Edição 204 | 13 Novembro 2006

Retratos da vida no Globo Repórter

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Flávia Seligman e Valério Cruz Brittos

“Pensando o Globo Repórter - Do documentário à reportagem” foi o tema de uma mesa-redonda realizada no último mês de agosto, em Porto Alegre, com Valério Cruz Brittos e Flávia Seligman, da Unisinos, e João Guilherme Barone Reis e Silva e Virgínia Fonseca, da UFRGS. Os professores Valério e Flávia, do PPG em Ciências da Comunicação da Unisinos, elaboraram um artigo sobre o tema a pedido da IHU On-Line, o qual publicamos a seguir.

Flávia é doutora em Artes-Cinema pela USP e Valério Brittos é doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. O artigo foi originalmente publicado nas Notícias Diárias do Instituto Humanitas Unisinos no dia 10-11-2006.

Quem não viveu os anos 1970 não lembra e, portanto, terá dificuldade de imaginar, mas o Globo Repórter já foi bem diferente do que é hoje. Destoando da programação televisiva de puro entretenimento associada a um jornalismo engessado pela censura, o Globo Repórter de então vasculhava nas entranhas do país e transmitia, em rede nacional, um Brasil com fome, pobre, feio e triste. Uma nação que a TV e, principalmente a maior delas, a Globo, na época tentava esconder.

Tais elementos estão muito claros em vários programas da série, especialmente no documentário Retrato de Classe, episódio do programa Globo Repórter exibido em 1977, que faz parte de um capítulo especial na história da televisão brasileira e é um dos raros momentos em que ela agiu em parceria com o cinema. Retrato de Classe, episódio dirigido pelo jornalista e cineasta Gregório Bacic, levou nove meses para ficar pronto. Foi feito com uma dedicação cuidadosa que cerca de 30 anos depois ainda lhe confere um caráter de atual e moderno. Um processo, portanto, inimaginável nos dias de hoje, quando a lógica industrial está cada vez mais presente no fazer TV, incluindo o Globo Repórter, é claro.

O programa Globo Repórter estreou oficialmente em 1973, fruto de uma experiência bem sucedida, o Globo Shell Especial, também destinado ao documentário, mas de caráter mensal. Foi criado como um espaço privilegiado, contando com cineastas engajados, alguns provenientes do Cinema Novo. Nomes, como os dos diretores Eduardo Coutinho, Walter Lima Jr., Maurice Capovilla, João Batista de Andrade e Geraldo Sarno, além do fotógrafo Dib Luft, trouxeram para a televisão a estética e a temática do questionamento e da transparência, que, naquele momento de ditadura militar, não era vista mais nem no cinema.

No caso do episódio Retrato de Classe, baseado em uma foto da classe ginasial de uma escola particular, num bairro de classe média de São Paulo, Bacic foi buscando e reunindo ex-colegas e uma professora, para, ao recriar as trajetórias do grupo, desenhar o perfil da burguesia metropolitana do País. Um país em crise e uma classe média que estava vivendo a derrocada do milagre econômico. Frustrações, desejos inalcançados, preconceito e futilidade fazem parte deste universo de pessoas que poderiam ter alçado vôos bem mais altos e não o fizeram.

Alguns depoimentos transitam entre o cômico e o trágico, como o da dona de casa que afirma que seu maior problema é a “sala de janta”, uma mobília antiga que não combina com o resto da decoração. Bem vestida, dona de um belo apartamento e de um sítio, esta senhora repete várias vezes a palavra problema pronunciando “poblema”, fato deixado ali estrategicamente pelo diretor. No final do depoimento, assiste-se à constrangedora entrada em cena do marido da entrevistada, que diz que gostaria de ter feito muitas outras coisas na vida, como estudar e viajar, mas que, presa pelo casamento, acabou deixando de lado.

Outro depoimento triste que sublinha a mediocridade e o atraso da classe média paulistana é de um rapaz que, por jogar bem futebol, fora convidado para fazê-lo profissionalmente num time francês. Na véspera do embarque, o pai, um industrial, não permitiu a viagem, para que o filho pudesse seguir, cuidando dos negócios da família. Num segundo momento, este mesmo depoente apresenta a mulher grávida, em estado avançado, e discute com ela que faz questão que seja um menino (naquela época não se faziam ecografias reveladoras do sexo do bebê, já nos primeiros meses) para que possa trabalhar com ele na indústria, a mesma que frustrou seu sonho de jogar futebol na Europa.

O Globo Repórter de quase toda a década de 1970, portanto, diferenciava-se não só do conteúdo televisual da época, mas mesmo do de hoje, quando a aceleração da disputa entre os operadores televisivos, própria da Fase da Multiplicidade da Oferta, tem provocado estratégias de captação do público baseadas na popularização e demais elementos de fácil identificação do receptor.
Com isso, o Globo Repórter, por exemplo, tem sido cada vez mais um espaço para reportagens especiais de bichinhos, natureza e saúde, ainda que classes e vidas continuem a demandar retratos de suas existências, conflitos e anseios.

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição