Edição 460 | 16 Dezembro 2014

Contra a patologização psicológica da Mística

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges e Andriolli Costa / Tradução: André Langer

O psiquiatra Jesús Sánchez-Caro refuta todas as tentativas de imputar às visões de Teresa de Ávila uma origem nas doenças mentais

Mesmo 500 anos depois, os êxtases de Teresa de Ávila continuam inspirando todo tipo de interpretação. Se na época, por vezes, eram tidos por religiosos reticentes como intervenções do demônio, mais tarde, a partir das descobertas da medicina e da avaliação de sua autobiografia (o Livro da Vida), começam a ganhar espaço versões que imputam às visões da santa católica um caráter patológico. Ou seja, as experiências místicas seriam fruto de depressão, histeria ou distúrbios de sono e alimentares.

Médico psiquiatra há 40 anos e fascinado pela vida e mente da mística escritora, Jesús Sánchez-Caro é categórico ao refutar todas estas interpretações — que ele acusa de serem exercícios de pura fantasia. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele ressalta que não existe patologia psiquiátrica neste caso. “Nada tem a ver o amor e o enamoramento de Teresa com a ‘ideia delirante erotomaníaca’” que aparece em alguns doentes mentais graves.

O psiquiatra reflete que mesmo que existam casos de delírios místicos ou misticismo patológico, estes nada mais são que “mera caricatura ou remedo do misticismo normal, do misticismo dos verdadeiros místicos”. E conclui: “uma tentativa patológica desses doentes para imitá-los, razão pela qual se tende em geral a não utilizar esta catalogação diagnóstica”.

Jesús Sánchez-Caro possui graduação e doutorado em Medicina e Cirurgia. Especialista em Psiquiatria, atualmente é professor da Universidad Complutense de Madrid. É autor do livro El medico y la intimidad (Madri: Diaz de Santos, 2001) e do ainda no prelo Los limites de la gloria. El sueño de Teresa de Ávila, ao qual foram dedicados três anos de estudo. Nele, defende que a aproximação à Doutora Mística da Igreja, Teresa de Ávila, só pode ser feita através de uma leitura hermenêutica de seus escritos. Isto é, tendo em conta na interpretação de seus textos não apenas os aspectos médicos e científicos, mas também os aspectos psicológicos, filosóficos, religioso-teológicos, bíblicos, mitológicos, simbólicos e metafóricos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em termos psiquiátricos, como podem ser compreendidas as experiências místicas de Teresa de Ávila, incluindo suas visões e êxtases?

Jesús Sánchez-Caro - As experiências místicas de Teresa de Ávila de modo algum têm a ver com a patologia psiquiátrica; portanto, de forma alguma podem ser compreendidas em termos psiquiátricos. Talvez, e só muito parcialmente, seja possível procurar compreender algumas delas do âmbito da psicologia e da neurobiologia do cérebro.

Assim, as visões que diz metaforicamente ver com “os olhos da alma”, parecem ser, como ela mesma indica, visões imaginárias, frutos de sua extraordinária imaginação criativa e de sua rica fantasia, esclarecendo repetidas vezes que nunca viu nem ouviu por meio dos sentidos corporais. Muito mais difícil é a interpretação das visões intelectuais, nas quais não intervieram nem os sentidos corporais nem a imaginação, mas das quais diz ter uma grande convicção sobre sua autenticidade; aqui a ciência não tem resposta a dar, porque ela nos diz que é graças à fé como as percebe; “quem crê, vê”, se diz no Evangelho de São João (Jo 12, 46).

Por outro lado, não existe nenhuma razão científica para tratar de explicar o êxtase como um problema médico, e isso foi afirmado tradicionalmente por prestigiosos médicos e psiquiatras espanhóis (Gregorio Marañón  — para muitos o médico humanista mais importante da Europa durante o século XX —, Avelino Senra Varela , Amador Schüller , Francisco Marco Merenciano , Juan José López Ibor  — que foi presidente da Associação Mundial de Psiquiatria —, José María Poveda Ariño ...).

 

IHU On-Line - Até que ponto suas experiências místicas podem ser o resultado de algum tipo de desordem mental?

Jesús Sánchez-Caro - Como se indicou anteriormente, suas experiências místicas não têm absolutamente nada a ver com nenhum tipo de transtorno mental. Em alguns doentes mentais graves, sobretudo nos psicóticos (pacientes com ideias delirantes e/ou alucinações, sem consciência sobre a sua natureza patológica), pode-se apreciar, às vezes, delírios de tipo religioso (cada vez menos frequentemente, já que predominam hoje os delírios de tipo paranoide), que são classificados por alguns como delírios místicos ou como “misticismo patológico”; mas este misticismo nada mais é do que uma mera caricatura ou remedo do misticismo normal, do misticismo dos verdadeiros místicos; uma tentativa patológica desses doentes para imitá-los, razão pela qual se tende em geral a não utilizar esta catalogação diagnóstica.

 

IHU On-Line - Como pode ser compreendida a experiência de quase morte de Teresa, quando recebeu a extrema unção e passou quatro dias “sem respirar”, de acordo com a “prova do espelho ”?

Jesús Sánchez-Caro - Teresa de Ávila sofreu sem dúvida um estado de coma profundo (de grau três na escala de Glasgow  — mínimo de consciência —, já que não respondia a nenhum estímulo externo), que durou quatro dias, devido a uma meningoencefalite infecciosa, que foi, muito provavelmente, consequência do padecimento de uma doença infecciosa crônica febril, a chamada “febre de Malta” ou brucelose . Esta doença, que se manifestou na doente na primavera de 1538, é endêmica da província de Ávila e é transmitida principalmente pela ingestão de leite de cabra ou de queijos frescos ou de requeijão feito com este leite. Devemos recordar que a mãe da Santa tinha rebanhos de cabras em Gotarrendura, a apenas 20 quilômetros de Ávila, e que esse leite era, com certeza, consumido no convento onde ela se encontrava (o mosteiro da Encarnação).

 

IHU On-Line - Alguns autores chegam inclusive a dizer que ela era histérica ou esquizofrênica. Qual é o fundamento deste tipo de afirmação?

Jesús Sánchez-Caro - Em relação ao diagnóstico de esquizofrenia — talvez a doença mais grave com a qual um psiquiatra possa se encontrar —, não conheço nenhum trabalho no qual alguém tenha se “atrevido” a aplicá-lo a Santa Teresa, dado que, como se vem afirmando, não existe nenhuma base para classificar sua vida mística dentro do âmbito psiquiátrico.

No que se refere ao diagnóstico de “histeria”, é interessante constatar o seguinte: O termo “histeria” não é reconhecido atualmente em nenhuma das principais classificações das doenças psiquiátricas, a norte-americana (DSM) e a da Organização Mundial da Saúde (OMS). Na classificação norte-americana (última: DSM-V, 2013), que sofreu diversas revisões ao longo dos anos, não figura há mais de 30 anos; na da OMS há mais de 20 anos. É um termo que foi abandonado pela enorme dificuldade, quase total impossibilidade, que havia para fazer seu diagnóstico clínico, e porque, além de ser um termo muito confuso, era empregado em sentido depreciativo e negativo em relação aos pacientes.

O diagnóstico de brucelose ou febre de Malta, a principal doença orgânica que Teresa sofreu, foi realizado há alguns anos — após uma exploração clínica exaustiva dos sintomas revelados em sua descrição autobiográfica em o Livro da Vida e em outros escritos — por alguns dos mais eminentes patologistas espanhóis contemporâneos. Concretamente, pelo Dr. Avelino Senra Varela, catedrático de Patologia e Clínica Médica da Universidade Cádiz, em 1982, e posteriormente reafirmado pelo Dr. Amador Schüller Pérez, catedrático de Patologia e Clínica Médica da Universidade Complutense de Madri e presidente da Real Academia Nacional de Medicina, em 2005.

O reconhecimento de que Teresa padecia da mencionada doença orgânica grave, que evoluiu deixando-lhe importantes e dolorosas sequelas físicas para toda a vida, joga definitivamente por terra toda pretensão de atribuir a ela o “antigo” e “abandonado” diagnóstico de histeria; a mesma conclusão a que já chegaram anteriormente — antes que houvesse o conhecimento de que teve esta doença — com argumentos psicológicos e fenomenológicos os prestigiosos psiquiatras espanhóis acima mencionados.

 

IHU On-Line - Em termos gerais, como se pode compreender o legado de Teresa de Ávila sob o prisma da sua saúde mental?

Jesús Sánchez-Caro - Teresa de Ávila é sem sombra de dúvida uma das pessoas mais equilibradas que se pode encontrar na história da humanidade. É muito fácil comprovar esta assertiva, já que deixou uma imensa obra escrita na qual isso está atestado; e, mais concretamente, basta ler suas cerca de 500 cartas, que felizmente foram conservadas, nas quais se expressa com toda naturalidade e humanidade, revelando uma grande coerência ao longo de toda a sua vida e dando mostras de uma série de virtudes nada correntes.

Por outro lado, a vida de Teresa de Ávila poderia constituir hoje — pela grande inteireza que demonstrou para enfrentar suas graves e dolorosas doenças e os múltiplos e sérios problemas que se lhe apresentaram ao longo da sua vida (pessoais, familiares, inquisitoriais, fundacionais e outros) — um exemplo paradigmático daquilo que na psicologia moderna se denomina de “resiliência” : a capacidade das pessoas para enfrentar e superar as adversidades mais diversas e inclusive sair fortalecidas delas.

 

IHU On-Line - O tema do erotismo é recorrente nos êxtases de Teresa de Ávila. Esse tipo de experiência caracteriza alguma patologia mental? Por quê?

Jesús Sánchez-Caro - Estimo que o único amor, o único amado e o único amante ao qual Teresa se dirige apaixonadamente é Deus; era exclusivamente com Ele que ela desejava unir sua vontade para sempre. E a experiência mística dessa imersão tão profunda no mundo espiritual e de sua fusão sobrenatural com Ele, a vivenciou intensamente não apenas em sua mente, mas também em seu corpo; mas, como já indicava há alguns anos a insigne escritora Simone de Beauvoir , “sem ser escrava de seus nervos nem de seus hormônios”. E esta escritora acrescentou o seguinte: “Santa Teresa propõe de forma totalmente intelectual o dramático problema da relação entre o indivíduo e o Ser transcendente; vive como mulher uma experiência cujo sentido ultrapassa qualquer especificação sexual; devemos classificá-la ao lado de São João da Cruz ”.

Teresa tratou depois de expressar metaforicamente essas experiências místicas tão profundas. É bem conhecido que em um dos seus livros mais poéticos e belos, Conceitos do amor de Deus, inspirou-se no Cântico dos Cânticos de Salomão , tradicionalmente lido pelos judeus e cristãos como uma forma simbólica e metafórica de narrar os amores e desamores do esposo, Deus, e da esposa, a alma; esta bela inspiração bíblica expressou-se também metaforicamente em numerosos poemas e outros escritos.

Portanto, uma vez mais, não existe patologia psiquiátrica. Nada tem a ver o amor e o enamoramento de Teresa com a “ideia delirante erotomaníaca” que aparece em alguns doentes mentais graves: a ideia delirante de que outra pessoa, geralmente de status superior ou uma pessoa famosa, como uma estrela de cinema, está profundamente apaixonada pelo sujeito; são pacientes em geral de tratamento muito difícil (farmacológico e psicoterapêutico) e a doença costuma alterar negativamente o curso de suas vidas.

 

IHU On-Line - Em que medida devem ser consideradas as crises de Teresa e as condições históricas do tempo no qual ela viveu (fervor religioso, subordinação feminina e o medo da Inquisição)?

Jesús Sánchez-Caro - Não entendo exatamente o que quer significar a palavra “crise”; estimo que seria preciso adjetivá-la para ver a que se refere concretamente. Mas não cabe a menor dúvida de que, efetivamente, para qualificar adequadamente Teresa de Ávila e procurar compreender melhor seu misticismo, é preciso conhecer, entre outras coisas, a época histórica e o ambiente cultural — o Século de Ouro espanhol — que lhe coube viver.

 

IHU On-Line - Nesse sentido, como é possível entender a reação de religiosos que conviviam com ela, que atribuíam suas experiências místicas ao Diabo ou inclusive ridicularizavam-nas?

Jesús Sánchez-Caro - Creio que esta pergunta deveria ser muito mais concreta e, em todo caso, respondida por um dos muitos especialistas, mestres espirituais e teólogos especializados na Santa, que conhecem muito melhor do que eu estes aspectos espirituais, sobrenaturais e religiosos.

 

IHU On-Line - Desejaria acrescentar algum aspecto que não foi perguntado?

Jesús Sánchez-Caro - Muito obrigado a toda a equipe que participou da elaboração desta interessantíssima entrevista, que me deu a oportunidade para manifestar meu pensamento sobre Teresa de Ávila. Depois de meditar sobre suas perguntas, ocorrem-me as seguintes observações. 

Todos aqueles que há alguns anos vêm refletindo e estudando a vida e a morte de um ser tão genial e fascinante como Teresa de Ávila já estão acostumados a se encontrar de vez em quando com algum novo diagnóstico que “maltrata”, mais uma vez, sua já “maltratada patografia”. Por isso, talvez, não me surpreendo inteiramente com o fato de que a entrevista que tão amavelmente me enviaram para dar sobre ela a minha modesta opinião, considere-a francamente escorada ou inclinada para o âmbito da psiquiatria, ou seja, para essa parte da medicina que estuda as doenças mentais. 

Talvez tenha pesado nessa orientação o fato de que sou psiquiatra que exerce a psiquiatria clínica há cerca de 40 anos, e de que me sinto fascinado pela vida e mente da mística escritora. Sinceramente, no entanto, penso que influiu ao menos em parte na orientação tão definida desta entrevista um livro que apresenta a patologia da Santa na perspectiva do que alguns especialistas chamam de “psico-história” . Esta, de forma geral, pode ser entendida como “o estudo das motivações psicológicas de acontecimentos históricos” ou, ainda, como o estudo das principais motivações que determinaram a biografia, a vocação, os escritos e inclusive a patologia de Teresa. 

Este colega se valeu para isso da psicanálise freudiana e de algumas pinceladas psicopatológicas que parecem claramente aplicadas ad hoc. Usando, para isso, de muita imaginação, mas com muito pouca ou nula base científica, já que continuar qualificando atualmente Teresa de Ávila com um termo diagnóstico tão obsoleto e abandonado como “histeria” e tratar de psicanalizá-la retrospectivamente, depois de quase 500 anos de seu nascimento, não pode ser — no melhor dos casos — mais que um incrível exercício de fantasia.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição