Edição 475 | 19 Outubro 2015

A perversa ideologia meritocrática na contemporaneidade

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João Vitor Santos

Antônio Albano de Freitas alerta que um dos perigos da concentração de renda é o imobilismo social, que é onde mora a perversidade da meritocracia

Na modernidade, compramos a ideia de que “se nos esforçarmos” conquistaremos um espaço. Logo, com trabalho, estudo e capacitação poderemos nos tornar trabalhadores mais qualificados e com mais capacidade de geração de renda. Entretanto, como alerta o economista Antônio Albano de Freitas, esse modelo tem limites. A concentração de renda é o primeiro. “Um dos perigos de tamanha concentração de rendimentos é a reprodução do status quo ao longo do tempo. Isto é, o perigo de agravamento da desigualdade de oportunidades e da imobilidade intergeracional, tendo em vista que heranças de patrimônio, por exemplo, têm um papel proeminente na transmissão de vantagens entre gerações para as classes mais afortunadas”, explica.

Ou seja, o filho do “nobre” sempre terá mais oportunidade que o do “plebeu”, embora esse “plebeu” se “esforce” e “mereça” mais. “Daí decorre a perversidade da ideologia meritocrática na sociedade contemporânea, pois as condições iniciais de vida são completamente distintas entre os indivíduos. E, no entanto, depositam-se apenas sobre as elites as virtudes morais pessoais, tais como paciência, trabalho, esforço, etc.”, destaca Freitas.

O entrevistado é palestrante do Ciclo de Estudos O Capital no Século XXI – uma discussão sobre a desigualdade no Brasil. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele antecipa os assuntos que serão abordados em sua conferência Mérito e herança na estrutura das desigualdades brasileiras. A palestra ocorre no dia 20-10-2015, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.

Antônio Albano de Freitas possui graduação em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS e mestrado em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Atualmente, cursa doutorado no Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Em 2012, recebeu o primeiro lugar no XVIII Prêmio Brasil de Economia pela sua dissertação, intitulada "Distribuição e Acumulação de capital: a economia brasileira no capitalismo contemporâneo".

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual o papel, o peso, do mérito e da herança na equação da desigualdade?

Antônio Albano de Freitas - Desde os anos 1970, tem ocorrido um aumento da participação dos patrimônios herdados na riqueza total, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Após um período, ao longo dos anos 1914-1945, em que os patrimônios foram abalados por choques como destruições, inflação, falências e expropriações, a importância da herança tem crescido regularmente. Ainda que a situação não esteja no nível alcançado nas sociedades aristocratas dos séculos XVIII e XIX, em que os 10% mais ricos possuíam 9/10 da riqueza, atualmente estes últimos possuem 2/3 do bolo.

Um dos perigos de tamanha concentração de rendimentos é a reprodução do status quo ao longo do tempo. Isto é, o perigo de agravamento da desigualdade de oportunidades e da imobilidade intergeracional, tendo em vista que heranças de patrimônio, por exemplo, têm um papel proeminente na transmissão de vantagens entre gerações para as classes mais afortunadas. Daí decorre a perversidade da ideologia meritocrática na sociedade contemporânea, pois as condições iniciais de vida são completamente distintas entre os indivíduos. E, no entanto, depositam-se apenas sobre as elites as virtudes morais pessoais, tais como paciência, trabalho, esforço, etc.

 

IHU On-Line - Quais as contribuições da obra O capital no século XXI, de Thomas Piketty  para entender a desigualdade no mundo? Que perspectivas abre acerca da realidade brasileira?

Antônio Albano de Freitas - A obra O capital no século XXI, de Piketty, nos ajuda a entender a desigualdade no mundo, pois vai além da dispersão salarial em sua análise. Vai além das diferenças na hierarquia dos salários e do mercado de trabalho, ainda que estas sejam importantes e estejam se acentuando por conta da elevação na razão dos rendimentos dos superexecutivos sobre o do trabalhador médio.

Piketty aponta, em síntese, que quando a taxa de rendimento do capital é muito mais alta do que a taxa de crescimento da economia, é quase inevitável que a herança (o patrimônio herdado no passado) predomine em relação à poupança (o patrimônio originado no presente). De modo que o empreendedor tenda a se transformar em rentista e as riquezas vindas do passado progridam automaticamente de forma mais rápida — sem ser necessário trabalhar — do que as riquezas produzidas pelo trabalho, a partir das quais é possível poupar.

Brasil

No caso do Brasil, em particular, é preciso lembrar que apenas após o impacto do livro a Receita Federal disponibilizou a base de dados das declarações de imposto de renda. A partir daí começam a surgir estudos que evidenciam que pesquisas domiciliares, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, subestimam o rendimento dos mais ricos e, principalmente, a renda da propriedade. No Brasil, a partir das Declarações do Imposto de Renda Pessoa Física - DIRPF, é possível inferir que a renda média do segmento 1% mais rico da população é cerca de 2,8 vezes maior do que o indicado pela PNAD.

Já no caso do fluxo fiscal de herança anual expresso em porcentagem da renda disponível, no Brasil, não se pode estimar séries longas em virtude da insuficiência e robustez de dados. Porém, para o curto período que vai de 2001 a 2011, é possível estimar que o peso da herança cresce 1,5 ponto percentual em relação às fontes monetárias de que as famílias dispõem. O perigo dessa tendência se acentuar, como dito anteriormente, localiza-se na reprodução das desigualdades temporalmente e na manutenção do status quo, num cenário em que a herança de patrimônios domina o efeito marginal dos estudos e do trabalho.

 

IHU On-Line - Sobre o atual cenário nacional, como atravessar a turbulência de crise econômica e política de modo a não retroceder em políticas públicas que visam diminuir a desigualdade? E como evitar que esses cenários de crise amplifiquem as desigualdades?

Antônio Albano de Freitas – Do ponto de vista de política econômica é preciso colocar em pauta propostas progressivas tais como a tributação dos lucros e dividendos na Pessoa Física na tabela do IRPF, que poderia gerar mais de R$ 50 bilhões; elevar a progressividade e a alíquota máxima do imposto sobre heranças e doações. Exemplo: caso a alíquota efetiva média do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação - ITCMD no Brasil (3,73%) se igualasse àquela dos EUA (29%), estimo que a arrecadação adicional poderia chegar a R$ 31,9 bilhões anuais, passando dos atuais R$ 4,7 bilhões para R$ 36,6 bilhões; reavaliar a política de excessiva renúncia fiscal concedida ao setor privado (que serviu para elevar suas margens de lucro, mas não resultou em maior investimento). E seria mais interessante que o governo investisse diretamente em serviços públicos e infraestrutura; reavaliar as contrapartidas dos financiamentos do BNDES, etc.

Do ponto de vista estritamente político, porém, é bastante complicado, pois a coalizão que governa está em tensão. De maneira um tanto previsível, em virtude das alianças realizadas para se chegar ao poder, a presidente Dilma Rousseff e seus representantes do PT perderam qualquer tipo de autonomia programática. O governo, voluntariamente ou não, cedeu às pressões dos mercados e, agora, implementa uma política recessiva em que a variável de ajuste é o salário real.

Nesse cenário, dificilmente ocorrerão melhoras substanciais na nossa desigualdade socioeconômica, sobretudo pelo término da bonança externa que permitiu um alívio fiscal à época. Num panorama em que há excedente, e todos os estratos de renda têm ganhos absolutos, os conflitos de classe são amenizados, ainda que os ganhos relativos dos de baixo sejam maiores. Porém, quando se interrompe o crescimento, o “jogo” se torna de soma zero (o que um ganha é o que o outro perde). E, assim, prontamente rompe-se o pacto estabelecido implicitamente.

 

IHU On-Line - No Brasil, a renda média doméstica triplicou entre 2000 e 2014, aumentando de 8 mil dólares por adulto para 23,4 mil, segundo o relatório da Credit Suisse . A desigualdade, no entanto, ainda persiste no país. Como compreender essa realidade? Como atacar essa desigualdade no Brasil?

Antônio Albano de Freitas – Para compreender essa realidade é preciso observar não apenas as rendas do trabalho, mas aquelas derivadas da propriedade e do capital, tais como ativos financeiros, imobiliários, etc. A partir dessa perspectiva, não se pode assegurar que a distribuição de rendimentos do Brasil tenha melhorado na última década, a despeito de um avanço na formalização do mercado de trabalho. De fato, o Brasil ainda é um país de extrema concentração patrimonial e de rendimentos de propriedade. 

No universo da DIRPF para o ano de 2013, apenas para ilustrar, a ocupação declarante mais rica foi a de titulares de cartório, que ganharam R$ 71.802 mensais em média — função esta que apenas na década de 1990 passou a exigir concurso público e que, ainda hoje, conta com um terço de titulares não concursados. Ainda no universo da DIRPF, temos que a metade mais pobre dos declarantes apresenta um rendimento total (tributáveis, mais exclusivos, mais isentos) per capita líquido mensal de R$ 1.810, enquanto o segmento 1% mais rico apresenta um rendimento de aproximadamente R$ 120.881.

Para combater essa desigualdade é preciso radicalizar a democracia e enfrentar as mudanças estruturais que o país teima em não estabelecer, tais como a desconcentração da propriedade da terra, a regulação dos meios de comunicação e o financiamento de campanhas eleitorais. A sociedade, ademais, deve ter mais consciência crítica na hora de eleger os seus representantes do poder legislativo. É triste notar que, independente do Partido, ainda ocorra nessa esfera muitos votos ao estilo “voto nele, pois é conhecido da minha família”, “é conhecido do fulano e ele recomendou”. Parece não haver muita autonomia no voto e pouca percepção de sujeito ativo no processo de mudança.

 

IHU On-Line - Quais os limites em se pensar na redução de desigualdades em sociedades baseadas no consumo?

Antônio Albano de Freitas – Uma estratégia de inclusão social baseada exclusivamente no consumo dificilmente pode ser sustentável. Em sociedades em que há um estímulo à emulação pecuniária e ao consumo conspícuo, como alertou Veblen , não existem limites. Este tipo de sociedade, ademais, é mais suscetível ao ciclo econômico, na medida em não existam garantias constitucionais e exista um conflito de classes no interior do Estado Nacional. Isto é, em períodos de crises, em geral, cortam-se as transferências monetárias daqueles mais necessitados e não os benefícios concedidos às elites.

Um projeto de igualdade de oportunidades de uma sociedade, portanto, deve estar assentado não apenas na renda monetária, mas também na efetivação de direitos substantivos, acesso a serviços públicos e moradia adequada. Ou seja, na capacitação do indivíduo para exercer autonomamente sua cidadania.■

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