Edição 461 | 23 Março 2015

O endireitamento da esquerda pelos vícios estruturais

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João Vitor Santos e Ricardo Machado

Ivo Lesbaupin debate a retomada das perspectivas de esquerda frente ao avanço financeirista na condução das políticas públicas
Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida (www.auditoriacidada.org.br) – acesso em 10/03/2015.

Ao entrar, pela segunda vez, à porta do Palácio do Planalto, Dilma Rousseff usou as chaves da porta da esquerda, que lhe foi entregue pelas urnas no pleito de 2014. No entanto, as políticas públicas e as medidas econômicas adotadas após as eleições têm saído, ao que parece, pela porta da direita. “A presidente Dilma venceu as eleições de 2014, reeleita pela maioria, embora por pequena margem. Durante sua campanha, defendeu ardorosamente políticas de esquerda, afirmou que não recuaria quanto aos direitos sociais e denunciou os adversários como defensores dos banqueiros”, avalia Ivo Lesbaupin, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. No entanto, ele ressalta que desde a vitória nas eleições o governo “se comporta como se o programa de governo vitorioso fosse o do adversário”.

A carência de um projeto de reforma estrutural trava o avanço da pauta da esquerda, esta mais caracterizada pela busca da justiça social, igualdade e garantia dos direitos socais, conforme aponta Lesbaupin. “Em 12 anos de governos do PT, não houve nenhuma reforma estrutural para reduzir a desigualdade social. Nosso sistema tributário é um dos mais regressivos do mundo: nele, os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos. Por quê? Porque o imposto sobre o consumo tem peso maior que o imposto sobre a renda. Assim, um trabalhador que ganha dois salários-mínimos paga praticamente metade do que ganha (48,8%) em imposto sobre o consumo”, explica.

Paradoxalmente, a democracia brasileira, cujo histórico é um tanto quanto incipiente se comparado às democracias mais sólidas do mundo, parece sofrer certas desproporções entre os poderes. “O problema é que o governo decidiu governar só com o Congresso, fazendo alianças as mais amplas para garantir a maioria, aceitando o jogo da barganha. Então, os ‘300 picaretas’ deixaram de ser ‘picaretas’ para se tornarem pessoas respeitáveis, com quem há que negociar e, eventualmente, se aliar”, critica. “O sistema político atual é fonte de corrupção, ele é que deve ser mudado. Não basta mudar o partido no poder, não basta mudar o governante. Ou instituímos uma democracia onde os cidadãos/ãs tenham possibilidade de interferir no processo, tenham poder decisório nas questões fundamentais que lhe dizem respeito — sobretudo na política econômica — ou não haverá solução”, complementa.

Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ e doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, França. É coordenador da ONG Iser Assessoria, do Rio de Janeiro, e membro da direção da Abong. É autor e organizador de diversos livros, entre os quais O Desmonte da nação: balanço do governo FHC (1999); O Desmonte da nação em dados (com Adhemar Mineiro, 2002); Uma análise do Governo Lula (2003-2010): de como servir aos ricos sem deixar de atender aos pobres (2010). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que explica a situação complicada em que se encontra o governo Dilma no início de seu segundo mandato?

Ivo Lesbaupin - É preciso reconhecer, primeiro, que há uma campanha da grande mídia contra o governo. Esta campanha começou durante o processo eleitoral, mas se tornou mais forte no segundo turno. O surpreendente é que, terminadas as eleições, continuou. Motivou mobilizações de rua contra a presidente, até pedidos de volta dos militares. Assim foi até a posse. E continuou depois da posse. Vem insistentemente colocando em debate a possibilidade de impeachment. E praticamente foi a grande "articuladora" das manifestações de 15 de março, onde se misturaram protestos contra a corrupção, por melhores serviços públicos, contra a presidente Dilma, pelo "impeachment" e até faixas pela "volta dos militares" (felizmente minoritários). 

Poder-se-ia dizer que há motivos para o noticiário antigoverno: o escândalo da corrupção na Petrobras, o envolvimento do PT e de partidos da base aliada, etc. No entanto, outros escândalos de corrupção — que não envolvem o PT ou o governo — não são noticiados. Poderíamos citar o caso do cartel do metrô de São Paulo (governos do PSDB), os escândalos do governo do Paraná (também PSDB), a lista dos envolvidos na sonegação do HSBC, fartamente divulgados no exterior e que, aqui, levaram meses para chegar ao noticiário. Mas não: não se quer falar do outro lado, pois o objetivo é "colar" a corrupção ao PT. Por isso, podemos dizer que se trata de uma "campanha". 

Este é um lado da história. O outro lado é produto do próprio governo. A presidente Dilma venceu as eleições de 2014, reeleita pela maioria, embora por pequena margem. Durante sua campanha, defendeu ardorosamente políticas de esquerda, afirmou que não recuaria quanto aos direitos sociais e denunciou os adversários como defensores dos banqueiros. Na reta final, foi o massivo esforço dos movimentos sociais que possibilitou sua vitória.

Desde então, no entanto, se comporta como se o programa de governo vitorioso fosse o do adversário. Mal fecharam as urnas, o governo aumentou os juros. Poucos dias depois, anunciou o novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy , conhecido por suas convicções neoliberais, o qual comunicou que promoveria um "ajuste fiscal". Ao final do ano, o governo editou medidas para contenção dos gastos sociais: alterações nas regras do seguro-desemprego, abono salarial, seguro-defeso, pensão por morte, auxílio-doença e auxílio-reclusão — todas elas afetando direitos dos trabalhadores/as. 

Estamos acompanhando as políticas de austeridade que foram adotadas, por imposição da União Europeia, em diversos países da região. Os resultados, contrariamente ao que seus proponentes diziam, foram desastrosos: a dívida pública aumentou, o desemprego cresceu, os direitos sociais foram restringidos, os salários diminuíram, a seguridade social foi afetada, a pobreza recrudesceu. Estes resultados foram previstos por economistas como Paul Krugman  e Joseph Stiglitz  — ambos detentores de prêmio Nobel. Foram (e continuam) ignorados pela grande mídia e pelos governantes.

É esta política que está sendo adotada agora pelo governo brasileiro. Aqui, ao contrário de lá, ninguém previu boas consequências: haverá aumento de desemprego e redução do crescimento econômico. Estamos avisados. Supostamente, estas medidas são necessárias para o enfrentamento do "caos" em que o Brasil supostamente se encontrava. Para controlar a economia, aumentaram os juros. Embora saibamos, desde o ano passado, que o aumento dos juros não afeta a inflação: os juros estão aumentando há mais de um ano e a inflação continua a subir. O objetivo da subida dos juros, na verdade, é outro: atender aos interesses de banqueiros e rentistas. Cada 1% a mais de juros significa R$ 18 bilhões de acréscimo para a fortuna dos mais ricos. 

Para economizar gastos, cortaram gastos que beneficiam a população mais pobre. Poderiam cortar o excesso dos ganhos dos milionários, poderiam regulamentar o imposto sobre as grandes fortunas — o que renderia no mínimo 20 bilhões de reais. Poderiam reduzir o maior gasto público do governo, o pagamento sobre a dívida: em 2014, quase metade do orçamento (45%) — R$ 978 bilhões — foi gasto com os juros da dívida, amortização e rolagem da dívida. Que se destinam apenas à camada mais alta da sociedade. 

Como é possível reduzir este gasto? Com uma auditoria da dívida. Parte significativa da dívida deixaria de ser paga, por ser irregular — o que nos permitiria aumentar os recursos para as políticas sociais: saúde, educação, saneamento básico, transporte, entre outras. Mas estas medidas não foram adotadas: ao contrário, as medidas prejudiciais aos mais pobres seguiram em frente.

Nós temos um governo eleito com um discurso à esquerda, de defesa dos direitos sociais, mas que está governando com o programa do adversário. 

 

IHU On-Line - E a Operação Lava Jato?

Ivo Lesbaupin - Temos, além disso, a investigação em andamento sobre corrupção ligada a Petrobras. Esta operação detectou o pagamento de propinas por empreiteiras, destinadas a políticos e partidos políticos. Diretores de empreiteiras estão presos. Este sistema de corrupção — que não começou nos governos do PT, é bom lembrar — desenvolveu-se também durante os últimos 12 anos. Por razões óbvias, atinge o governo atual — se não a presidente, membros do partido no governo.

