Edição 476 | 03 Novembro 2015

Xavier Albó – Caminhos de uma vida pelos Andes

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Ricardo Machado

Xavier Albó tem um olhar terno e vívido. As marcas do tempo impressas em sua pele são testemunhas silenciosas de uma vida marcada por descobertas, resistência e luta. Ao comentar sobre a própria história, percebe-a a partir dos outros. Começa falando de Luis Espinal, o padre, artista e ativista espanhol que aterrissou na Bolívia em 1968, em plena ditadura René Barrientos. Este, depois de ter sido eleito via voto popular em 1966, havia mudado a constituição e governava o país ditatorialmente. Essa decisão foi tomada depois que a guerrilha liderada por Che Guevara, assassinado em 1967, avançou sobre o território boliviano.
Foto: Leslie Chaves/IHU

Espinal em vida não fora tão célebre fora da Bolívia, conta Albó. Recentemente, porém, seu nome rodou o mundo depois que o atual presidente da Bolívia, Evo Morales,  presenteou o Papa Francisco com um crucifixo em forma de marreta e foice. Os sentidos da amizade com Espinal ecoa no presente de Albó. Emociona-se ao falar do amigo, assassinado pelos militares, em 1980. Foi o impacto desta amizade que fez Albó, com seu corpo esguio, acotovelar-se às portas do Palácio Quemado,  sede do governo boliviano, para conseguir ficar frente a frente com o Papa Francisco. Lá entregou três livros a Bergoglio que contam a história de Espinal. A vida fez do pequenino catalão Xavier Albó, que aos 16 anos descobriu a América Latina, um homem forte, mas sua sensibilidade não permite longos diálogos sobre o amigo Espinal, pois os olhos mareiam, a goela tranca e a voz não sai.

Chegada à Bolívia

Quando Xavier Albó chegou à Bolívia, em julho de 1952, o país havia sido palco, meses antes, de um trágico momento, em que centenas de pessoas foram mortas no que ficou conhecido como a Revolução Boliviana, considerada um dos primeiros levantes da América Latina feito por operários e camponeses, que reivindicavam a nacionalização das refinarias de petróleo e gás natural.

Do velho ao novo mundo

Albó com outros colegas noviços da Companhia de Jesus foram colocados em um barco da Companhia Itália, na Espanha, e enviados a Buenos Aires. “No dia em que cruzávamos a linha do Equador recebemos a notícia de que Eva Perón havia morrido”, recorda Albó, que, apesar de ser catalão, intitula-se como um espanhol quando se trata de conversar, pois é muito falante. “Quando se faz uma mísera pergunta ao espanhol ele responde com uma palestra”, brinca.

Naquela viagem, descobriram que a distância entre a Espanha e a Argentina era de um oceano e dezenove dias. O tempo de travessia serviu para que os jovens espanhóis, na época não muito inteirados sobre a América Latina, compreendessem o que significava a morte de Evita,  sobretudo porque estavam embarcados com muitos migrantes argentinos. “No navio houve um funeral muito solene, em que cantávamos na missa por Evita. Assim fui introduzido à América Latina”, conta.

O trem da morte

Ao chegar a Buenos Aires, o grupo ficou por quatro dias na capital argentina, depois partiu de trem para La Paz, na Bolívia. Segundo Albó, viajaram entre Córdoba e a fronteira com a Bolívia em um vagão-dormitório, onde depois seriam deixados pela locomotiva até que outra composição os transportasse no território boliviano até a capital. A propósito, na região boliviana, chama-se popularmente a composição de “trem da morte”, devido à altitude em que trafega, apesar de fazer isso com extremo vagar.

“A paisagem no começo era linda, com lagos enormes, depois vinham os perais (o trem tinha cremalheiras, que servem para ele não andar para trás), e assim chegamos a La Paz”, descreve. Ficaram felizes porque havia uma grande festa na cidade e disseram uns aos outros “olha como nos recebem bem com todas essas bandeiras”, mas depois se deram conta de que se tratava da Festa Pátria, celebrada no dia 2 de agosto. “Outra lembrança dos primeiros dias em que estive na Bolívia foi de uma nevasca muito intensa que cobriu Cochabamba. Havia um vale lindo e branco”, relembra. 

Anos de formação

Xavier Albó era muito jovem quando chegou à Bolívia, estava no primeiro ano de noviciado e havia feito os primeiros meses na Espanha. No primeiro dia das férias, ainda em 1952, foram a uma fazenda na Bolívia, que tinha as mesmas características do território antes da reforma agrária realizada por Estenssoro,  que acabou ocorrendo a partir do ano seguinte. Antes de viajar para o Equador, onde fez a formação em Filosofia, concluiu um segundo ano de noviciado, em que aprendeu idiomas, estudou os clássicos e complementou a formação humanística.

“Enquanto eu estudava Filosofia, também realizei um doutorado cuja tese foi sobre o principal comunista do Equador, Manuel Agustín Aguirre ”, explica. “Tornei-me amigo deste senhor, ia à sua casa. Por sorte, não havia muitas coisas escritas sobre ele, então não precisei fazer muitas pesquisas”, brinca Albó, que estudou as ideias marxistas em Aguirre, tese que depois, justifica ele, teve que refutar, uma prática tipicamente jesuíta. “Apesar disso sempre tive boas recordações dele”, diz. Albó só viria a estudar Teologia tempos depois, quando retornou a Barcelona para um período de estudos.

Aproximação com os Quechuas

Albó conta que quando precisou fazer magistério, uma das etapas na formação de um jesuíta, sua experiência foi diferente da maioria de seus colegas. “Nesta etapa da formação todos deveriam ir trabalhar em um colégio, mas comigo foi diferente. Antes, logo que havia chegado eu tive que aprender a língua Quechua. Eu fui o ajudante de um senhor que sabia muitas coisas e era muito competente para idiomas. Assim, as palavras que ele ia aprendendo no idioma Quechua eu deveria colocá-las em ordem. Isso me permitiu ser o sistematizador das coisas que espontaneamente se sabia”, descreve. “Assim foi a maneira como aprendi a língua Quechua rapidamente”, completa.

Depois de estudar no Equador, o jovem catalão, que havia aportado poucos anos antes na América Latina, voltou à Bolívia e a essa altura dominava o idioma Quechua. “Era comum que, alternadamente, fizéssemos discursos no refeitório. E quando chegou minha vez o fiz todo em Quechua. Ninguém entendeu, exceto um colega que compreendia o idioma e sugeriu — Diga-lhes que rezem um pai nosso. Três vezes!”, diverte-se ao lembrar. Com menos de 18 anos, já dominava o idioma Quechua e podia praticá-lo com outros colegas do Equador e do Peru.

Índio, a palavra maldita

Na década de 1950, falar de índios na Bolívia era “proibido”. Os indígenas haviam se convertido, como um passe de mágica europeizante, em “camponeses”, por conta de decisões políticas da época, justamente quando o país era presidido por Estenssoro. “Houve uma profunda reforma agrária na parte andina da Bolívia, a região de maior altitude, ao passo que em outras partes foi o contrário”, explica. A região andina era basicamente habitada por indígenas que falavam Quechua  e Aymara,  idioma que Albó também aprendeu a falar. “Na parte andina, os indígenas compunham cerca de 80% da população quando os territórios começaram a ser ocupados por conta da reforma agrária”, relata.

Para aquele jovem e miúdo espanhol coube, como tarefa principal, aprender idiomas indígenas e, para tanto, o dispensaram de realizar o magistério em uma escola. Isso permitiu uma experiência absolutamente nova, uma espécie de “renascimento” latino-americano. “Fui enviado a uma comunidade Quechua e vivi com os indígenas durante três anos. No tempo em que o mundo olhava para o espaço, na época em que as sondas espaciais eram enviadas à superfície lunar, eu estava em uma comunidade chamada Cliza. Neste lugar, eu passei dois meses, retornando uma vez por semana à cidade para asseio, quando tomava banho, fazia a barba e me confessava. Isso foi muito bom, pois aprimorei bem meus conhecimentos sobre idiomas indígenas”, pondera.

Professor substituto

Albó é falante. A colcha de memórias com que tece a narrativa de sua própria vida é cheia de anedotas. Certa vez, ao substituir a professora, que estava em licença maternidade, de uma pequena escola localizada em uma comunidade Quechua onde vivia (e na época havia rumores de que ali seria fundada uma escola dos jesuítas), protagonizou uma cena de hilária confusão. “Recordo o dia que um senhor chegou e disse: —‘Senhorita! O menino precisar fazer xixi’, pedindo ajuda, sem se dar conta de que a roupa não era um vestido, mas uma batina”, diverte-se Albó.

A zona onde morava era uma fazenda imensa que havia pertencido a Antenor Patiño,  um dos homens mais ricos de sua época, industriário que era comparado aos Rockfeller.  Um cavalo manso, dos mais pacíficos que pertencia à família Patiño, foi emprestado a Albó, que assim percorria as distâncias entre um sítio e outro. 

“Eu nunca fui um bom ginete. Volta e meia era derrubado por um galho de árvore”, conta e gargalha ao se lembrar dos episódios. “Eu visitava as comunidades pedindo apoio financeiro das famílias, um peso apenas, para construirmos uma escola. Mas a família de Patiño, depois que soube das ambições do projeto, discordou, porque seria demasiado longo e sério. Tive que voltar a cada um dos lugares para devolver o dinheiro. Assim conheci todas as comunidades”, conta. “Essa foi minha primeira vivência das contradições de classe.”

O caminho à Antropologia

Tempos depois foi recebido como sacerdote em San Joan, em Barcelona. Na mesma época, Roma sediava o Concílio Vaticano II. O provincial na Espanha o nomeou Bedel, uma espécie de líder hierarquicamente abaixo do chamado Superior. Nesta tarefa, cabia a Albó participar diariamente de reuniões. “Neste momento fui questionado sobre o que gostaria de estudar. Nunca tinha pensado muito sobre isso, mas depois de refletir um pouco resolvi que estudaria Antropologia”, descreve. “Fiz alguns contatos e minha decisão foi a de estudar nos Estados Unidos, em Cornell, Nova York.”

Em apenas três anos concluiu o doutorado em Antropologia, isso porque seu doutorado no Equador permitiu que se beneficiasse de algumas disciplinas. “No departamento de Antropologia da universidade havia uma disciplina sobre o idioma Quechua, onde eu trabalhava como professor assistente, e com isso consegui uma bolsa de estudos”, explica. “Minha tese foi uma combinação entre os temas da Linguística, Antropologia e Sociologia rural. Ao longo de aproximadamente 300 páginas faço uma análise sobre as mudanças ocorridas na Bolívia após a reforma agrária”, conta.

Cipca

Quando retornou à Bolívia, juntamente com outros dois jesuítas, Luís Alegre e Francisco Javier Santiago, Xavier Albó fundou o Centro de Investigación y Promoción del Campesinado – CIPCA. Atualmente, Albó é o único jesuíta do centro que conta com mais de 100 leigos trabalhando em projetos sustentados financeiramente por organizações europeias. “A maior parte das pessoas trabalha na área de ação; ainda que tenhamos vários pesquisadores, o trabalho da Cipca é focado nas ações”, diz. 

La Paz e El Alto

Atualmente Albó é um dos maiores nomes da Antropologia na América Latina e no mundo. Vive na cidade de El Alto, que fica a 4.100 metros de altitude, imediatamente ao lado de La Paz. As duas localidades estão ligadas por um teleférico. “La Paz é uma cidade maravilhosa, cheia de cerros, é uma espécie de Rio de Janeiro sem mar. Ao mesmo tempo que é maravilhosa, é caótica e cheia de contrastes. Temos agora um dos teleféricos mais modernos do mundo, que transporta milhões de pessoas entre El Alto e La Paz”, avalia.

O jesuíta-antropólogo-ativista é um sujeito de hábitos simples. Os poucos cabelos que ainda ostenta sobre a cabeça testemunham o caminhar de uma mente que produz pensamentos entre a erudição do pensamento ocidental e genialidade simples, mas não menos complexa, do pensamento originário. Albó é de matriz europeia, mas foi forjado no contato com os indígenas e vê o planeta terra não como uma prateleira de commodities, mas como Pacha mama. 

Xavier Albó não parece ser afeito a muitas vaidades. Quando fala repetidas vezes da amizade que tem com o Ministro das Relações Exteriores boliviano, David Choquehuanca,  não se refere ao amigo com pompa alguma, senão com carinho de quem o conheceu na comunidade Aymara onde nasceu e cresceu. É com essa simplicidade e sensibilidade que Xavier Albó fica contente de fazer o caminho entre El Alto e La Paz, a bordo do teleférico, que ele classifica como “uma beleza”. Ele vê o mundo nesta dialética entre o caos cosmopolita da capital e a tranquilidade montanhosa de onde mora. Além de tudo, alegra-se com o sistema de transporte implantado na região e com a velhice. “Esta é uma das grandes obras de Evo. E eu, que sou velho, pago a metade do preço”, sorri. 

Posfácio de uma vida em construção

Este perfil foi construído desde uma conversa de mais de duas horas com Xaviér Albó, que visitou o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, onde apresentou duas conferências - Bem-Viver. Impactos na América Latina – IHU ideias e O grande desafio dos indígenas nos países andinos: seus direitos sobre recursos naturais, no dia 27 de agosto de 2015.

Travesso para idade que tem, 81 anos, Albó é um sujeito muito ativo, embora caminhe com passos frágeis e cuidadosos. Durante sua estada no Rio Grande do Sul, sofreu uma queda, que lhe custou, inicialmente, cinco pontos na altura da testa e mais dois dias no Brasil, pois a companhia aérea não permitiu que ele embarcasse devido aos riscos da recente sutura.

O tropeço, porém, era um sinal. Ao chegar à Bolívia, Albó foi ao médico e identificaram um tumor em seu cérebro, que apesar de benigno estava em estágio avançado. Dias depois retiraram o tumor e ele se recuperou muito bem, tanto que logo pediu seu computador, assim que os efeitos da anestesia passaram. Recebeu muitas visitas e emocionou-se com todas elas, levantando-se para abraçar um por um em gesto de gratidão. Tal “travessura” gerou um coágulo na região operada, o que o levou à sala de cirurgia novamente.

Albó teve alta e se recupera bem, ainda que lentamente, dos procedimentos. Faz fisioterapia diariamente e busca retomar, com passos ainda mais frágeis, embora persistentes, seu caminho na América Latina, que começou a ser trilhado há mais de 60 anos, quando seus pés, ao desembarcar de um navio vindo da Espanha, tocaram o continente.■

Leia mais...

- O grande desafio dos indígenas nos países andinos: seus direitos sobre os recursos naturais. Cadernos ihu ideias, edição 225; 

- As peripécias do padre Xavier Albó para conseguir falar com o Papa sobre o seu amigo Luis Espinal. Reportagem com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 12-08-2015, no sítio do IHU;

- “Luis Espinal não era comunista”, afirma Xavier Albó. Reportagem com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 10-07-2015, no sítio do IHU;

- Um Deus de rosto indígena. Entrevista com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 28-07-2011, no sítio do IHU;

- O ideal da suma qamaña. Os indígenas e a nova Constituição da Bolívia. Entrevista com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 14-07-2010, no sítio do IHU;

- A constituição mais humanista da América Latina. Entrevista com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 05-02-2009, no sítio do IHU.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição