Edição 462 | 30 Março 2015

Os “Processos Midiáticos da Multidão” e uma reflexão sobre um outro jornalismo

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Andriolli Costa e João Vitor Santos

Diego de Carvalho problematiza o conceito de jornalismo a partir da Multidão, pensando assim nos processos midiáticos dentro dessa lógica disforme

Fala-se que o Estado não entendeu a demanda das ruas, mas o mesmo pode se aplicar à mídia. Diante de manifestações, a imprensa tradicional teve de se reinventar — quase ao vivo e no calor dos acontecimentos — para que sua narrativa abarcasse o momento em que o país vivia. Em meio a isso, surgem agentes como a Mídia Ninja. Fazem algo que desorganiza a lógica do discurso jornalístico até então empreendido pela mídia. Diego de Carvalho olha para esse tipo de movimento em sua pesquisa. Pensa não só o momento em que a Multidão age, mas como essa mesma Multidão se operacionaliza enquanto meio de comunicação para narrar — com olhar de dentro — os fatos que desembocam nesse acontecimento.

Em seu livro, Carvalho fixa na “produção da multidão pensada como redes de resistência”. É nessas redes que se manifesta a Multidão. É como se nelas fossem narrados os acontecimentos da Multidão pela própria. Também para entender essa ideia de Multidão a partir de Antonio Negri , o autor problematiza o conceito de jornalismo — e da mídia em si. Nessa tessitura de pesquisa, chega a uma ideia de jornalismo de multidão. “Ele é um agenciamento, conecta Multidão e jornalismo, um devir-multidão do jornalismo. O jornalismo de multidão não precisa se parecer ao jornalismo dominante. É representante das lutas por outra globalização, como também é uma singularidade delas”, explica em entrevista concedia por e-mail à IHU On-Line.

A leitura da obra pode ser um instrumental interessante para entender esse momento, tomando como objeto as produções na rede. É uma materialidade para observar como a Multidão se organiza enquanto resistência à mídia tradicional e ao discurso jornalístico. “E eles fazem uma produção multitudinária midiática. Certos usos das redes sociais. Penso no Facebook, Twitter e Youtube como possibilidades de resistência”, completa o autor, que ainda traz leitura de Deleuze  para compreender o fenômeno. O livro é editado pela Lumen Juris, tem 150 páginas e foi lançado em 2014. Diego de Carvalho é mestre e doutorando em Comunicação Social pela Unisinos. Além de Processos Midiáticos da Multidão (Lumen Juris, 2014) é autor de Crônicas Fora de Controle (Kazua, 2013). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - É possível pensar em um jornalismo de multidão, aproximando-se do conceito proposto por Antonio Negri? Quais experiências midiáticas seriam representantes desta vertente?

Diego de Carvalho - Eu não sou um teórico das mídias, o centro da minha pesquisa é a produção da multidão pensada como redes de resistência. Preocupo-me com a realidade atual, os processos e não com o projeto futuro que acompanha essas redes. Dou importância para os devires produzidos, não para os modelos e identidades. Porém, desde os movimentos por outra globalização para falar nos movimentos de resistência, se é obrigado a falar em suas mídias. Também, o jornalismo dominante se interessa, mesmo que negativamente, pelas lutas. Ou seja, é difícil produzir uma pesquisa sobre o tema sem analisar esse tipo de jornalismo. Portanto, trabalho com os movimentos, mas sou obrigado a pesquisar as mídias de massa e as mídias das resistências.

O conceito de jornalismo de multidão é bem específico, diz respeito a uma relação entre a obra de Negri e a experiência do nó midiático dos movimentos por outra globalização, o Indymedia . Uma relação fácil já que esses movimentos tinham forma e demandas iguais daquilo que Negri chama de Multidão. Não sei se é possível falar sobre movimentos contemporâneos sem os nomear de movimentos de multidão, falar sobre as lutas contemporâneas, sem trabalhar com Negri. Também difícil separar Negri da obra de Deleuze. No doutorado, então, estou trabalhando com okupas  e o 15M , e eles fazem uma produção multitudinária midiática. Certos usos das redes sociais. Penso no Facebook, Twitter e Youtube como possibilidades de resistência; mas isso não é o predominante. Há um uso dessas redes, em sua maior parte, que não diz respeito aos movimentos; isso é realizado por uma multidão de sujeitos. O que me interessa é a produção midiática feita pelos coletivos de resistência e a produção sobre eles feita pela mídia de massa.

O jornalismo dominante é mais bem organizado que a web. Quando trata de manifestações, busca se apropriar das ações, da riqueza da multidão para criar matérias. Importante pensar naquilo que foge do seu controle, quando, mesmo sem querer, potencializa as lutas. Isso acontece principalmente ao dar voz a singularidades de resistência, apresentando falas dos sujeitos envolvidos nos coletivos; falas que poderiam se perder na infinidade de nós das redes sociais, ou poderiam nem chegar a elas. Quanto ao jornalismo de multidão, ele é um agenciamento, conecta Multidão e jornalismo, um devir-multidão do jornalismo. O jornalismo de multidão não precisa se parecer ao jornalismo dominante. É representante das lutas por outra globalização, como também é uma singularidade delas. Ou seja, o jornalismo de multidão faz parte da história, pois diz respeito a um ciclo de lutas iniciado na virada do século e a um modelo da internet já superado. Importante pensar agora nos processos midiáticos da multidão, que não se restringem ao jornalismo.

 

IHU On-Line - Quais características permitem pensar o jornalismo hegemônico como aquele relacionado ao Império?

Diego de Carvalho - Acho que é um tanto óbvio relacionar o jornalismo dominante ao Império, à sociedade de controle, pensá-lo como um dispositivo biopolítico, nos termos de Foucault . Negri diz que, no pós-moderno, o poder se impõe muito mais pelas mídias do que pelas disciplinas. Aidar Prado , teórico brasileiro, exemplifica isso, a partir das identidades sujeitadas impostas pelas mídias. 

As disciplinas na modernidade construíam identidades — um pai, um professor, um aluno —, mas que eram mais estáveis. As redes sociais, provavelmente, fazem o mesmo, mas de forma mais capilar e constante. Se no século XX você estava no trabalho, ou no ócio do fim de semana em algum parque, ou se estava na sala de aula, você estava longe da sala e da TV. Hoje, com a tecnologia atual, no lugar em que estiver você está comunicado com a internet. Agora dizer se é melhor ou pior, no máximo, cria um discurso apocalíptico ou integrado. 

Como diz Deleuze: “importante é pensar nas possibilidades de resistência dessa condição”. Você pode estar a todo tempo recebendo informações e produzindo redes de comunicação. Mas quais informações e redes de comunicação? Eu passava com frequência na frente de uma escola, situada na rua em que morava, em Barcelona, e ficava impressionado ao ver grupos de adolescentes sentados em uma escadaria, todos juntos, mas todos jogando com seus smartphones. Eu me perguntava: por qual motivo estavam juntos, se podiam estar fazendo a mesma coisa sozinhos em casa? Isso exemplifica um agenciamento: homem-instrumento-ambiente. 

Essa imagem dos adolescentes seria semelhante à de um grupo de senhoras, sentadas na frente de uma casa, em uma cidade do interior do Brasil (ou outro país), no meio do século passado (ou mesmo em outro século) todas juntas, mas fazendo tricô. Os sujeitos, os instrumentos, o ambiente, a época, referentes à cena das senhoras ou à dos adolescentes, são diferentes, mas é o mesmo agenciamento: homem-instrumento-ambiente. As redes sociais fogem para todos os lados, não é fácil apreendê-las. Talvez também, por serem mais recentes. 

Já o jornalismo dominante é mais bem mapeado; é mais reconhecido. Penso que é importante esquecer um pouco do jornalismo e dar mais atenção à produção nas redes sociais. Perguntei a um okupa em Barcelona o que ele pensava sobre o jornalismo, ele disse: “é tudo lixo!”. Mas ele acreditava que as pessoas na recepção têm um posicionamento crítico, daí sua função. O importante da existência do jornalismo é a possibilidade de criticá-lo. E isso é fácil. É um nó do poder que está aí exatamente para isso.

 

IHU On-Line - Tendo em vista um ecossistema midiático não binário, onde características como linguagem e narrativa muitas vezes são apropriadas e reapropriadas, o jornalismo de multidão seria uma resistência a quê? 

Diego de Carvalho - Jornalismo é uma das produções do Indymedia, nele são produzidos outros discursos, relações, formas organizacionais. É um mapa no qual o jornalismo é uma das linhas. As relações, os discursos, a organização se insurgem frente a símbolos dominantes como a democracia representativa e o capitalismo. 

 

IHU On-Line – De que forma o conceito de pós-mídia colabora para pensar o atual momento vivido pelo jornalismo? 

Diego de Carvalho - Penso que a reapropriação das mídias por grupos não sujeitados é feita pelos movimentos de resistência. Guattari  e Deleuze, como também Negri, parece que sempre tiveram uma capacidade incrível de se adiantar em relação ao seu tempo. Claro que não estou falando de futurologia. Por isso, o conceito de pós-mídia continua importante, e há toda uma produção de Guattari e Deleuze do fim dos setenta, a qual é utilizada nos dias de hoje. Não sei se foi o Negri quem influenciou isso já que os livros Multidão e Império são marcadamente deleuzianos. Talvez a pós-mídia, também, signifique o decreto de morte do jornalismo.

 

IHU On-Line – Em que estas experiências afetam o modo como a informação chega ao leitor?   

Diego de Carvalho - Há uma produção excedente nas redes sociais, todos produzem. Não há mais necessidade da mediação do jornalismo. Isso aponta um desejo de autonomia da multidão. Ela produz suas mídias. As pessoas ainda defendem o Estado, mesmo que seja o democrático, como se fosse incontestável sua existência. Estranho uma pessoa desejar uma rede aberta, livre, gratuita, para todos como é a internet e ao mesmo tempo defender o capitalismo e a democracia representativa. Claro que eu sei que os perfis e as postagens no Facebook geram dinheiro para a empresa. Mas também sei que as pessoas que produzem no Facebook querem fazer isso sem controle, se assustam com a possibilidade de controle, seja estatal ou financeiro. 

As lutas na Espanha iniciaram em repúdio a leis que seriam criadas contra essa liberdade. Isso gerou um movimento em massa, apoiado pelo povo. Parece que muitas pessoas são libertárias midiaticamente e conservadoras no que diz respeito à macropolítica. A produção na internet apresenta características dos movimentos antissistema: é autônoma, ativa, colaborativa, não capitalizada, inclusiva, descentrada.

 

IHU On-Line – Qual a necessidade da atuação de um profissional no jornalismo de multidão? E de um diploma? 

Diego de Carvalho - Há essa experiência no Brasil da Mídia Ninja. É um laboratório de produção. Pessoas que não têm formação profissional, produzindo algo que se assemelha ao jornalismo. Talvez a linguagem do jornalismo esteja tão interiorizada que a profissionalização acaba sendo inútil, e pior, aparta, corta a multidão. O jornalismo faz parte do cotidiano, por isso, é muito fácil a apropriação da linguagem. As redes sociais são interessantes porque atraem todos. Em pouco tempo de uso, os sujeitos já estão manejando elas.

No Indymedia, no coletivo que escolhia as matérias a serem publicadas, as pessoas que participavam eram ativistas e não jornalistas. Nos sites dos movimentos atuais há toda uma produção textual informativa feita por ativistas. Ninguém mais usa a palavra de ordem das mídias de resistência do início do século: odeia a mídia? Torne-se ela. Isso virou lugar comum.

 

IHU On-Line – Dentro deste novo ecossistema, qual o papel a ser exercido pela mídia tradicional? 

Diego de Carvalho - Talvez a importância dessa mídia tenha sido seu papel educativo. E não estou falando dos seus usos biopolíticos no século 20: educar, disciplinar o povo. É isso que eu falava antes, ter permitido uma linguagem universal, acessível a todos. Tendo sido feito isso, para que ela serve? Mesmo que a mídia tradicional possua suas linhas de fuga, penso que decretar sua morte é algo que já deveria ter sido feito. Não acredito em uma reforma da mídia de massa, como também não acredito em uma reforma da democracia representativa — note que não sou eu quem diz isso, mas os próprios movimentos. Isso me contradiz já que na pesquisa empírica sobre as lutas dos okupas e do 15M eu utilizo as mídias de massa como produtoras de conhecimento. O jornalismo organiza melhor as notícias, é mais modelado comparado com a produção dos inúmeros nós dos movimentos de resistência. Uma forma que talvez devesse ser apropriada, mas conjugada com o conteúdo libertário.

 

IHU On-Line - Ao pensar na necessidade de manter a sustentabilidade do projeto, qual é realmente a instância de independência presente em iniciativas de Mídia Independente? Captar o interesse de órgãos de fomento, editais, patrocinadores ou mesmo de um público interessado em colaborar não são matizes que acabam pautando o veículo? 

Diego de Carvalho - Para se produzir nas mídias sociais basta uma cabeça, um computador e uma banda larga. O Indymedia tinha um grande peso sobre ele, era a mídia dos movimentos por outra globalização. O Indymedia foi uma experiência, que dependia de somas de dinheiro para funcionar. Estive em ocupações em Porto Alegre, fiquei seis meses pesquisando okupações em Barcelona. Nelas sempre havia computadores e acesso a internet. Os membros usavam smartphones. Ou seja, no caso da produção midiática na web não há a necessidade de financiamento.    

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar mais alguma coisa?

Diego de Carvalho - O título do livro já aponta uma passagem de um modelo duro, o jornalismo, para uma produção rizomática, em rede, feita por uma multidão de singularidades. O Indymedia era algo como um meio-termo entre o jornalismo e as redes sociais. Ele era modelado em matérias principais, mas também tinha uma publicação aberta para todos. O conceito de jornalismo de multidão eu não uso mais. Diz respeito à história dos movimentos e da internet. O Indymedia hoje pode ainda servir como produtor, mas não como centro, é só mais uma singularidade midiática da multidão. 

O movimento por outra globalização estava insatisfeito com a velha política e criou uma nova política, estava insatisfeito com a mídia e criou uma nova. Nos dias de hoje alguns elementos se mantêm — tanto nas okupas quanto no 15M — somados às redes de assembleias e comissões e à produção nas redes sociais. Os movimentos de okupação atravessam as últimas décadas, mas posso falar sobre alguns casos. Eles não têm um local, então, okupam; são antissistema, então produzem sua política e relações diferentes das relações capitalistas. Percebe-se em todos esses movimentos — os alterglobalização, os okupas e o 15M — um desejo de autonomia, de retomar a vida. 

Negri e Deleuze servem tanto para pensar os movimentos como também são instrumentos que deveriam servir para a prática libertária, como o que acontece com o anarquismo, a ecologia, os estudos de gênero; agenciamentos em que prática e teoria descaradamente se atravessam. Negri e Deleuze fazem sua critica à transcendência, ao poder exterior e acima da multidão; tratam da forma como as singularidades são capturadas, as linhas de fuga impedidas, e isso se infiltra por todo o social. O poder age no interior dos sujeitos, é afirmado por eles. Um desejo de submissão. Os conceitos de multidão e devir aparecem como possibilidades de resistência: fazer multidão, experimentar os devires. 

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