Edição 470 | 17 Agosto 2015

Os “filhos de Marx e da Coca-Cola”. Os Estudos Culturais e a sua aliança populista

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Carlos A. Gadea

“O que se parece apresentar no horizonte dos Estudos Culturais é uma aliança entre Marx e a Coca-Cola, conformando a noção de ‘cultura popular’ como a extensão de um ‘povo’ ao mesmo tempo ‘consciente’ (Marx) e ‘massificado’ (Coca-Cola) pela lógica dos meios de comunicação e do consumo de bens, modas e ideologias. (...) Quem sabe, a crise do próprio chavismo na Venezuela não esteja se convertendo numa espécie de premonição sobre a realidade que terminaria deslegitimando uma geração de acadêmicos sobre os Estudos Culturais que tem convertido a cultura em objeto disciplinado pela força da invenção política do ‘povo’”, escreve Carlos Gadea.

Carlos A. Gadea é mestre e doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, e graduado em História pelo Instituto de Profesores Artigas – IPA, Uruguai. Atualmente é coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS e integrante do Conselho Universitário e da Câmara de Pós-graduação - Consun da UNISINOS. Tem pós-doutorado na University of Miami (Center for Latin American Studies, EUA). Realizou ainda estudos e pesquisas doutorais no Ibero-Amerikanischen Instituts Berlin - IAI, Alemanha, e na Facultad de Ciencias Políticas y Sociales da Universidad Nacional Autónoma de México - UNAM, México. 

 

Confira o artigo.

Os Estudos Culturais  tiveram uma grande contribuição para as ciências humanas. Principalmente aqueles posteriores às suas origens na Escola de Birmingham . A sua “energia desconstrutiva”, a sua crítica aos “binarismos reducionistas” (do tipo: homem-mulher, negro-branco, ocidente-oriente, etc.) e as sua noções descritivas sobre a cultura do contemporâneo, como o hibridismo e a ambivalência (embora de tradições teóricas mais antigas), podem ser alguns dos aspectos destacáveis dentre suas contribuições. Certos Estudos Culturais provinham de uma rica tradição pragmática da filosofia (no seu interesse pela “realidade” tal qual se apresenta), dos enfoques interacionistas da sociologia e do pós-modernismo dos anos 80 e 90. Estes aspectos se constituíram em fonte de vitalidade e riqueza acadêmica e intelectual, de inquietação teórica e empírica. No entanto, parecem ter-se perdido de vista, e no pior dos casos, terem sido “substituídos” por uma nova investida pós-marxista  (a noção de “hegemonia” na leitura de Ernesto Laclau  foi importante a respeito). 

Assim, o que se parece apresentar no horizonte dos Estudos Culturais é uma aliança entre Marx  e a Coca Cola , conformando a noção de “cultura popular” como a extensão de um “povo” ao mesmo tempo “consciente” (Marx) e “massificado” (Coca-Cola) pela lógica dos meios de comunicação e do consumo de bens, modas e ideologias. Sendo mais claro: trata-se de uma aliança que se estabeleceu, na América Latina com mais precisão, entre os Estudos Culturais com a “razão populista” (a dizer por Ernesto Laclau), entre os Estudos Culturais com diferentes processos políticos “populistas” (ou neopopulistas) recentes no continente. Isto, certamente, impacta nas reflexões sobre o Estado e os movimentos sociais, nas redefinições do “latino-americanismo” e nos contornos da política e da democracia.

Aqui reside, justamente, grande parte do dilema político da região, na tentativa de dar resposta à seguinte interrogação: qual o protagonismo dos Estudos Culturais (ou, para ser mais justo, de certos Estudos Culturais e de certos intelectuais adscritos a ele) sobre os recentes processos políticos “populistas” na região? Em que medida a “cultura popular” definida por estes Estudos Culturais se conecta com as narrativas e retórica política de governos como os de Chávez na Venezuela, Correa no Equador ou Kirchner na Argentina?

Não se deve perder de vista que certos intelectuais, adscritos a esses Estudos Culturais, e hoje muito influentes no contexto latino-americano, são os herdeiros dos fracassos eleitorais do “sandinismo” na Nicarágua em 1990, do desencanto da aventura cubana logo após a crise dos “balseiros” e os chamados “marielitos” no começo dos anos 90, bem como da transfiguração estética dos grupos armados centro-americanos, como o FMLN  de El Salvador, nas denominadas “maras” delitivas juvenis, filhos do exílio californiano dos ex-guerrilheiros. São os espectadores, da mesma forma, dos “populismos de direita” e neoliberais de Fujimori  no Peru e de Menem  na Argentina, das FARC  colombianas sendo parceiras do narcotráfico e da abertura liberal democrata nos Estados Unidos com Bill Clinton . São, inclusive, os que imediatamente conformariam os Grupos sobre a Subalternidade (os denominados “Subaltern Studies”), sob a inspiração de pesquisadores e pesquisadoras da Índia, em aliança com a rede de pesquisadores sobre os Estudos Culturais na América Latina. Estes intelectuais, fundamentalmente, injetariam ao espaço dos Estudos Culturais a “teoria da hegemonia” e da contra-hegemonia; trariam, para o repertório de termos analíticos, palavras como resistência e subversão, em definitivo, uma particular “linguagem do poder”. 

Sabendo-se que o núcleo dos Estudos Culturais está constituído pela defesa daquilo que é “comum e corrente”, o cotidiano das relações sociais, o interesse por outras formas de saber e cultura, pelo popular e o “senso comum” (na sua desconstrução do que se denominava “Cultura”, na medida em que ela é “experiência e prática social comum, da gente comum”), esta introdução da “teoria da hegemonia”  desenharia uma espécie de virada heurística que se pode denominar como “populismo cultural”: a partir de uma concepção ampliada de cultura e política se perceberá como dessa matéria do popular encarnado na “gente comum” se inventa o “povo”, o sujeito por excelência do projeto destes Estudos Culturais. Entende-se, assim, que se para o populismo clássico, por exemplo, na Argentina de Perón, o “povo” estaria conformado pelos “sem camisa” (os “descamisados”), os desempregados e excluídos dos processos de industrialização do século XX, os que moravam nas “villas miserias” de Buenos Aires, os migrantes das províncias mais pobres do país (estigmatizados como “cabecitas negras”), para este novo projeto dos Estudos Culturais o “povo” estava construído a partir da retórica da subalternidade, pelas chamadas “minorias” culturais, pelos “saberes minoritários”, pelas escolhas alternativas na sexualidade, pelos efeitos de uma crítica à modernidade muito próximos das terapias psi da crise da militância da esquerda clássica. Assim, hegemonia, Estudos Culturais e populismo se fundiriam num projeto bastante comum. 

Porém, particularmente, meu olhar não está localizado na herança desses episódios políticos na Nicarágua ou em Cuba, no fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim. Meu olhar é mais influenciado pela experiência neozapatista  do México dos anos 90, da ironia política e midiática da prosa do Subcomandante Marcos  e a sua crítica às vanguardas e aos iluminismos políticos, que sempre andam procurando a asa da hegemonia para se esquentar. Os indígenas de Chiapas  não eram o “povo”; eram mais parte de uma “multidão” que irrompia numa nova cena globalizada e adormecida. Nunca foram “sujeitos” (dignos de tal “prestígio” na teoria sobre a sociedade para alguns) a serem descobertos pelos Estudos Culturais: ao contrário, resistiram a essa tentativa por serem colonizados por um projeto acadêmico e político que, no fundo, pretendia atribuir-lhe uma identidade acorde ao mundo que queria ver e encontrar.

O Subcomandante Marcos resistiu até o cansaço, até a sua morte simbólica muito recentemente anunciada, tal qual aposentadoria de um profissional da palavra. Nas montanhas de Chiapas não havia “povo”, havia tão só indígenas, indígenas que se escondiam (e se deixavam ver) por trás das máscaras de lã de cor preta. Este olhar “pós-neo-zapatista” permite, em definitivo, estar atento para o “impulso populista” que muitos têm empreendido como resultado do programa acadêmico dos Estudos Culturais. Pelo menos, desconfia da possibilidade da existência de um “todo social harmônico”, tão caro para a “teoria da hegemonia” e certas esperanças políticas de esquerda na atualidade. Desconfia da pretensão dos Estudos Culturais por recuperar a “realidade dos homens comuns” subentendidos como “povo”, ao realizar, inevitavelmente, um exercício hermenêutico perigoso (e animaria a dizer, “anti-neo-zapatista”): dividir a realidade entre “povo” e “elite”, “povo” e “oligarquia”, “nós” e a “casta” ou “nós” e “os coxinhas”. O que não estava constituído como tal é inventado à força de interpretação dual da cultura: a “popular” e a da “elite”, convertendo-se em “povo” aquilo que estava amorfo, ausente ou sem identidade, sem ter assumido um processo de subjetivação política, demonstrando-se, assim, que essa virada para “o popular” não deixava de ser um projeto modernizante (sobre os corpos — nas suas diversas dimensões) para certa esquerda política atual. 

Já o manifestou James Carey , crítico da cultura bastante conhecido nos âmbitos dos Estudos Culturais: “os Estudos Culturais são um projeto revolucionário de ação política, um projeto de reconstrução do social” . Assim, não seria este “projeto de reconstrução do social” análogo, por exemplo, ao projeto do “socialismo do século XXI” de Chávez na Venezuela, ou aos embalos da retórica dos Kirchner na Argentina? A “reconstrução do social”, como noção, supõe a morte de uma ordem social que a precederia e que, por força de uma “vontade popular” conduzida por uma liderança que se esconde no jogo da ausência do Estado, estaria prestes a surgir como efeito messiânico da própria invenção do “povo”. Por outro lado, e como bem afirma Beatriz Sarlo , “os Estudos Culturais são uma espécie de neopopulismo seduzido pelo encanto da indústria cultural” ; quer dizer, um programa intelectual e acadêmico que realizou a profecia da Teoria Crítica, apesar de que, nas suas melhores versões, sempre tentou se afastar dela. Concretamente, chega-se a pensar que os Estudos Culturais são herdeiros de certa posição marxista, no século XXI, como “consciência social” da academia, como diria Jon Beasley-Murray . Para isso, alguns intelectuais críticos fazem peregrinações pelas montanhas da Bolívia para se alimentar dos mitos dos índios aymaras, permitindo conectar-se com aqueles “saberes outros”, tão caros, na atualidade, para a reedição constante das suas metanarrativas.

Mais do que marxista, pode-se dizer que os Estudos Culturais, no cerne do seu projeto acadêmico, têm um carácter eminentemente pós-marxista, por duas razões: primeiramente, porque apela a categorias marxistas, como a de ideologia e hegemonia. Em segundo lugar, porque também substitui o marxismo como perspectiva teórica, afastando-se de categorias como a de classe. Na paixão pelo cotidiano, pelo “comum”, pela “cultura popular”, os Estudos Culturais se aliaram a propostas políticas de inclusão social que supuseram, antes de tudo, a invenção da noção de “povo”, pois sem ela não se poderia construir uma relação de antagonismo produtivo para a lógica do poder, e a sua reprodução, instaurado em diferentes lugares do continente. Sem a “oligarquia” (e a noção de oligarquia) não existiria Chávez, ou a sua construção como figura política emanada da crise do sistema de partidos da Venezuela. Sem a “oligarquia” (e a noção de oligarquia) não existiria o kirchnerismo, na medida em que o “povo” poderia ser ativado mediante a convocatória de movimentos sociais, como os “piqueteros”, confundidos com a estrutura do Estado. Com as denominadas “ajudas sociais” e o apoio financeiro aos “piqueteros”, por exemplo, cada vez que a “oligarquia” se ativava no horizonte da política do país, o kirchnerismo tinha suficientes aliados, grupos sociais que saíam às ruas na defesa do “projeto” como contrapartida à inclusão na dinâmica do Estado “social”. 

Considero que, em parte, tudo não passa de uma grande confusão derivada de um abandono daquilo que se iniciou com a crítica pós-moderna. Uma leitura apressada do pós-estruturalismo, um abandono da tradição pragmática e da fenomenologia, e a ascensão dos “filhos de Marx e da Coca-Cola” no terreno sobre os estudos da cultura e do poder outorgaram um rosto algo perverso para os Estudos Culturais na América Latina. Dessa maneira, dois movimentos devem se realizar urgentemente para “libertar” os Estudos Culturais dos seus intelectuais da “razão populista”. Primeiramente, deve-se empreender uma crítica do “latino-americanismo”, entendido este como o resultado de um “populismo de esquerda” que não fez outra coisa do que voltar à ideia do Estado nacional-popular (e desenvolvimentista) como programa político. Num mundo globalizado, pense-se no anacronismo que isto representa. Este “latino-americanismo”, já criticado por várias gerações no século XX, não passa de ser um simples clichê que recria uma estética cultural (por exemplo, na música) que converte Mercedes Sosa  em hit musical. Mercedes Sosa nos anos 80 adquiria um sentido e uma carga simbólica indissociável com a abertura democrática da região, a crítica a uma cultura conservadora e a uma dinâmica social disciplinar instaurada por governos autoritários. Não obstante, escutada na atualidade, só pode se materializar como nostalgia e memória. A sua legitimidade não pode ser adquirida por uma aparente carga política, e sim por uma cenificação de um passado que se presentifica como memória. Assim, este “latino-americanismo” deixa de pertencer ao presente; à nossa experiência atual.

Em segundo lugar, o que esse populismo acadêmico desenvolveu, de fato, é a função de manter a “ficção da hegemonia” que perpetuaria o sonho de um “todo social harmônico”, como diria Beasley-Murray . Deve-se libertar o povo (sem aspas) do “povo” (com aspas), e assim retirar-lhe a responsabilidade de “sujeito político” que se organiza em torno ao Estado; este, em definitivo, promotor, reprodutor e desenhador de “cultura popular”. Materializando-se este gesto, a “multidão” pareceria ter o seu “minuto de fama”. Por que, então, não admitir que seja a “multidão” (esse sujeito dessubjetivizado) um dos principais alvos contemporâneos dos Estudos Culturais?

Quem sabe, a crise do próprio chavismo na Venezuela não esteja se convertendo numa espécie de premonição sobre a realidade que terminaria deslegitimando uma geração de acadêmicos sobre os Estudos Culturais que tem convertido a cultura em objeto disciplinado pela força da invenção política do “povo”. Os Aymaras da Bolívia, dessa maneira, vão começar a se sentir, novamente, com eles mesmos. ■

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