Edição 462 | 30 Março 2015

Misa Criolla, o cristianismo latino na sonoridade do Sul da Terra

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Ricardo Machado

Cobertura de Eventos - O músico e radialista Demétrio Xavier apresentou a obra de Ariel Ramirez e Félix Luna, descrevendo os processos culturais que atravessam a composição
Foto: Ricardo Machado/IHU

No ano em que a composição da Misa Criolla criada por Ariel Ramirez e Félix Luna completou 50 anos, o filho de um dos autores da obra, Facundo Ramirez, e Patricia Sosa, a convite do Papa Francisco, executaram e interpretaram as canções, em dezembro de 2014, na Basílica de São Pedro, no Vaticano. O tema musical foi debatido na quinta-feira, 26-03-2015, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que recebeu o músico e radialista da FM Cultura Demétrio de Freitas Xavier para a audição comentada desta importante e característica obra musical do Sul do continente Americano e dos povos andinos. O evento integrou a programação da 12ª edição de Páscoa do IHU - Ética, Mística, Transcendência.

Criação

Antes de debater as canções, Demétrio, com seu peculiar sotaque sulista – habla como un gaucho – trouxe um pouco do contexto em que a composição musical da Misa Criolla foi composta. “A missa foi feita em 1964, mas estreia em 1967, em Dusseldorf, curiosamente na data de morte de Anne Frank. Mas qual a relação entre as duas coisas? Ariel Ramirez teve a primeira inspiração para a composição em 1950, quando residia em Wolfsburg, na Alemanha, e duas freiras muito amigas dele lhe contaram que em frente à casa que residia havia um campo de concentração nazista”, conta o conferencista.

Na sequência, Demétrio lê o que Ariel teria dito ao compor a missa. “Ao finalizar o relato de minhas queridas protetoras, senti que tinha que escrever uma obra, algo que fosse para além das classes, das cores, das raças, que fosse algo a respeito do homem. Compreendi que só podia agradecer-lhes, às freiras, escrevendo em sua homenagem uma obra religiosa”, parafraseia.

América Latina e ditadura

Ao pensar no clima político que marcou a segunda metade do século XX na América Latina, especialmente em países como Chile, Argentina e Brasil, Demétrio ressaltou que uma obra musical tão caracteristicamente sulista e andina não teria sido possível após a implementação dos regimes totalitários. “Fazer essa obra com esse caráter teria sido possível antes de 1973, na Argentina? Ou antes de 1964 no Brasil?”, provoca. “Após esses regimes, a música do Sul do Chile, que parece a dos Buenos Aires, era menos ameaçadora, as coisas de campo podiam ser cantadas. Mas imagine pegar algo que recorde os Andes? Quem fizesse isso passava a ser alguém perigoso”, explica.

Lado A, Lado B

Gravado originalmente em formato vinil, a composição de Ariel Ramirez e Félix Luna está divida em dois grandes eixos, onde o Lado A do disco diz respeito à Misa Criolla propriamente dita, de caráter mais litúrgico e que dá nome ao álbum. O Lado B, que se chama Navidad Nuestra (Nosso Natal), com uma dinâmica mais criativa, em que os músicos exploraram perspectivas mais particulares do cristianismo andino. Evidentemente, nas duas partes do disco a sonoridade é tipicamente crioula, onde são explorados ritmos – declamatórios e dançantes – típicos do noroeste argentino e dos Andes, com muita influência boliviana e peruana.

“No disco há a vidala e a baguala, que são ritmos recitativos. Ariel Ramirez vai buscar no mundo andino a gravidade onde orbita a Misa Criolla. Há o javari, ritmo do Alto Perú, cuja origem remonta o final do século XVI e início do século XVII. Mais para o final da missa há o Sanctus em um ritmo de carnaval cochabambino”, descreve Demétrio. “Não vivíamos naquela época esta xenofobia argentina contra os bolivianos”, pondera o conferencista.

Demétrio lembra que Félix Luna dizia, em tom de humildade, que o que havia feito era apenas “quebrar um galho para um amigo”. “Eles queriam era ter mudado a letra da música, torná-la mais crioula e não puderam. Por isso se ‘vingaram’ em Navidad Nuestra, no Lado B, quando apresentam o anjo Gabriel como um milico de povoado todo faceiro porque, em vez de prender um borracho, havia recebido missão menos espúria, que era dizer à Maria que esperava um filho de Deus”, descreve.

El Pampa

Etimologicamente “pampa” diz respeito ao plano, não se refere, especificamente, a uma região de baixa altitude, há os altiplanos. “Carnaval cochabambino e o estilo pampeano falam igualmente do pampa – ‘bamba’ é pampa, isso porque o quechua é muito mais suave. O pampeano tem a cara do mestiço desta região”, destaca.

Ariel Ramirez e Félix Luna

Ariel Ramirez (1921-2010) foi um músico e compositor argentino com uma extensa trajetória, considerado uma das personalidades mais destacadas do nativismo argentino. Foi um divulgador da cultura tradicional do Sul do continente americano por meio de uma numerosa discografia e também com o trabalho frente a sua companhia de folclore entre 1955 e 1980.

Félix Luna (1925-2009) foi um reconhecido historiador, escritor, advogado e intelectual argentino fundador e diretor da revista Todo es Historia. Além de Navidad Nuestra (1964), compôs, junto com Ariel Ramirez, Los caudillos (1966) e Mujeres argentinas (1969).

Demétrio Xavier

Demétrio Xavier é um músico porto-alegrense, especializado na música crioula do Uruguai e da Argentina. Atuando no Rio Grande do Sul e nos dois países platinos, enfatiza sua pesquisa na obra do argentino Atahualpa Yupanqui, tendo traduzido e gravado, em versão bilíngue, seu poema maior, “O Pajador Perseguido”. Venceu a Califórnia da Canção Nativa, festival de música gaúcha, em 2009, com uma poesia musicada por Marco Aurélio Vasconcellos, “A Sanga do Pedro Lira”. Conduz na FM Cultura de Porto Alegre o programa Cantos do Sul da Terra, dedicado à música e à literatura do sul do continente e indicado em 2012 para o Prêmio Press.

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