Como era de se esperar, a oposição passou a denunciar o PT e o governo por improbidade administrativa, desfalque de recursos públicos, enriquecimento ilícito. Junto com a grande mídia, trataram de dizer que se trata do "maior caso de corrupção da história do Brasil". Felizmente, alguns analistas de bom senso (eleitores do PSDB) observaram que a corrupção atravessa a história do país, que não é o primeiro nem o maior caso de corrupção. O que se sabe é que os maiores casos de corrupção nunca vieram a público, foram abafados, não divulgados, engavetados e nunca julgados. E perpassaram todos os governos, inclusive os da ditadura civil-militar de 1964-1985, é só lembrar o caso da construção da ponte Rio-Niterói — para citar apenas um — ou o dinheiro das privatizações — sobre o qual pouco sabemos simplesmente porque nunca houve uma auditoria. No entanto, alguns dos envolvidos no processo de privatização de empresas estatais ascenderam da classe média a milionários em menos de quatro anos. O pouco que sabemos, o devemos a Aloysio Biondi , jornalista já falecido, que publicou um estudo, "O Brasil privatizado", onde desvenda alguns dos mecanismos utilizados para transferir o patrimônio público para mãos privadas.

O fato de sabermos que o PT não foi o primeiro não inocenta, porém, o partido. 

 

IHU On-Line - A política de neodesenvolvimento da presidente Dilma Rousseff tem como bandeira a realização de grandes obras e megaprojetos. Essa política traz o empoderamento excessivo de construtoras e empreiteiras do setor privado? Quais as consequências?

Ivo Lesbaupin - O professor Carlos Lessa, em entrevista recente, lembrou o que vem dizendo há anos: não temos um projeto de Brasil. O governo Fernando Henrique Cardoso  resolveu, seguindo a onda neoliberal, aposentar o Estado, deixando o mercado se ocupar do desenvolvimento. Vimos o que aconteceu. A dívida pública saltou: a dívida externa aumentou e a dívida interna decuplicou, ao mesmo tempo que o desemprego disparou. O governo Lula retomou algumas funções do Estado, investiu na melhoria das condições de vida das classes desfavorecidas e conseguiu reduzir significativamente a pobreza, tornando o consumo acessível aos mais pobres e aos trabalhadores. 

Não mudou, porém, na sua essência, a política econômica anterior: a dívida continuou a ser o maior gasto público, variando de 40 a 45% ao ano, enquanto as políticas sociais melhoraram muito lentamente, a saúde nunca ultrapassando 5% e a educação, 4%. Não sem razão, transporte, saúde e educação foram temas constantes das manifestações de junho de 2013. 

A pobreza diminuiu, a remuneração do trabalhador melhorou, sem dúvida. O que explica a melhoria do Índice de Gini , que mede a diferença entre a remuneração dos mais pobres e dos mais ricos. Ele não capta, porém, toda a riqueza e a renda do país: a desigualdade entre o topo (o 1% mais rico) e os mais pobres não diminuiu, porque a camada superior ganhou muito mais (entre outras coisas, por causa dos juros altos). Foi preciso a obra de Piketty  e recentes pesquisas no Brasil (Medeiros et alii, 2014) para desvelar este fato: não houve redução da desigualdade.

E continuamos não tendo um projeto de país: temos um programa de obras, o Programa de Aceleração do Crescimento - PAC, que atende em primeiro lugar aos interesses do setor privado. É só compararmos os principais financiadores das campanhas eleitorais nos últimos anos, para vermos que os maiores doadores são os que mais se beneficiam com as políticas do governo: bancos e empreiteiras. Os primeiros, com o "sistema da dívida" e a política de juros altos, os segundos com os megaprojetos. Foi preciso eclodir o escândalo da Lava Jato para confirmar o que já sabíamos: as empreiteiras doavam para conseguir obras, inclusive a hidrelétrica de Belo Monte . O que desmente a tão difundida propaganda governamental de que ela está sendo construída para atender às necessidades de energia da população pobre (ou do país).

Para levar à frente este projeto de construção de dezenas de hidrelétricas na Amazônia, o governo abandonou os povos indígenas, passando por cima de seus direitos (direitos que o PT lutou para incluir em nossa Constituição) e descuidou inteiramente das preocupações ambientais — tão alardeadas pelas últimas conferências internacionais, uma das quais no Brasil (a Rio+20), e pelos últimos relatórios científicos. Nem a recente crise da água levou o governo a rever seu projeto, mesmo sabendo que a origem desta crise está no desmatamento da Amazônia e do Cerrado. O seu compromisso maior é com o agronegócio, não com a ecologia.

 

IHU On-Line - O governo petista não realizou a venda de nenhuma estatal. No entanto, em especial o governo Dilma, tem entregado à iniciativa privada concessões nas áreas de infraestrutura — aeroportos e rodovias, por exemplo. Isso também pode ser considerado privatização? Quais são os efeitos dessas políticas?

Ivo Lesbaupin - Dilma foi eleita pela primeira vez com um discurso antiprivatização, denunciando seu adversário (do PSDB) como privatista. Ganhou as eleições e, pouco tempo depois, lançou-se num amplo programa de privatizações: portos, aeroportos, rodovias, ferrovias (agora retomado...). Os analistas políticos costumam chamar isso de "estelionato eleitoral". Não parou por aí: realizou o primeiro leilão de área de exploração do petróleo no pré-sal (o campo de Libra ). FHC não teria do que reclamar: foi ele quem iniciou os leilões de áreas de exploração do petróleo. Pois bem, Lula continuou os leilões (embora não do pré-sal) e Dilma fez o primeiro leilão do pré-sal. 

 

IHU On-Line - O que caracteriza um governo de esquerda? Nesse sentido, como podemos caracterizar o atual governo brasileiro?

Ivo Lesbaupin - Um governo de esquerda privilegia a busca de justiça social, de igualdade: centra sua preocupação na realização dos direitos sociais. Um governo de direita privilegia os interesses dos grandes grupos econômicos (banqueiros, empreiteiras, agronegócio). Os movimentos sociais precisaram sair às ruas para defender os direitos dos trabalhadores e tentar impedir a aprovação das medidas provisórias de ajuste fiscal que estão sendo promovidas por este governo. Você poderia retrucar dizendo que é "um governo de coalizão", mas eu lhe perguntaria quem detém a prioridade nesta coalizão (ou quem se beneficia mais). E a resposta vem ao se analisar onde o governo gasta: quase metade do orçamento vai para a dívida. Portanto, o primeiro beneficiário desta "coalizão" é o capital financeiro — bancos e rentistas. O segundo são as empreiteiras. O terceiro é o agronegócio. 

Você me dirá: mas o governo investe em programas sociais. É verdade, mas, no orçamento (rever o gráfico anterior), isso ocupa a menor parte. O governo dá um pouco para os mais pobres, um pouco para a agricultura familiar — e isso já faz uma diferença porque, antes, não davam quase nada. Porém, ele dá muito para os grandes, muito para o agronegócio. É para eles que ele governa, prioritariamente.

 

IHU On-Line - Em 2013, avaliando o governo petista, o senhor dizia que “o sistema tributário é reprodutor de desigualdade”. A correção das distorções desse sistema viria de uma reforma tributária? 

Ivo Lesbaupin - Veja bem: em 12 anos de governos do PT, não houve nenhuma reforma estrutural para reduzir a desigualdade social. Nosso sistema tributário é um dos mais regressivos do mundo: nele, os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos. Por quê? Porque o imposto sobre o consumo tem peso maior que o imposto sobre a renda. Assim, um trabalhador que ganha dois salários-mínimos paga praticamente metade do que ganha (48,8%) em imposto sobre o consumo. Quem ganha trinta salários-mínimos paga 16%. Os tributos que incidem sobre o patrimônio correspondem a apenas 3,7% da arrecadação; o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) — num país que tem uma das maiores concentrações de propriedade da terra — responde por ridículos 0,04% da arrecadação. 

O PT tinha uma proposta de Reforma Tributária em 1995 que transformaria este sistema de regressivo para progressivo (os ricos pagariam mais que os pobres): foi, porém, abandonada quando chegou ao poder. Nem o imposto sobre as grandes fortunas foi regulamentado.

 

IHU On-Line - Há quem diga que a ideia de "governo de coalizão" afastou o PT de seus princípios de fundação, levando o partido a uma crise. O senhor concorda? Há saída para esta crise? É possível pensar em uma refundação do PT?

Ivo Lesbaupin - Ao chegar ao poder em 2003, Lula trabalhou para submeter o partido às suas decisões. Os que se mantiveram fiéis aos princípios originais tiveram que partir, os que ficaram tiveram de obedecer. O partido mudou de rumo: trocou "um projeto de nação por um projeto de poder", nas palavras de Frei Betto . Quando nos lembramos da atuação memorável dos parlamentares do PT na luta contra a corrupção, na CPI do PC (1992) e na CPI do Orçamento (1993), e comparamos com os parlamentares atuais, o partido está irreconhecível: as lideranças foram apagadas, para deixar brilhar apenas uma.

O PT tem militantes de esquerda, tem inclusive políticos de esquerda, mas a sua direção, os seus objetivos são outros. Trata-se de manter o poder a qualquer custo. Praticar políticas opostas às defendidas em seu programa tornou-se habitual. E tudo é justificado: para manter a "governabilidade", para ter maioria no Congresso, por causa da correlação de forças, porque o Congresso não deixa, etc. 

Como diz Chico de Oliveira , ao explicar sua saída do PT ao final do primeiro ano de governo (2003): não conhecemos na história casos de partidos de esquerda que tenham chegado ao poder, mudado de direção e, depois, em virtude de uma luta interna, voltado ao caminho original. Militantes, políticos, grupos internos do PT poderão se manter fiéis à concepção que fez o partido nascer, mas não acredito em "refundação" do PT: o PT é hoje um partido do poder, da ordem, do "establishment". Não se diferencia dos demais. Aliás, foi esta a defesa feita por Lula na época do escândalo do "mensalão" (2005), em famosa entrevista dada em Paris: o que vocês estão descobrindo agora é que o PT é um partido igual aos outros (isto é, que também pratica o "caixa dois"). A maioria dos militantes pensava que ele diria: "cometemos um erro, vamos corrigir e vamos implementar aquilo que sempre defendemos, a ética na política". Mas não. Ora, o PT nasceu dizendo que era um partido diferente. Se é igual, para que PT?

Dizem que o governo quer fazer, mas o Congresso é que não deixa, o Congresso é majoritariamente conservador, etc. Quanto à maioria do Congresso, não há dúvida. O problema é que o governo decidiu governar só com o Congresso, fazendo alianças as mais amplas para garantir a maioria, aceitando o jogo da barganha. Então, os "300 picaretas" deixaram de ser "picaretas" para se tornarem pessoas respeitáveis, com quem há que negociar e, eventualmente, se aliar. E o jogo da barganha se tornou respeitável. Foi assim que Sarney , Renan Calheiros , Romero Jucá , Collor , Maluf  e tantos outros entraram na ampla coalizão. E, obviamente, as concessões foram aumentando e os compromissos originais foram desaparecendo. Havia outro caminho possível: governar com a maioria que lhe deu apoio, com os movimentos sociais, com os trabalhadores — opção feita por Evo Morales  (Bolívia), por Rafael Correia  (Equador), por exemplo. Não se apoiando nas maiorias, o governo preferiu as barganhas, o "toma lá-dá cá", o "é dando que se recebe" e o resultado está aí, à vista de todos. O Congresso de hoje é também resultado do tipo de relação que o Executivo decidiu ter com o Legislativo.

O sistema partidário hoje em dia está em crise: os "indignados" da Espanha questionavam não apenas o partido que estava no poder, questionavam o sistema político. Porque este sistema fazia com que qualquer partido, seja qual fosse, de direita ou de esquerda, liberal ou socialista, ao chegar ao poder, praticasse a mesma política econômica neoliberal, a mesma subserviência aos interesses dos banqueiros. 

Até surgirem partidos de novo tipo, como o Podemos  na Espanha ou o Syriza  na Grécia. Este está tendo seu batismo de fogo, tendo de provar que é diferente dos outros, com muito apoio popular e muita esperança. A ver. De qualquer modo, a tese que seus militantes defendem, lá e também na Itália, na França e aqui, é que o sistema político é que está errado: ou se muda o sistema político ou a situação não vai mudar jamais. Do jeito que está, é o poder econômico que comanda o poder político, seja quem for que ganhe as eleições. Isto é o que se chama de transmutar a democracia no seu contrário, a dominação do capital financeiro, mantendo todas as aparências formais, voto individual, imprensa livre, liberdade de opinião e de expressão...

 

IHU On-Line - Acredita no surgimento de uma nova esquerda no país?

Ivo Lesbaupin - A esquerda nunca desapareceu: aqueles que lutam pela justiça, pelos direitos humanos, que denunciam a desigualdade, que lutam por uma transformação social mais profunda, quebrando as estruturas de dominação da oligarquia, sempre estiveram aí. Só que ficaram em minoria. O que aparecia em primeiro plano era o PT e sua tese de ir mudando aos poucos, sem romper com o neoliberalismo, sem romper com os grupos econômicos dominantes, com sua tese de que não era possível fazer diferente. Agora, aqueles que ficaram marginalizados, desprezados, invisibilizados, estão sendo reconhecidos. Suas críticas estão começando a ser ouvidas. Há partidos de esquerda, há grupos de esquerda, há um campo de esquerda. Como ele vai se manifestar, como vai se organizar, é uma questão de busca e de oportunidade, não é possível prever. Mas virá. E um dos elementos fundamentais da mudança é uma profunda reforma do sistema político. O sistema político atual é fonte de corrupção, ele é que deve ser mudado. Não basta mudar o partido no poder, não basta mudar o governante. Ou instituímos uma democracia onde os cidadãos/ãs tenham possibilidade de interferir no processo, tenham poder decisório nas questões fundamentais que lhe dizem respeito — sobretudo na política econômica — ou não haverá solução.

O momento é propício: há uma insatisfação enorme contra o que o governo está fazendo em termos de ataque aos direitos sociais. Movimentos sociais antes submissos estão reagindo. Além disso, a nível internacional, cresce a insatisfação com as políticas neoliberais e de austeridade. Insatisfação que está gerando partidos de novo tipo e outros tipos de articulações fora da estrutura partidária.

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Ivo Lesbaupin - Quanto aos pequenos grupos que defendem a volta dos militares, "intervenção militar já", "SOS Forças Armadas" e, portanto, a volta do poder discricionário, a repressão às manifestações, aos protestos, a volta das prisões e das torturas dos que pensam diferente, a eles deve se aplicar a lei. Quem conclama o fim da democracia, o restabelecimento de um regime ditatorial, a dominação de um grupelho que se autoatribuiria o poder de decisão sobre o conjunto da cidadania — transformada em população silenciada —, a estes se deve aplicar a mesma lei que se aplica na Europa aos que pregam a volta de Hitler , aos grupos neonazistas.

Quanto aos meios de comunicação, é urgente um projeto de lei que estabeleça uma regulação democrática, para acabarmos com o monopólio da Globo e o oligopólio de seis famílias que controlam estes meios — que são as únicas que têm liberdade de imprensa no Brasil. Para que nós todos tenhamos finalmente liberdade de informação, de comunicação, de opinião e de expressão — que é o que caracteriza a democracia. Queremos o fim da "ditadura" deste oligopólio da mídia.

 

Leia mais...

- Uma análise crítica do governo Dilma: a quem este governo atende em primeiro lugar? Entrevista com Ivo Lesbaupin, publicada no sítio do IHU em 29-09-2014;

- "Não há mudanças nas estruturas geradoras da desigualdade". Entrevista com Ivo Lesbaupin, publicada na edição 386 da IHU On-Line, 16-12-2014; 

- "Derrotar o Serra nas urnas e depois a Dilma nas ruas". Entrevista com Ivo Lesbaupin, publicada no sítio do IHU em 30-10-2010;

- Movimentos sociais e o pós-Lula. Entrevista com Ivo Lesbaupin publicada no sítio do IHU em de 19-04-2010;

- A Vale do Rio Doce e o neoliberalismo no Brasil. Entrevista com Ivo Lesbaupin, publicada no sítio do IHU em 13-08-2007;

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