Edição 475 | 19 Outubro 2015

A “meia verdade” africana

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Márcia Junges e João Vitor Santos | Tradução Hedy Hofmann

Tshepo Madlingozi critica o trabalho das comissões da verdade na África do Sul. Para ele, não houve verdadeira restauração. Como na democracia africana, há verdade somente para elite dominante

A história do continente africano, em especial da África do Sul, é marcada pela opressão e violência contra o povo negro. Com o passar dos anos, e instalação das comissões — que no Brasil, em função da comissão local, ficaram conhecidas como comissões da verdade —, imagina-se que o passado já tenha sido resgatado e que hoje, depois do apartheid, viva-se uma democracia plena. Pura ilusão. Tshepo Madlingozi, coordenador do Mestrado em Direito da University of Pretoria, na África do Sul, destaca que hoje se vive, na verdade, uma pseudodemocracia. “Democracia da burguesia, uma democracia desnudada, onde a maioria é pobre e excluída de estruturas formais da tomada de decisões”, destaca.

Essa realidade é mais bem compreendida a partir do relato que Madlingozi faz sobre a atuação da comissão da verdade africana. Para ele, a comissão não fez uma restauração do passado e tampouco reconheceu as vítimas. “Dado o fato de que a África do Sul é composta de comunidades polarizadas com memórias polarizadas e envenenadas, o que a comissão fez não ajudou a África do Sul a transcender a sua história fragmentada. Nenhuma verdade foi emitida” explica em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E o país — e até o continente — segue sem encarar de frente seu passado, constituindo apenas “meias verdades” que, para o professor, servem para uma pequena elite branca — ou menor ainda negra — que ignora a história. Assim, não se consegue propor uma evolução de uma sociedade congregando e reconhecendo seu povo. “A fim de assegurar a meta da paz, é priorizada a reconciliação de elite entre os políticos. A meta de alcançar estabilidade triunfa sobre a meta de alcançar uma transformação radical da sociedade, sob forma de redistribuição material”, destaca ao explicar o fracasso da justiça restaurativa na África.

Tshepo Madlingozi possui graduação e mestrado em Direito pela University of Pretoria, na África do Sul, onde também coordena um módulo do Mestrado em Direito (Direitos Humanos e Democratização na África). Além da área dos Direitos Humanos, tem experiência em Direito e Movimentos Sociais e Direito e Transformação. Também é integrante do comitê editorial do Jornal do Direito African Human Rights (Direitos Humanos na África) e membro do comitê editorial da Imprensa do Direito da University of Pretoria (África do Sul). É membro fundador do Conselho para o Avanço da Constituição Sul-Africana.

Madlingozi participou do III Colóquio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e o VI Colóquio da Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança - A justiça, a verdade e a memória na perspectiva das vítimas. A narrativa das testemunhas, estatuto epistêmico, ético e político. O evento, realizado em setembro de 2015, foi promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança, Filosofia – Unisinos e Programas de Pós-Graduação em Direito e em Saúde Coletiva – Unisinos. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são as principais constatações e descobertas que as comissões da verdade realizaram sobre o regime discriminatório de apartheid  na África do Sul?

Tshepo Madlingozi - O encargo da Comissão da Verdade e da Reconciliação (TRC - Truth and Reconciliation Commission) era bastante limitado. Em última análise, os principais achados da comissão foram de que um pouco menos de 17 mil pessoas foram vítimas do apartheid, e que um pouco menos de 2 mil pessoas — a maioria do lado do movimento de liberação — eram perpetradores. A TRC constatou que a máquina do governo como um todo estava envolvida nos pecados de apartheid — inclusive a polícia e os serviços militares, o funcionalismo civil, bem como o judiciário e a mídia.   

 

IHU On-Line - Que período histórico foi investigado e em que medida as descobertas irão ajudar a contar uma outra história desse país?  

Tshepo Madlingozi - A TRC abrangeu o período de 1960 a 1994. Esse foi um período extremamente limitado e arbitrário, se lembrarmos que o apartheid começou em 1948, que o colonialismo oficial começou em 1910, quando os colonizadores ingleses e holandeses assinaram um acordo para estabelecer a África do Sul (como uma “terra do homem branco”), e que a conquista da terra começou em 1652, quando o vice-rei português enviado à Índia foi morto na África do Sul.

A história que a comissão contou a respeito da África do sul, portanto, é extremamente parcial e contém muitas lacunas históricas. É verdade que tudo que a comissão pode fazer é reduzir as mentiras que circulam em sociedade. Dado o fato de que a África do Sul é composta de comunidades polarizadas com memórias polarizadas e envenenadas, o que a comissão fez não ajudou a África do Sul a transcender a sua história fragmentada. Nenhuma verdade foi emitida.

 

IHU On-Line - Em que medida se pode falar em reconciliação nacional a partir dos trabalhos empreendidos por essas comissões? 

Tshepo Madlingozi - Também não foi alcançada uma reconciliação. Falo disso no contexto dos colonialismos dos que se assentaram na terra, tais como aquele que tínhamos na África do Sul. O foco dessas comissões é alcançar a paz e a estabilidade, tendo reconciliação como uma meta secundária e complementar. Investe-se energia excessiva em paz e estabilidade, a tal ponto que o trabalho de reconciliação é muito limitado. A fim de assegurar a meta da paz, é priorizada a reconciliação de elite entre os políticos. A meta de alcançar estabilidade triunfa sobre a meta de alcançar uma transformação radical da sociedade, sob forma de redistribuição material. Como tal, a reconciliação é reduzida àquela entre vítimas individuais e perpetradores individuais.

O resultado é o sacrifício de uma reconciliação social profunda e completa, porque beneficiários do conflito (no caso da África do Sul, pessoas brancas ‘comuns’) são exonerados. Assim não é exato falar sobre reconciliação ‘nacional’. Reconciliação da elite e reconciliação individual, conforme expliquei acima, impedem qualquer processo de construção nacional significativa. Finalmente, não pode haver uma nova nação a não ser que a terra que foi roubada durante o colonialismo seja devolvida. Não fazer isso significa que alguns continuam a ser nativos e outros continuam a ser colonizadores. 

 

IHU On-Line - Em que sentido o testemunho das vítimas é importante para que se faça justiça, ainda que tardiamente?

Tshepo Madlingozi - Feitos de modo certo, os testemunhos podem ajudar as vítimas a se sentirem novamente humanas, após anos violados e desumanizados. Testemunhar diante de uma comissão da verdade pode levar a um reconhecimento público e oficial, assim iniciando o processo de cicatrização das vítimas. Todavia, como o enfoque real da justiça transicional é, frequentemente, a estabilidade e reconciliação da elite, a participação das vítimas diante de uma comissão muitas vezes apenas proporciona uma catarse à nação, não às próprias vítimas. As lágrimas e o testemunho das vítimas assim servem para legitimar o comprometimento da elite. Finalmente, a maioria das comissões não presta serviços psicossociais adequados às vítimas e, dessa forma, o resultado é que retraumatizam as vítimas ao contarem suas histórias ou quando as histórias são questionadas pelos perpetradores, ou quando depois as vítimas são perseguidas pela mídia sensacionalista.

Junto com isso, o fato de que os mecanismos de justiça transicional nunca resultam em reparação adequada e restituição significa que as feridas da vítima são abertas sem ser aplicado qualquer bálsamo para mitigá-las. Assim, na minha organização, Khulumani Support Group , constatamos que anos depois as vítimas que testemunharam na comissão da verdade estão amarguradas, envergonhadas e sentem-se traídas.

 

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios que se apresentam na condução dos trabalhos das comissões da verdade? 

Tshepo Madlingozi - O maior obstáculo é aquele ao qual aludi até agora. Comissões são os produtos de justiça transicional. A justiça transicional é um produto tanto de comprometimentos da elite como da pressão dos países poderosos do Ocidente e suas agências intergovernamentais. O trabalho das comissões é restringido por esses acordos da elite e os diktats  dos países ocidentais (a assim-chamada ‘comunidade internacional’). Assim o seu encargo e escopo são com frequência excessivamente limitados. O período da sua investigação muitas vezes é estreito demais. Seus poderes de investigar e trazer para o seu alcance os atos de outros estados e nações são limitados, se não completamente excluídos.

Os outros desafios são questões de timing e sequência. Se a comissão começar o seu trabalho no momento errado, a qualidade do seu trabalho e o produto que finalmente sairá disso é comprometido. Por exemplo, no caso da África do Sul, quando a comissão começou o seu trabalho, ainda havia um grande conflito e assim muitas das vítimas não participaram no processo da comissão porque ou ainda estavam traumatizadas, ou não confiavam nas agências de governo. A questão da sequência também é importante. Será que o país deverá primeiro investir toda a sua energia em acertar as contas com o passado, ou será que deve primeiro obter uma boa paz (paz em ambos os sentidos — um fim à violência física e um fim à violência do empobrecimento)? 

Finalmente, porque as comissões apenas fazem recomendações. O trabalho e o legado das comissões são restringidos pelo fato de que governos sucessores poderão desprezar suas recomendações. 

 

IHU On-Line - Como a sociedade reagiu diante dos trabalhos de elucidação sobre o que houve com as vítimas na África do Sul? 

Tshepo Madlingozi - Na África do Sul, as longas divisões da história trazidas pelo colonialismo e apartheid significaram que não se pode falar de uma só sociedade. Poderíamos preferivelmente, e ainda muito grosseiramente, referir-nos à sociedade branca e à sociedade negra (que inclui todos aqueles que foram oprimidos). A maioria dos membros da sociedade de cor branca pensava que a comissão era uma caça às bruxas contra os brancos. Referiam-se à comissão debochadamente como “uma comissão do choro”, uma plataforma inútil onde as pessoas vão simplesmente para chorar. Uma minoria dentro da sociedade branca reagiu com horror porque não sabia que havia negros sendo mortos, desaparecidos e subdesenvolvidos para proteger o privilégio dos brancos. Ainda após a comissão, a sociedade branca não tem feito nada para estender a mão à população negra a fim de mostrar remorso e trabalhar para terminar com o privilégio dos brancos. Houve muita negação entre os brancos.

Quanto à sociedade negra, ela sabia o que estava acontecendo, mas queria detalhes específicos sobre o que aconteceu. Essas especificidades e detalhes não vieram. Nós ainda não sabemos quem deu a ordem para matar, ou onde estão os cadáveres dos que foram desaparecidos à força — para dar dois exemplos. Ao mesmo tempo, as elites negras estão sofrendo de amnésia e se recusando a reconhecer que a pobreza não é causada por preguiça, como alegam, mas sim é o resultado do apartheid. A atitude da elite negra em relação às vítimas é vergonhosa. 

 

IHU On-Line - Qual é a situação da multiculturalidade na África do Sul após a queda do regime de apartheid? Há uma interação entre as diferentes etnias?

Tshepo Madlingozi - Como nunca houve justiça redistributiva onde o poder econômico e cultural é distribuído equitativamente, os brancos ainda dominam a sociedade civil na África do Sul. A África do Sul ainda não alcançou o que o Professor Boaventura de Sousa Santos  denomina “justiça cognitiva” — uma sociedade onde todo o tipo de conhecer e ser-no-mundo é tratado equitativamente. A África do Sul é arquitetonicamente, esteticamente, epistemologicamente e culturalmente ainda uma província da Europa.

A cultura europeia domina a educação e a vida cultural da nação. Não há multiculturalismo por causa da dominância da cultura Euro-Americana e pelo fato de que um crime ao qual o professor Santos chama de “epistemicídio“ continua. Esse crime acompanhou a colonização da África do Sul quando as epistemologias e culturas indígenas foram mortas. Como a comissão não alcançou a reconciliação social e a formação de uma nação, a África do Sul permanece uma sociedade polarizada, marcada por esse epistemicídio, bem como o racismo contra os negros, guerra contra as mulheres, homofobia e xenofobia. 

