Edição 204 | 13 Novembro 2006

Em geral, as pessoas não se preparam para a aposentadoria

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IHU Online

Sergio Antonio Carlos é graduado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Cursou Especialização e Aperfeiçoamento em Lazer e Recreação na PUCRS. É mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) com a tese A gênese e a estrutura do serviço social brasileiro no período doutrinário católico. Publicou inúmeros livros, dentre os quais citamos Os Idosos no Rio Grande do Sul - Relatório de Pesquisa. Porto Alegre: Conselho Estadual do Idoso, 1997. É um dos organizadores de Psicologia Social Contemporânea. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2001 e um dos autores de Idosos Urbanos Aposentados na Região Metropolitana de Porto Alegre. São Leopoldo: CEDOPE - UNISINOS, 1999.

Sérgio é editor da Revista Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, publicada pela UFRGS.
Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, o pesquisador mencionou que, ao contrário do que as pessoas pensam, a aposentadoria não “vai mudar a vida da pessoa”, pois as características e hábitos do sujeito continuam os mesmos. E, em geral, as pessoas não se preparam para esse momento da vida, muitas vezes, continuando vinculadas ao trabalho, que servia como referência do seu “eu”. Há, ainda, aspectos perversos, como o mercado de trabalho, que entende o sujeito como objeto descartável, e troca trabalhadores com muita experiência por outros que podem custar menos para a empresa.

IHU On-Line - Qual é o perfil do idoso aposentado urbano residente em Porto Alegre? Em linhas gerais, esse perfil está próximo ao dos outros estados? Por quê?

Sergio Antonio Carlos
– Em primeiro lugar, há nesse perfil do idoso aposentado urbano de Porto Alegre o aspecto da longevidade do gaúcho, que é maior em relação a outros estados brasileiros. Outra característica daqui, mas que não é exclusividade gaúcha, é que as pessoas se aposentam e continuam a trabalhar. Qual é a idéia que se tem de aposentado? A primeira idéia quando se fala nessas pessoas, é pensar em alguém que não trabalha mais. Aposentado é igual a não trabalhador. Na realidade, isso não acontece, não são sinônimos necessariamente. Precisamos pensar em “aposentadoria burocrática”, embora essa não seja uma expressão muito feliz. Hoje, com a nova legislação, se completa um número determinado de contribuições e a idade mínima necessária para a aposentadoria. Então, o que acontece é que a pessoa requer sua aposentadoria perante o órgão da previdência social, INSS, o que não significa, contudo, que abandonará a empresa ou seu posto de trabalho. Há exemplos de pessoas que continuam na mesma indústria, na mesma máquina em que trabalhavam antes. Para essa pessoa, a aposentadoria significou um ingresso a mais de dinheiro mensal. Essa pessoa continua desempenhando suas funções. É diferente daquele sujeito que se aposenta por motivos de saúde ou acidente de trabalho. Tanto que perguntávamos para essas pessoas, ditas aposentadas, como se prepararam para a aposentadoria, e elas respondiam que haviam entregado a documentação para o encarregado na empresa, que a encaminhou ao INSS. Essa era, simplesmente, uma relação burocrática com o INSS. Claro que existem pessoas que irão afastar-se, achar que agora vão viver o que não viveram e, certamente, aí há uma questão de mercado de trabalho, com toda a dificuldade que existe hoje em função de emprego, que às vezes não é por emprego, mas a pessoa começa a trabalhar autonomamente. Muitas vezes, então, a continuidade no trabalho acontece por questões econômicas, e as pessoas continuam trabalhando porque precisam, mas se colocarmos para essas pessoas a pergunta sobre se não fosse mais preciso trabalhar, se elas parariam, e elas normalmente respondem que não. E aí vem uma coisa séria, de que nós somos treinados a vida toda para trabalhar, e não para curtir a vida. Então há uma espécie de sentimento de culpa. Por exemplo, se hoje eu, no meio da tarde, não (estivesse) na universidade, mas sim na Feira do Livro, o que até se justificaria em função da minha atividade como professor, porque preciso me informar e conhecer, isso poderia não ser entendido corretamente. Em geral, ir passear, caminhar numa praça, ir à academia fazer esportes enquanto todas as outras pessoas estão trabalhando é mal-visto, parece uma coisa de pessoa desocupada. É uma questão muito arraigada.

