tenha um elemento latrêutico, não obstante prevalece o aspecto catabático (= descendente), enquanto na liturgia eucarística prevalece o anabático (= ascendente) (exceto na distribuição da comunhão) (16, defendendo-se das objeções de R. Kaschewsky, Eine wichtige Veröffentlichung zur Zelebration versus populum, em: UVK 30 [2000] 310-311).

Com essa referência já se sugere o caráter sui generis da introdução (13-16), em que, em vez de expor a problemática – o que fará no cap. I –, o autor toma posição a respeito das críticas feitas a sua tese. Esse caráter peculiar da introdução provém de que o exposto no livro, já se fizera conhecido por meio de um artigo publicado na revista Forum Katholische Theologie 16 (2000) 81-123. O livro nada mais é que uma versão corrigida e ampliada desse artigo.

Com relação à apresentação gráfica, deve-se lamentar a adoção do costume anglo-saxão de pôr no final do livro as notas que deveriam estar no rodapé, o que obriga o leitor a ficar folhando constantemente da frente para trás, de trás para frente. A capa, de muito bom gosto, é um detalhe do mosaico de Rupnik  na Capela Redemptoris Mater, do Vaticano.

Resgatando o mistério

Deixando para especialistas a discussão histórica e arqueológica, o recenseador gostaria de ressaltar o que há de positivo no livro: sua preocupação com a banalização da liturgia. É preciso dar razão ao autor, quando apóia a crítica de Max Thurian no tocante à perda do mistério na prática litúrgica atual. De fato, quando os padres vão buscar como modelo de presidência da eucaristia os pop-stars em voga ou os animadores de auditório nos programas televisivos de domingo à tarde, podem atrair multidões, mas não exercem sua função fundamental de “servos humildes e discretos” do mistério celebrado. Quando se torna usual “ir à missa do Padre Fulano”, em vez de buscar, em primeiro lugar, a participação sacramental no mistério pascal, o “celebrante” torna-se mais importante que o “celebrado”. Quando a televisão mostra em close o mais central do mistério da fé, expondo-o aos olhos desinteressados ou até mesmo debochados de telespectadores sem fé, esqueceu-se o mínimo de uma sã “disciplina do arcano”. Quando as liturgias perdem toda solenidade e desenvolvem-se na mais banal platitude, esqueceu-se o que até Joãozinho Trinta sabia: “intelectual é que gosta de pobreza; pobre gosta de luxo”. Quando se multiplicam as palavras e “explicações”, em vez de celebrar de forma que os gestos falem por si do mistério da entrega de Cristo por nós, algo está errado nas nossas celebrações. Quando padres e pessoas de boa vontade, com a melhor das intenções, crêem ter que inventar cada domingo uma coisa diferente para chamar a atenção e provocar elogios à criatividade da “equipe litúrgica”, perdeu-se a percepção do essencial na eucaristia. Assim sendo, a preocupação do autor pela perda da dimensão de transcendência, sacrifical e escatológica da eucaristia é algo sumamente válido. A questão é saber se a volta à orientação comum de sacerdote e assembléia para o “Oriente litúrgico” será suficiente e mesmo necessário para resolver a questão. Como o autor mesmo reconhece, o essencial é a orientação interna, que a externa quer expressar e incentivar. Em qualquer hipótese, faz falta uma catequese mistagógica que retorne sempre de novo ao essencial.

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição