Edição 476 | 03 Novembro 2015

“Não se deve tributar as grandes fortunas. Deve-se tributar todas as fortunas”

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Ricardo Machado

O economista e pesquisador Marcelo Medeiros apresentará na próxima semana, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dados de uma pesquisa recente sobre a desigualdade brasileira

Os desafios com relação à iniquidade social, educacional e econômica no Brasil foram pensados historicamente observando a base da pirâmide social. Para tentar compreender melhor o fenômeno, o pesquisador e economista Marcelo Medeiros virou a realidade de cabeça para baixo e se deu conta de por que, apesar dos anos de estudo, soluções efetivas para o problema nunca foram apontadas. “Os ricos concentram uma fração muito grande da renda total e, por isso, têm um peso gigantesco na desigualdade. Falar de desigualdade é falar de ricos, da diferença entre os ricos e o resto. O que acontece com a pobreza não muda muito a desigualdade”, destaca em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

O professor chama atenção para o fato de que um quarto de toda a renda do país está concentrado em 1% dos adultos, o que justifica observar os ricos para compreender a pobreza. “Quando se fala de renda, se fala de algo que é apropriado, predominantemente, pelos ricos. Por isso o comportamento da renda dos ricos afeta muito o comportamento geral da desigualdade”, avalia. “Não se deve tributar as grandes fortunas. Deve-se tributar todas as fortunas”, provoca.

Marcelo Medeiros é graduado em Economia pela Universidade de Brasília – UnB, mestre e doutor em Sociologia pela mesma instituição. Atualmente é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea e professor na UnB. Além disso, leciona anualmente na Universidad Nacional de General San Martín -UNSAM, Buenos Aires. Foi pesquisador no International Poverty Centre - UNDP, pesquisador-visitante no CSC - Cambridge University, no Institute for Human Development - Delhi, no Indira Ghandi Institute - Mumbai, na Sophia University - Tóquio, no CNRS-Cermes3 - Paris e na University of California - Berkeley, além de especialista em avaliação de políticas do Tribunal de Contas da União - TCU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais serão os pontos centrais a serem abordados na conferência Os ricos e a desigualdade de renda no Brasil, evento que ocorre na próxima semana?

Marcelo Medeiros - Essa conferência sintetiza os resultados de estudos sobre desigualdade de renda no Brasil no último ano. Ela tem como eixo uma ideia simples, mas importante: os ricos concentram uma fração muito grande da renda total e, por isso, têm um peso gigantesco na desigualdade. Falar de desigualdade é falar de ricos, da diferença entre os ricos e o resto. O que acontece com a pobreza não muda muito a desigualdade.

 

IHU On-Line – Quem são os ricos do Brasil? De que forma eles desequilibram a balança da justiça econômica e social no país?

Marcelo Medeiros - Ainda precisamos saber mais sobre isso. Temos que reavaliar parte do que sabemos sobre desigualdade depois que os dados do Imposto de Renda confirmaram aquilo que muitos suspeitavam: nossas informações sobre renda nas pesquisas domiciliares estavam subestimadas. Mas já sabemos, por exemplo, que cada pessoa das elites ocupacionais e educacionais contribui de forma muito desproporcional para a desigualdade de renda. Elites educacionais são as pessoas com formação naquilo que alguns chamam de profissões imperiais, como medicina, engenharia, direito e algumas outras novas atividades. Elites ocupacionais são os empresários. Estudos recentes também mostram que essas elites são compostas predominantemente por homens brancos com mais de 45 anos de idade. As desigualdades de gênero, raça e geração parecem ser maiores do que se acreditava.

 

IHU On-Line – Historicamente, quais foram os aspectos determinantes da desigualdade no Brasil? Como foram medidos e analisados os dados sobre a desigualdade?

Marcelo Medeiros - Os primeiros estudos sobre desigualdade de renda no Brasil datam da década de 1930. Eram estudos baseados em dados do imposto de renda, recém-criado. Há estudos parecidos nas décadas de 1940, 1950 e 1960. A partir dos anos 1970 o Brasil passa a contar com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio - PNAD, pesquisas domiciliares de excelente qualidade, e a história contada a partir da PNAD passa a dominar acerca do que sabemos sobre desigualdade. Porém, a partir da década de 2000 os dados tributários voltaram a ter muita importância em todo o mundo, pois são uma forma de se analisar a história de longo prazo da desigualdade. No Brasil, a primeira série de longo prazo sobre desigualdade ano a ano é do Pedro Souza, do Ipea, publicada em 2014, e que cobre de 1933 a 2012. Recentemente essa série foi alongada e conta com dados desde 1928.

É difícil resumir um período tão longo de história em poucas palavras, mas há algo na série que chama a atenção: nos períodos de ditadura a desigualdade sobe, nos de democracia ela cai. Ao que parece, os níveis mais baixos de desigualdade da história brasileira foram no começo dos anos 1960 e isso foi revertido bruscamente em 1964, mesmo antes do milagre econômico do final da década. Não devemos, portanto, subestimar o papel que o Estado e a política têm na desigualdade.

 

IHU On-Line – De que forma a pesquisa A estabilidade da desigualdade de renda no Brasil, 2006 a 2012: Estimativa com dados do imposto de renda e pesquisas domiciliares,  publicada ano passado, atualiza nossa compreensão sobre o fenômeno da desigualdade?

Marcelo Medeiros - Essa pesquisa e outra, publicada quase simultaneamente, usam os novos dados do imposto de renda para analisar a história recente da desigualdade. Esses dados apontam que a desigualdade no Brasil é maior do que estávamos calculando até recentemente e, ao contrário do que todos nós acreditávamos, não caiu entre 2006 e 2012. E quando digo “nós”, me incluo: quando olhava apenas para os dados da PNAD eu também achava que havia queda. Mas em pesquisa sempre é assim, diante de novos dados temos que rever nossas posições. A interpretação que parece mais prudente é a de que houve estabilidade entre 2006 e 2012, não queda.

De todo modo, o que importa não são os pequenos sobe e desce e sim as grandes tendências, pois é isso que ajuda a explicar o que causa a desigualdade no país e o que pode ser feito para reduzi-la. Precisamos saber o que muda no que sabemos sobre desigualdade diante das novas evidências do imposto de renda. Aprendemos muito com as PNAD, agora precisamos colocar esse conhecimento à prova, pois as PNAD subestimam a renda no topo da distribuição. 

 

IHU On-Line – Por que estudar os mais ricos? De que forma eles ajudam a compreender os meandros de uma sociedade em que a maioria massiva da população é pobre?

Marcelo Medeiros - Um quarto de toda a renda do país está concentrado em 1% dos adultos. Metade em 5% da população. Quando se fala de renda, fala-se de algo que é apropriado, predominantemente, pelos ricos. Por isso o comportamento da renda dos ricos afeta muito o comportamento geral da desigualdade. Aliás, também quando se fala de crescimento, fala-se de algo que será apropriado, predominantemente, pelos ricos. Entre 2006 e 2012, o 1% mais rico ficou com 28% dos frutos de todo o crescimento do país.

 

IHU On-Line – Embora os programas sociais do Estado sejam voltados à população mais empobrecida, como explicar o fato de que os maiores fluxos de renda estatal sejam destinados às populações da parte de cima da pirâmide social? Como compreender os paradoxos que estão em jogo nestes processos?

Marcelo Medeiros - O que é importante nisso é entender que o Estado é importante para determinar a desigualdade. Ou seja, desigualdade é um problema político, no sentido dado pela Economia Política à expressão. Quando o Estado faz políticas para os mais pobres, ajuda a reduzir um pouco a desigualdade; mas quando dá subsídios, investe em infraestrutura, ou mesmo quando faz políticas de controle da inflação, ele pode estar ajudando diretamente os mais ricos.

Nosso estudo mostra que a maior parte da população dá ou recebe diretamente rendas do Estado. Por exemplo, dá na forma de imposto de renda e contribuições previdenciárias e recebe na forma de transferências e salários. O saldo desses fluxos de renda é que o Estado acaba transferindo mais dinheiro para os mais ricos do que para os mais pobres. Em parte, isso é esperado, pois as pessoas contratadas pelo Estado geralmente têm maior qualificação e isso está associado a maiores salários. É importante entender que as rendas pagas pelo Estado contribuem com uma parcela não desprezível da desigualdade, mas isso não é necessariamente um problema: se o Estado contratar mais enfermeiras para cuidar de pacientes nos hospitais públicos, pagará mais salários e irá provavelmente aumentar sua participação na desigualdade, mas isso não deve ser visto como algo ruim. Nem todo aumento da desigualdade é ruim, nem toda redução é boa. O problema é bem mais complicado. 

 

IHU On-Line – De que ordem são os desafios para superar a desigualdade social no Brasil? 

Marcelo Medeiros - Não existe uma solução simples, rápida e barata para um problema dessa magnitude. Uma fórmula mágica desse tipo provavelmente está fadada ao fracasso. Não é simples fazer o Brasil ter a desigualdade da Áustria, assim como não é simples o Brasil ter o PIB per capita da Áustria. Uma coisa é certa: igualdade tem custos, esses custos não são baixos. Criar uma sociedade justa dá trabalho, e justiça implica reduzir uma série de vantagens que hoje tem a população mais rica.

Por outro lado, igualdade é mais eficiente. É melhor para a economia. Nossos níveis de desigualdade são disfuncionais, atrapalham o bom desempenho de nossa economia, estimulam comportamentos predatórios e desestimulam comportamentos produtivos. Temos que mudar isso, mas vai custar muito, econômica e politicamente, e levará um bom tempo.

 

IHU On-Line - Em que medida a taxação das grandes fortunas pode contribuir no processo de redução da iniquidade social? Em que medida são insuficientes?

Marcelo Medeiros - Não se deve tributar as grandes fortunas. Deve-se tributar todas as fortunas. Impostos são uma contribuição feita para cuidar do bem comum. Todos têm o dever de contribuir para o bem comum, na proporção de suas capacidades. Quem pode mais, paga mais. Por isso, precisamos rever não só a forma como tributamos fortunas, mas toda nossa tributação. Precisamos há anos de algo difícil de fazer, uma reforma tributária. Nas últimas décadas só temos feito remendos, mas nenhuma reforma de maior fôlego. Temos uma carga tributária desequilibrada, que dá muito peso aos tributos sobre produção, consumo e trabalho e pouco peso ao imposto de renda. Deveria ser o contrário, pois o imposto de renda é economicamente muito mais eficiente que outros impostos, além de ser também mais justo.

É importante termos uma tributação melhor, que ao mesmo tempo seja mais produtiva e mais justa que a atual. Mas há muito mais na promoção da igualdade que os tributos. Os impostos são importantes para arrecadar de um lado e fazer investimentos de outro. É com impostos que se cria infraestrutura e se investe em educação, por exemplo. Sem esses e outros investimentos, vamos ficar para trás na corrida internacional estabelecida pela globalização. ■

 

Leia mais...

- Desigualdade de renda no Brasil: os 10% mais ricos e a metade mais pobre. Entrevista com Marcelo Medeiros publicada nas Notícias do Dia, de 01-10-2014, no sítio do IHU; 

- Problema está ligado à questão cultural, e não à baixa renda familiar. Artigo de Marcelo Medeiros reproduzido nas Notícias do Dia, de 03-01-2012, no sítio do IHU. 

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