Algumas empresas, atualmente, promovem atividades chamadas de cursos de preparação para a aposentadoria, tentando encaminhar as pessoas para esse desligamento da empresa. São dadas opções, em alguns desses cursos, sobre o que dá para se fazer depois de aposentado. Lembro-me de um desses cursos, no qual fui convidado a dar uma palestra. Quando eu estava terminando, uma pessoa levantou e, agradecendo, disse que agora as pessoas se davam conta de que, com o Estatuto do Idoso, era importante o trabalho voluntário, o engajamento em atividades com idosos etc. Seria algo do tipo, “agora eu me aposento e vou fazer um trabalho voluntário”, como sendo uma coisa nova na vida. Mas tivemos uma mestranda aqui na UFRGS, que realizou uma pesquisa com homens de mais de 70 anos que faziam trabalho voluntário, e detectou que todos eles já faziam atividade voluntária desde a adolescência ou desde muito jovens. Era uma prática da vida deles, e não uma coisa nova introduzida depois da aposentadoria. A idéia que se tem é que a aposentadoria vai mudar a vida da pessoa, mas normalmente isso não ocorre. Continuamos com suas características.

IHU On-Line - Quais são as inter-relações entre trabalhadores aposentados da terceira idade e suas repercussões na identidade do eu? Homens e mulheres reagem de forma diferente nesse momento?

Sergio Antonio Carlos
– A idéia para essa pesquisa partiu de um aspecto, que, na época, a professora Maria da Graça Jacques   abordou em sua tese de doutorado na linha da construção da identidade do trabalhador. O que ela mostrava era que o trabalho era um elemento constitutivo da identidade, porque a pessoa se apresenta com a sua profissão. Eu me identifico com o que faço. Se pedirmos para as pessoas descreverem quem elas são, elas falarão de sua profissão, de seu trabalho. Então, partíamos desse princípio. O trabalho está tão arraigado que identifica as pessoas. Nossa questão era se a pessoa se identificava com seu trabalho, como ela se comportaria depois de aposentada, de “romper” com seu trabalho. Então procuramos autores norte-americanos, como Robert Atchley   que abordava o que denominava de fases com relação à aposentadoria como a preparação, a lua-de-mel, a fase do desencantamento: depois a pessoa morria ou se adaptava a outra situação. Achamos que iríamos encontrar isso aqui. E claro que não foi isso que encontramos! Muitas pessoas se aposentavam e continuavam trabalhando. Esse foi o grande nó. A pessoa está aposentada, mas não se desvinculou do mundo do trabalho. Ela continua trabalhando, mas, às vezes, por conta própria, inclusive. Mais tarde, quando consegue romper um pouco mais com essa relação, ela parte para o trabalho voluntário, que é o que encontramos entre esses homens pesquisados, de 70 anos ou mais, aos quais me referi há pouco, que eram empresários, ou altos executivos que no momento estavam trabalhando em algumas entidades assistenciais de grande porte como gerentes. Esse era o trabalho voluntário deles – na mesma coisa que faziam antes. Então ele não mudou, não foi contar histórias para crianças, não foi isso. Ele vai fazer o que sabe fazer, e é bom nisso. Não há, portanto, um desvinculamento, mas uma diminuição da intensidade da atividade. A pessoa busca algo para permanecer ligada à sua atividade anterior.

Situações de trabalho na vida de aposentado

Há estudos com as mulheres, demonstrando que há uma característica um pouco diferente. Consideremos, primeiramente, que hoje trabalhamos com mulheres aposentadas que têm de 60, 70 a 80 anos. São mulheres nascidas da metade do século passado para trás. Então há toda essa situação diferente do perfil que terá uma aposentada no ano 2020, por exemplo. Será um outro mundo. A mulher que trabalhou fora de casa, mantinha duas ou três jornadas. Isso porque ela trabalhava na fábrica, ou no escritório, mais as atividades do lar. Quando ela se aposenta, deixa de trabalhar fora de casa, mas continua com toda a atividade em casa. Outra coisa característica das mulheres desse período é que elas, por terem essa vida doméstica, estão mais acostumadas a permanecerem mais tempo em casa quando aposentadas, “curtindo a casa”, ajeitando tudo aquilo que não se podia fazer quando se trabalhava fora. Cuidar dos netos é outra atividade... Já o homem viveu quase sempre muito mais “na rua”. Há história de homens que, mesmo sem trabalhar, estando aposentados, precisam sair de casa e “ir para o trabalho”. Às vezes, eles vão para a frente da fábrica, encontram os amigos, vão a um boteco perto, ficam “fazendo hora” até o momento em que as pessoas da empresa saem para voltar às suas casas. Assim, eles “ocuparam” o tempo na fábrica.

Trabalhei uma época num banco, no qual tínhamos um colega aposentado que ia para lá todos os dias. Na hora em que iniciava o expediente ele chegava, sentava à mesa perto de um dos gerentes e saía quase na hora em que nós saíamos. Diariamente isso acontecia. Ele não conseguiu se colocar em outra posição, desvencilhar-se da condição antiga.

IHU On-Line - E querendo imprimir um ritmo de trabalho nas suas atividades de casa...

Sergio Antonio Carlos
– Sim, com certeza. Há também a atitude de homens que, aposentados, ficam em casa, e isso se torna um problema, porque nunca estavam em casa e, de um momento para outro, ali se enclausuram. Esses homens “supervisionam” as tarefas domésticas, abrem as panelas para ver o que está sendo cozido, e isso resulta, muitas vezes, em separação. As pessoas não se agüentam mais... Os profissionais que trabalham com preparação para a aposentadoria afirmam que é fundamental a preparação da família para receber o aposentado. Isso porque não é apenas o sujeito se preparar para sair do trabalho, mas é necessário que a família se prepare para receber essa pessoa mais tempo em casa. Senão, o aposentado coloca um chinelo e fica sentado na frente da televisão o dia todo. Ou ele pode querer “administrar” a casa, coisa que não fazia antes, enlouquecendo os outros.

IHU On-Line - As pessoas estão preparadas financeira e psicologicamente para se aposentar? Por quê? Quais são as principais conseqüências da aposentadoria na suas vidas?

Sergio Antonio Carlos
– Acredito que, quando a pessoa está preparada para trabalhar, dificilmente irá colocar-se claramente a situação de que vai parar de exercer sua função. Então, há situações de pessoas que dizem que “a aposentadoria me pegou de surpresa”, uma aposentadoria compulsória, como no serviço público, quando as pessoas com 70 anos são jubiladas. Mas isso não é real, porque as pessoas entram no serviço público sabendo que, nessa idade, deverão sair. Há uma legislação. Mas as pessoas não colocam isso como perspectiva, não pensam o que vão fazer quando se aposentarem. Existem casos, até mesmo dentro da universidade, de professores que continuam como colaboradores voluntários, ligados à Pós-Graduação. Porque não pensamos na aposentadoria? As pessoas associam a aposentadoria à morte. Então, não nos preparamos para nos aposentar porque isso é nos preparar para morrer. Acontece aí um mecanismo de negação. Pensar que não vamos nos aposentar, é como se fôssemos trabalhar eternamente e que as pessoas precisassem sempre de nós. Na hora em que pensamos a aposentadoria como uma coisa normal, teremos que admitir que somos substituíveis. Outras pessoas vão continuar fazendo o que fazemos hoje, de maneira diferente, mas vão continuar, e não vamos mais ser necessários. O que imaginamos é que somos eternos, e a eternidade diz respeito, inclusive, a sermos insubstituíveis naquilo que fazemos. Por que os políticos querem se reeleger? São só quatro anos e não conseguiram fazer nada, então precisam de mais quatro para governar... É a mesma lógica de a pessoa que não quer se aposentar. Outro aspecto é que não é fácil admitirmos as perdas físicas, intelectuais, que de repente não teremos a mesma agilidade física e mental que outras pessoas têm, não agüentaremos mais uma turma de 50, 60 adolescentes para dar aula no início da graduação, essas coisas podem ser irritantes, desgastadas. Muitas vezes, as pessoas não têm mais condições de passar por isso, não ouvem mais direito, têm dificuldade de leitura, e isso coloca o sujeito numa situação de escolha, de ter que decidir e achar alternativas. Na hora em que  admitimos isso, admitimos que estamos “decaindo”.

IHU On-Line - Mas também há um lado bastante perverso no mercado de trabalho, que exclui aquelas pessoas que atingiram uma maturidade profissional e que são simplesmente demitidas e substituídas por jovens que, muitas vezes, não têm a menor experiência...

Sergio Antonio Carlos
– Hoje o mercado de trabalho lida com o trabalhador como um objeto descartável. Enquanto o trabalhador interessa, é preciso que ele faça a tarefa bem-feita, e a um baixo custo. Tomemos o exemplo de uma universidade particular. Por que as substituições são feitas? Por que é preciso que todos sejam doutores para dar aula na graduação se o MEC exige apenas um percentual “X”? Se atingirmos esse percentual, é suficiente. Os doutores excedentes representam um custo na folha de pagamento, e posso substituí-los por um sujeito com mestrado, especialização ou uma simples graduação. Há um percentual para se jogar com isso e a qualidade da avaliação externa não baixa com isso. Vou pagar menos para o novo professor. Não há adicionais por tempo de serviço, por exemplo. São 10 a 15% a menos de salário. Há, portanto, todo um lado econômico em questão. Precisamos pensar que existe um exército de reserva, de pessoas, mão-de-obra, que são altamente qualificadas e dispostas a trabalhar por qualquer salário. Hoje, “damos um chute” e saltam profissionais de todos os cantos, alguns até dispostos a trabalharem sem receber, apenas para adquirirem experiência. Com isso, na medida em que há uma saturação no mercado, é possível “descartar” as pessoas para substituí-las por outras que irão diminuir o custo de produção. Essa é a lógica, e aí não interessa se a pessoa é muito capaz ou não. O tempo que será levado para treinar o novo funcionário poderá compensar a perda que haverá no ritmo inicial. Mas é uma lógica de descarte, de mercadoria, como se usa uma caneta e se joga fora. Antes havia o tinteiro, agora jogamos a caneta inteira no lixo.

IHU On-Line - Como se configura o mercado de trabalho formal e informal para os aposentados?

Sergio Antonio Carlos
– Não sei os dados numéricos, mas a questão da informalidade existe e não é só para os idosos. Agora, existe um mercado que está surgindo nas próprias empresas para os idosos, não só porque não precisa pagar a parte previdenciária, porque a pessoa já está aposentada, mas porque o sujeito já não paga mais passagem, a pessoa tem preferência na fila de banco. Então, é possível encontrar muitos aposentados que trabalham como office-boys. Em supermercados, os idosos vêm ganhando cada vez mais espaço, executando tarefas de degustação, promoção de produtos, e há todo um fator de credibilidade por traz disso. Ter uma pessoa bem apresentável, de mais idade, dizendo que o produto que o cliente irá levar é bom, passa credibilidade.

IHU On-Line - De que forma o senhor percebe a continuidade do aprendizado, de estímulos educativos na vida da pessoa que atinge a terceira idade?

Sergio Antonio Carlos
– Só vamos nos manter ocupados intelectualmente na aposentadoria se isso for uma prática de nossa vida inteira. Isso não vai acontecer apenas na aposentadoria. Um idoso analfabeto não irá ler, fazer palavras cruzadas, não vai escrever. Mas ele pode ver TV, ouvir rádio, estabelecer uma comunicação tremenda com o locutor que trabalha na madrugada, quando ele tem insônia, ouvir notícias, estar bem-informado, não só vendo novelas, mas noticiários, programas culturais. Mas eu acredito que isso não tem a ver com a idade, mas com os hábitos que desenvolveu durante a vida, com o nível socioeconômico, cultural, de ter acesso ou não a determinadas coisas. No entanto, muitos profissionais afirmam que é muito importante exercitar a memória, fazendo palavras cruzadas – por exemplo, o que pode ajudar a retardar a “perda de memória”. Assim como é bom fazer exercício físico na terceira idade, é bom manter o cérebro ativo. Mas isso, repito, é uma prática que vem de antes da aposentadoria, e não se configura de uma hora para a outra.

 

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