Edição 462 | 30 Março 2015

Companhia de Jesus - Desafios da modernidade no Brasil Colonial

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Andriolli Costa e João Vitor Santos

Para Carlos Zeron, a disputa entre jesuítas e colonos deveu-se ao mesmo objeto de valor: a força de trabalho indígena, engrenagem fundamental que move a colônia

“A energia que move a colônia e a faz existir como tal é a força de trabalho indígena e, em seguida, a negra. Quem controlasse essa força, controlaria a capacidade de gerar riqueza”, esclarece o professor Carlos Zeron. Essa, fundamentalmente, é a disputa que desde o começo promoveu as rusgas entre jesuítas e moradores. Em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line, por ocasião de sua participação no XVI Simpósio Internacional IHU - Companhia de Jesus. Da Supressão à Restauração, Zeron coloca em discussão a mudança da racionalidade do período. Inseridos na lógica de mercado, nem os próprios jesuítas — defensores da liberdade e dos indígenas — puderam se furtar do uso da força de trabalho escravo e da exploração do próximo. 

É nessa linha que vai o jesuíta Lugi Mamiani, em sua avaliação do Colégio de São Paulo. Nele, trabalhando contra sua vontade, os indígenas — quando pagos — recebiam duas braças de tecido. “A crítica do Mamiani é que o que deveriam pagar aos índios livres como salário era o mesmo que era dado aos escravos como obrigação de não os deixarem nus. E que uns e outros trabalhavam sob coação.” A solução proposta era simples: a mineração do ouro para, com ele, comprar escravos negros. “Existe alguma coisa que permite que Mamiani, sendo membro da Companhia, pense desta maneira”, defende. “Existe algo profundo, no nível das práticas sociais e das ideias, que fez com que a Companhia de Jesus aceitasse aos poucos que houvesse certas dissociações e incorporasse esta autonomização crescente da economia”, problematiza.

Carlos Zeron é graduado em História, mestre em História Social e livre-docente em História Moderna pela Universidade de São Paulo, onde atualmente é professor titular. Seu doutorado foi em Histoire et Civilisations pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, na França. Zeron realiza pesquisas sobre a escravidão indígena e africana, sobre a legislação indigenista na América de colonização portuguesa e espanhola e sobre o pensamento jurídico moderno. É autor de diversas publicações, entre elas: Revoltas populares no Brasil: Missões Guarani e Índios Sateré-Mawé (São Paulo: Caros Amigos, 2014), Contextos missionários: religião e poder no Império português (São Paulo: Hucitec-Fapesp, 2011) e Linha de fé. A Companhia de Jesus e a escravidão no processo de formação da sociedade colonial (São Paulo: Edusp, 2011).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais as origens da tensão entre jesuítas e as demais ordens clássicas?

Carlos Zeron – Eu não sei responder a esta pergunta com precisão, mas posso fazer aproximações em relação ao ambiente que havia na Universidade de Paris, no início do século XVI, onde os companheiros fundadores estudaram. Era um ambiente de debate intenso e por vezes mesmo tenso. A Sorbonne era organizada em vários colégios, onde diferentes escolas filosóficas disputavam hegemonia intelectual: o nominalismo  ou terminismo da Ecole de Montaigu, o scotismo  (predominante entre os franciscanos), o tomismo (cujo centro difusor é o convento de São Tiago, mantido pelos dominicanos) e o reformismo aristotélico dos humanistas reunidos no colégio do cardeal Lemoine  (dirigido então por Jacques Lefèvre d’Etaples ). 

Os companheiros fizeram sua formação no Colégio de Santa Bárbara, um dos centros de retomada do pensamento de São Tomás de Aquino . A formação em teologia, ao longo do século XV, vinha sendo feita com base no Livro das sentenças, de Pedro Lombardo . Um dos resultados do debate a que me referi foi a sua substituição por São Tomás de Aquino, que se difundirá em seguida nas universidades ibéricas dominadas por dominicanos e jesuítas. Isso posto, estas duas ordens religiosas ainda vão desenvolver profundas diferenças teológico-filosóficas, antes do final daquele mesmo século, na disputa sobre a graça e o livre-arbítrio.

 

IHU On-Line - Que ações de Inácio, geral da Companhia, incentivaram a proliferação deste sentimento negativo?

Carlos Zeron – É importante não marcar de maneira muito nítida essa oposição, nem tampouco de maneira muito imediata. Afinal, a própria Companhia nasce com uma vocação que depois mudará, até se tornar uma ordem missionária. Assim, não podemos dizer que houve uma oposição imediata a eles, pois, no início, os jesuítas ainda estavam definindo qual era sua vocação. Também existe a questão de que os membros da Ordem são dispensados dos ofícios de coro; não é uma ordem conventual, mas uma ordem que age no mundo. Há ainda a distinção do Quarto Voto — de obediência ao papa. Essas diferenças distinguiam a Companhia, o que podia gerar rivalidades. Então a Companhia, neste processo histórico, conforme vai definindo sua identidade, seu carisma, sua vocação, vai tomando certa configuração que faz dela uma ordem distinta.

 

IHU On-Line - Como compreender a passagem de uma hegemonia teológico-política dominicana para a jesuítica, que ocorre durante o século XVI? 

Carlos Zeron – Eu me permito responder à sua questão a partir de que escrevi numa resenha do excelente livro do José Eisenberg , As missões jesuíticas e o pensamento político moderno (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000). Pois, essa passagem é perceptível na impostação dessas duas ordens religiosas com relação à questão ameríndia. Desde a chegada dos europeus à América, a Igreja ainda levará bastante tempo para tomar uma posição definitiva em relação à qualificação dos ameríndios. Praticamente meio século. 

Em 1537, o Papa Paulo III  assina a bula Veritas Ipsa. Praticamente ao mesmo tempo, um dominicano da Universidade de Salamanca, frei Francisco de Vitória , profere uma lição de Teologia Moral, que tem uma forte repercussão, logo em 1537-1539, sendo publicada como livro em 1557. Vitória fundamenta, de seu ponto de vista, qual deve ser a posição da Igreja e dos europeus perante os índios: qualificando-os como homens, e não como animais; recusando, ainda que de maneira ambígua, a classificação aristotélica de “servos por natureza”; afirmando seu direito à graça. 

Ele destaca que o tratamento até então predominantemente destinado aos índios era ilegítimo, um abuso. Faz então toda uma discussão em torno do conceito de “domínio”, questionando o direito de os espanhóis dominarem esses territórios e os seus habitantes. A conclusão a que ele chega é que nem Carlos V , por maior que fosse seu império, nem o Papa têm direito de dominar a América e seus habitantes. No entanto, ele aponta algumas situações em que o domínio seria legítimo. Basicamente (para reduzi-las a duas), o direito de evangelizar (isto é, a pregação não poderia ser impedida) e o direito de comércio. 

A diferença entre dominicanos e jesuítas, do modo como a vejo, é que a posição definida por Francisco de Vitória — a qual será retomada por vários teóricos dominicanos em seguida, como Domingo de Soto  — é fundamentalmente dogmática. É a partir da leitura de textos que eles vão qualificando a descrição da situação indígena. Quando os jesuítas começam a atuar, no contexto da colonização, o problema principal já não é apenas definir dogmaticamente o modo como qualificar o índio do ponto de vista teológico; eles já têm que se haver com os problemas concretos e materiais da colonização. Não se trata de especular se eles podem ser ou não escravos de acordo com a visão de Tomás de Aquino, mas sim de comentar o tráfico de escravos indígenas e negros realmente existente, as formas de redução de ambos à escravidão, etc. 

Desta forma, os textos pelos dominicanos no século XVI têm um viés mais dogmático, ao passo que os jesuítas o fazem a partir de um comentário histórico da realidade. A impostação deles, sem deixar de ser dogmática, é também acentuadamente histórica. Essa diferença guarda uma relação estreita com a referida polêmica sobre a graça, que, contudo, ainda precisa ser descrita e estudada.

 

IHU On-Line – Pensando na questão do Brasil, houve várias críticas sobre a relação entre jesuítas e indígenas. De que ordem eram elas e qual a sua pertinência? 

Carlos Zeron – O discurso dos moradores (ou colonos) contra os jesuítas e sua maneira de se posicionar frente aos indígenas se manifesta desde muito cedo. Um cronista e senhor de engenho muito conhecido, Gabriel Soares de Sousa , autor do Tratado descritivo do Brasil, escreve, também em torno de 1587, outro texto menos conhecido, que veio a se chamar Capítulos contra os padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil. Ali já se encontra o rol das acusações que os moradores faziam e continuarão fazendo contra os jesuítas ao longo de todo o período colonial. Interceptado, o documento recebeu uma resposta ponto por ponto dos principais jesuítas que se encontravam então no Brasil. O essencial da disputa concerne ao controle dos índios, que constituíam então a principal força de trabalho existente na colônia.

Na colônia, a terra existe em abundância. A energia que move a colônia e a faz existir como tal é a força de trabalho indígena e, em seguida, negra. Quem controlasse essa força, controlaria a capacidade de gerar riqueza. Essa é a disputa: jesuítas, moradores e a Coroa portuguesa têm interesses distintos, nem sempre convergentes. Tomando cada um deles como grupos uniformes — o que não são — podemos dizer que os jesuítas acusavam os colonos de abuso na exploração da mão de obra indígena. Os colonos diziam o mesmo sobre os jesuítas, além de criticarem o impedimento colocado para que eles também usufruíssem dessa força de trabalho, na medida em que controlavam os aldeamentos reais. Ou seja, a disputa é sobre o mesmo objeto de valor: o índio. Essa disputa vai se tornando cada vez mais tensa, sobretudo nos momentos e nos lugares em que escasseiam os escravos africanos.

 

IHU On-Line - Na sua palestra do simpósio, você menciona os relatos do jesuíta Luigi Vincenzo Mamiani . De que modo estes relatos colaboraram para justificar as críticas dos colonos contra a Companhia?

Carlos Zeron – Mamiani atuou como missionário no sertão da Bahia e, quando se tornou companheiro do Provincial, foi enviado para fazer uma visita no Colégio de São Paulo. No Memorial resultante dessa visita, ele acusa seus colegas jesuítas de praticarem exatamente aquilo que eles acusavam nos colonos: usar índios livres como se fossem escravos. Os índios livres do colégio trabalhavam contra sua vontade; além disso, afirma, não recebiam salário... O que recebiam era o que também se dava aos escravos, diz ele: duas braças de pano por mês, para vestimenta; ou seja, cerca de 4 metros de pano, o que lhe parecia muito pouco. Ele ainda refere valor do salário, 1 vintém  por dia, o que também lhe parecia muito pouco e nem sequer era pago. A crítica do Mamiani é que o que deveriam pagar aos índios livres como salário era o mesmo que era dado aos escravos como obrigação de não os deixarem nus. E que uns e outros trabalhavam sob coação. Ou seja, não havia diferença entre eles.

No entanto, a reflexão de Mamiani não para por aí. Revelando as contas do Colégio, ele chega à conclusão de que havia necessidade de mais 300 escravos para mantê-lo. Sua solução é surpreendente: ele sugere enviar os índios livres do Colégio para as minas para minerar ouro e, com este ouro, comprar escravos negros para trabalhar no Colégio no lugar dos índios livres, que o faziam contra a sua vontade. Mamiani raciocina dentro da lógica econômica mercantil, não pensa o comércio diferente de qualquer outro agente colonial.

 

IHU On-Line – Este tensionamento gerou, por fim, a expulsão dos jesuítas no País?

Carlos Zeron – É sempre importante lembrar que houve várias expulsões dos jesuítas no Brasil: em 1640, de São Paulo; em 1661 e 1684, do Maranhão; e a grande expulsão de 1759. A Ordem foi se modificando em função dessas experiências, bem como redefinindo seu modo de inserção na sociedade colonial. As explicações sobre esta última e mais prolongada expulsão têm se fixado no protagonismo do Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e futuramente Marquês de Pombal . Uma explicação mais imediata tem realmente relação com seu protagonismo, mas, como sempre em história, os fatos não podem ser explicados apenas pelo que se dá de imediato. Esses acontecimentos são importantes, sim, mas normalmente são apenas a culminação de processos mais profundos.

Assim, outro fator explicativo que julgo importante refere-se às disputas internas que enfraqueceram os jesuítas, no final do século XVII e começo do século XVIII. Eles se dividiram exatamente sobre a questão dos índios aldeados, entre duas facções que chamaram vieiristas e alexandristas. Os primeiros eram seguidores de Antônio Vieira  e os segundos não exatamente de Alexandre de Gusmão  — que era o provincial da época —, mas do italiano João Antonio Andreoni . A partir daí, houve uma disputa forte. Após a resolução dessa disputa, os jesuítas passaram a atuar no Brasil de maneira diferente do que vinham atuando desde Nóbrega até Vieira.

O que mudou, fundamentalmente, é que até então os jesuítas reivindicaram e obtiveram a gestão não apenas espiritual, mas também temporal das aldeias reais onde os índios estavam concentrados. Esses grandes ajuntamentos de indígenas, que desempenhavam importantes funções de reserva de mão de obra e de defesa militar, estiveram nas mãos dos jesuítas durante quase 150 anos. A disputa foi diferente no Maranhão e no Brasil, mas, na sua resolução, no Sul, os aldeamentos foram entregues aos moradores particulares, e, no Norte, os jesuítas também perderam o controle de boa parte destes aldeamentos, que foram entregues a outras ordens religiosas — as quais costumavam ter uma atitude diferente, mais laxista, com relação ao emprego da mão de obra indígena.

 

IHU On-Line - De que forma os avanços sociais e políticos da Companhia fizeram com que sua perda de poder estivesse ligada à economia política?

Carlos Zeron – Além dos fatores mencionados acima, o enfraquecimento interno e os tensionamentos com os colonos, uma explicação ainda mais profunda — que propus em minha palestra — diz respeito à aceitação de que a economia, cada vez mais, tinha uma lógica própria que não se submetia a leis divinas e morais. Mamiani demonstra incorporar esse tipo de raciocínio, ainda que com restrições e não poucas ambiguidades. Eu fui buscar a origem desse processo e encontrei discussões que se localizam já no final do século XVI: uma em torno do probabilismo, a disputa sobre a graça e o livre arbítrio, e outra a partir da obra de um jesuíta italiano muito influente, chamado Giovanni Botero . Meu argumento passa por aí.

Veja o caso de Mamiani, propondo a compra de escravos negros por meio de uma complexa operação comercial: existe alguma coisa que permite que ele, sendo membro da Companhia, pense desta maneira. Não foi o único e nem o primeiro, pois existe algo profundo, no nível das práticas sociais e das ideias, que fez com que a Companhia de Jesus — que, na sua origem, buscou submeter a organização do mundo e as práticas humanas a preceitos morais e religiosos — aceitasse aos poucos que houvesse certas dissociações e incorporasse esta autonomização crescente da economia.

 

IHU On-Line – Ocorre, então, que a perda de controle sobre esses indígenas vem de uma mudança da sociedade que deixa de praticar uma política ligada à religiosidade, mas à economia, e os interesses econômicos exigem essas reconfigurações?

Carlos Zeron – Sim, também por causa disso. Mas costumamos dizer que raramente temos uma explicação monocausal em História. Como lembrei há pouco, os jesuítas foram expulsos de São Paulo em 1640; em 1661 e 1684 eles foram expulsos do Maranhão, muitas vezes por fatores imediatos. Mas ao longo de todo esse período vinha acontecendo, nas práticas sociais e no pensamento que podemos chamar “ocidentais”, uma inflexão que fazia com que cada vez mais a economia se autonomizasse em relação a princípios morais e religiosos. Isso culminará no que distinguirá, lá na frente, a sociedade capitalista. No capitalismo, a economia tem a sua lógica própria, funcionalmente e institucionalmente distinta da religião, do parentesco, isto é, das relações sociais que nós designamos por esses termos. Isso é o que distingue o Capitalismo das outras sociedades. 

Esse tipo de mudança na qualificação da economia vem de um longo processo, que podemos acompanhar muito bem seguindo a própria história do mercantilismo, onde as colônias tiveram um papel fundamental. Essa reflexão nos faz perceber que não se trata apenas de antijesuitismo, mas sim um processo de deslocamento e distanciamento entre religião e moral, de um lado, e economia, de outro. Assim, o tema Antijesuitismo pode e deve nos levar a uma reflexão histórica mais ampla e profunda sobre a transformação ao longo dos séculos, não apenas da Companhia de Jesus, mas de toda a sociedade. E nós temos um lugar privilegiado para observar esse processo, que é o Brasil colônia.

 

IHU On-Line – Em nossos tempos, talvez mais do que nunca, esse vínculo entre economia e política se torna indissociável, não?