 

IHU On-Line - Como analisa a dívida humanitária que a Europa, em termos gerais, e os Estados Unidos e a Inglaterra, especificamente, têm para com a África do Sul e outros países do continente africano? 

Tshepo Madlingozi - Antes de 1652 — o ano da invasão da África do Sul, “pelo menos mil navios portugueses, 600 holandeses e 400 ingleses e franceses lançaram âncora na costa sul-africana”, levando a um saque em grande escala de recursos e pessoas (Terreblanche, 2002). A Companhia Holandesa das Índias Orientais invadiu a África do Sul em 1652 para estabelecer um posto de reabastecimento com a finalidade de atender aos navios holandeses. Os ingleses conquistaram a África do Sul em 1810, para assim tomarem o lugar dos holandeses no saque aos recursos naturais da África do Sul e assegurar a continuidade do seu comércio com a Índia. O país chamado “África do Sul” foi estabelecido em 1910, quando os colonizadores ingleses e holandeses assinaram um acordo de paz para assegurar que a África do Sul fosse um país do homem branco. Esse acordo de paz seguiu-se a uma renhida guerra entre esses colonizadores depois que foram encontrados diamantes e outros minerais.

De 1910 a 1994 os sul-africanos brancos e os países europeus enriqueceram pelo roubo de terras, minerais e mão de obra dos sul-africanos negros. Em segundo lugar, apesar de as Nações Unidas declararem o apartheid um crime contra a humanidade, os Estados Unidos e países da Europa continuaram a ter relações comerciais com o regime do apartheid, e a lucrar desse crime contra a humanidade. Finalmente, agências financeiras internacionais, bancos e países europeus emprestavam dinheiro ao governo do apartheid para possibilitarem a existência do regime. 

Assim, não estamos falando sobre uma dívida “humanitária”, estamos falando sobre a dívida de reparação e injustiça histórica. Em cima dessa dívida há a dívida odiosa que foi incorrida pelo governo do apartheid. Essa dívida deve ser abolida e o dinheiro que foi pago pelo Estado pós-1994 para serviços desse empréstimo deve ser devolvido. 

 

IHU On-Line - Em que sentido se pode falar em uma democratização na África do Sul, em específico, e na África como um todo?

Tshepo Madlingozi - A África do Sul é uma democracia formal — são realizadas eleições, existe um parlamento multipartidário, há um judiciário independente, e em geral é respeitada a liberdade de expressão. Todavia, porque a democracia sul-africana pós-1994 é um produto de um compromisso de elites, é uma democracia de elite. Na África do Sul se impôs o neoliberalismo, estamos falando sobre uma democracia da burguesia, uma democracia desnudada, onde a maioria é pobre e excluída de estruturas formais da tomada de decisões. Quando a maioria pobre se queixa da falta de uma democracia participativa, simplesmente são ignorados, ou se lhes diz que esperem as próximas eleições. Quando a maioria pobre resiste à democracia neoliberal e ao capitalismo, é reprimida pela polícia, pela mídia e pelas organizações não governamentais.

Assim, nessa democracia, o liberalismo para a classe média coexiste com o liberalismo para a maioria pobre. Finalmente, porque a estrutura política que temos hoje é estruturada pela justiça transicional que lhe deu origem, a democracia triunfou sobre a descolonização. Sejamos claros, a justiça transicional é sempre antidescolonização. Dessa forma, elementos de colonialidade, supremacia branca e neocolonialismo continuam lado a lado com a democracia formal.■

Leia mais...

- A derrocada dos movimentos sociais na África pós-Apartheid. Entrevista com Tshepo Madlingozi, publicada em Notícias do Dia, de 13-12-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;

- Khulumani, uma luta que transforma vítimas em cidadãos. Reportagem publicada em Notícias do Dia, de 17-09-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;

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