Carlos Zeron – Com certeza. Mas esse é um processo de longa duração. No início do século XVII, Antoine de Montchrestien escreveu um Tratado de economia política. O conceito já está nomeado desde então, e começará a ser trabalhado até impor-se amplamente. Podemos ver isso no episódio da visita de Mamiani ao colégio de São Paulo. Mas, de maneira geral, os Estados e governos passaram cada vez mais a lidar com a economia como algo que tem uma lógica própria. Era inclusive do interesse dos Estados deixar que o conceito vingasse, por meio de suas práticas legislativas: com a “política econômica” gerando rendimentos, os Estados viam-se fortalecidos por meio de objetos de valor identificados como tais: riqueza monetária, poderio militar, conquistas territoriais, etc.

 

IHU On-Line – Essa economização também afetou os processos internos da Companhia? Ela se deixou economizar?

Carlos Zeron – Completamente. Já em 1558, por exemplo, houve uma reunião em Roma com os superiores da Ordem para discutir a situação das Missões; entre as questões que vieram do Brasil estava se a Companhia de Jesus podia comprar escravos e gado. É notável que, independentemente da discussão em Roma, contudo, a decisão já havia sido tomada no Brasil. Este tipo de solução já vinha sendo praticado, com o argumento de que não havia outra maneira de financiar a missão. O argumento e justificativa dos missionários do Brasil eram de que a missão precisava de fontes próprias de rendimento para se sustentar, já que a esmola real era insuficiente, já que não havia apoio dos moradores, que eram muito pobres, etc. 

Essa lógica econômica vai se impondo desde o começo e se materializando em grandes fazendas de produção de mandioca, engenhos para produção de açúcar, grandes extensões de terra... Sob a justificativa de que necessitava destas atividades econômicas, a Companhia tomou esse rumo. Frequentemente Roma se opôs a essas decisões e enviou visitadores, com ordens de contenção desse tipo de atividade econômica no Brasil (e também política, no que dizia respeito à gestão temporal dos aldeamentos reais), mas estes visitadores muitas vezes voltaram à Itália eleitos procuradores para defender os interesses da missão do Brasil. É um projeto que teve uma força muito grande e definiu a identidade da Província jesuítica do Brasil. E mesmo depois da derrota dos chamados vieiristas, esse projeto econômico e sua base produtiva permaneceram funcionando: continuaram com fazendas, com gado, com trabalho escravo, etc. 

 

IHU On-Line – É possível perceber ecos mais recentes desta economização dentro da Companhia? 

Carlos Zeron – Estou fazendo uma pesquisa sobre as condições de trabalho destes indígenas — que, mesmo livres, eram quase escravos — e o tipo de condição que temos no mundo do trabalho hoje. Os trabalhadores que hoje dependem do salário para sobreviver perderam muitos direitos e encontram-se em uma situação de precariedade muito grande. Em verdade, quando comparamos essa situação com um tipo de escravidão que era frequente no século XVI — não a do servus, mas a do famulus, que é uma escravidão temporária justificada por extrema necessidade —, verificamos que existe uma similaridade muito grande.

Em minha pesquisa, utilizo tratados de teologia moral publicados em meados do século XX, com reedições ao menos até finais da década de 1960. Neles, teólogos de diversas ordens (jesuítas, dominicanos, redentoristas, etc.) justificam que a escravidão é perfeitamente legítima e aceitável do ponto de vista do direito natural e da moral. Se um teólogo diz isso em pleno século XX, talvez haja de fato continuidades entre a escravidão moderna e a atual. O que era esse famulus? No Brasil, era o índio que, em extrema necessidade (por fome, doença, desestruturação ou desaparecimento da sua estrutura tribal comunal, etc.), vendia a última coisa que possuía como recurso para sobreviver: sua força de trabalho. Vendendo-se, esse sujeito ficava em uma situação de escravidão temporária, em torno de 10 anos, conforme a lei da época. 

Os teólogos do período (Domingo de Soto e Luís de Molina ) afirmavam que os famuli tinham a particularidade de conservar sua personalidade jurídica, a qual lhes permitia assinar esse contrato de servidão temporária — o que os distinguia dos servi. Essa situação, estritamente falando, parece mostrar que algumas rupturas entre a época moderna e a contemporânea não foram tão bruscas assim.

 

Leia mais...

- Da Religiosa Política à Economia Política. Transformações do contexto antijesuítico no século XVII. Reportagem publicada na edição 459 da IHU On-Line, de 17-11-2014;

- Companhia de Jesus. Da Supressão à Restauração. Revista IHU On-Line edição 458, de 10-11-2014.

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