Edição 458 | 10 Novembro 2014

“Os jesuítas foram os primeiros do clero católico a entender a modernidade”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Andriolli Costa

Leandro Karnal expõe as características da modernidade que são manifestas na Companhia de Jesus, dos avanços às contradições

Estendendo-se por todo o século XV e ao longo dos 300 anos seguintes, a modernidade apresentou uma série de novos desafios para a humanidade. As grandes navegações, que levavam pela primeira vez a um princípio de globalização e à descoberta do outro. No mesmo contexto, os Estados Nacionais conflitantes e a ascensão lenta do racionalismo vão paulatinamente encaminhando o mundo de um modelo teocêntrico para o antropocentrismo. “Tudo isto é a modernidade em meio à qual os jesuítas surgem. Os jesuítas foram os primeiros membros do clero católico a entenderem este desafio”, destaca o historiador Leandro Karnal.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Karnal ressalta algumas características da modernidade que são manifestas na Companhia de Jesus. Entre elas, uma das mais fundamentais: “separar a experiência do Cristianismo da sua base cultural. Para ser cristão eu não preciso ser italiano ou espanhol, posso ser tupi ou chinês”.  No entanto, esta não era livre de dualismos e contradições. Ainda que defensora da liberdade e do indivíduo, ele ressalta: “a companhia era defensora do livre arbítrio e se montava numa estrutura absolutamente centralizadora”.

Leandro Karnal é graduado em História pela Unisinos, com doutorado em História Social pela USP. Trabalha há muitos anos com capacitações para professores da rede pública e publicação de material didático e de apoio para os professores. Atualmente é professor da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, membro de corpo editorial da Revista Brasileira de História e da Revista Poder & Cultura. Entre suas publicações, destacamos A Escrita da Memória - Interpretações e Análises Documentais (São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004) e Cronistas da América (Campinas: Unicamp, 2004). 

O professor participa da Mesa-Redonda A companhia de Jesus e a Modernidade, no dia 13 de novembro, das 14h às 16h30min, na Sala 1F101, na Unisinos. O evento faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU - Companhia de Jesus. Da supressão à restauração, e a programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - De que forma o surgimento da Companhia de Jesus, aprovada por bula papal em 1540, dialoga com os desafios da modernidade no ocidente enfrentados na época? 

Leandro Karnal – Um mundo globalizado pela primeira vez, o desafio da diferença cultural acentuado, Estados Nacionais conflitantes e a ascensão lenta do racionalismo: tudo isto é a modernidade em meio à qual os jesuítas surgem. Os jesuítas foram os primeiros membros do clero católico a entender este desafio. 

 

IHU On-Line - O que há de moderno na racionalidade jesuíta?

Leandro Karnal - Não fundir significado e significante, ou seja, separar a experiência do Cristianismo da sua base cultural. Para ser cristão eu não preciso ser italiano ou espanhol, posso ser tupi ou chinês. A querela dos ritos na China,  ou seja, a defesa jesuítica de uma inculturação do Catolicismo é uma ponta deste processo. 

 

IHU On-Line - Entre algumas das características da Ordem dos Jesuítas está o livre arbítrio, tanto entre si quanto do próprio papado. Por que estas são características tão importantes para compreender a Companhia de Jesus? 

Leandro Karnal – Uma dialética. Defesa do livre arbítrio sim, especialmente nos combates jesuíticos aos que negavam isto como jansenistas , mas defesa de uma obediência como um “cadáver” e, a rigor, omissão do livre arbítrio. A companhia era defensora do livre arbítrio e se montava numa estrutura absolutamente centralizadora. 

 

IHU On-Line – O livre arbítrio e a valorização do indivíduo estão ligados à racionalidade da modernidade? Que outras características dentro das práticas da Companhia também compõem este quadro? 

Leandro Karnal - O missionário jesuíta é preparado para estar sozinho. Omite-se a oração do ofício em conjunto para reforçar a autonomia da ação jesuítica. Imagine-se um Anchieta  refém numa praia sozinho ou um Xavier  no meio do mar do Japão e podemos ter uma referência da formação de um quadro autônomo e individual. A Companhia é uma ordem, mas o jesuíta, um indivíduo. Isto é muito importante. 

 

IHU On-Line – O século XVIII foi o século das luzes. Quais os nexos entre o iluminismo e a ligação dos jesuítas com as ciências e o ensino? 

Leandro Karnal – Os jesuítas foram ambíguos. Por um lado estimulavam a leitura de autores críticos. O padre Clavijero  ensinava autores racionalistas no México do século XVIII. Mas foram inimigos dos filósofos franceses, conseguiram pressão para a censura da Enciclopédia , combateram a influência iluminista. Havia um iluminismo jesuítico que era distinto do iluminismo da Enciclopédia. 

 

IHU On-Line – Ao mesmo tempo em que eram sacerdotes, os jesuítas também se tornaram administradores (como no comércio de produtos agrícolas nas Reduciones), articuladores políticos, professores, gestores de universidades. De que forma eles se relacionavam com o dualismo existente entre exigências do mundo físico e espiritual que por vezes eram contraditórias?

Leandro Karnal – Para os jesuítas nunca houve dualismo. O livro Negócios Jesuíticos - o Cotidiano da Administração dos Bens Divinos, de Paulo de Assunção  (São Paulo: EdUSP, 2004) analisa bem esta questão. Ter um negócio lucrativo com a erva-mate ou até o tráfico de escravos na Angola, como narrado por Alencastro  no livro O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul - Séculos XVI e XVII (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), eram formas de obter recursos para a obra da Igreja e da Companhia. A pobreza entre jesuítas não era um conceito meta como entre franciscanos, mas um conceito de ação. Em outras palavras, o franciscano nunca poderia ter nada, o jesuíta poderia ter para uma missão. 

 

IHU On-Line – Havia alguma diferença no contexto histórico que cercava a Companhia durante sua supressão (no século XVIII) e sua restauração (no século XIX)? 

Leandro Karnal – São dois momentos quase opostos. A historiografia jesuítica precisou sempre mostrar a absoluta continuidade. Ela não é linear ao menos. O século XIX é um momento inteiramente diferente e a formação de padres, ainda que inspirada na mesma Ratio,  é outra. Eu diria, mas precisaria muito tempo para explicar, que a Companhia do século XX é mais próxima do XVI e XVII do que a do XIX. Gente como Teilhard de Chardin , Karl Rahner  ou Michel de Certeau  recuperam um pouco mais da originalidade da Companhia no mundo Barroco. 

 

IHU On-Line – Atualmente, qual é a racionalidade que orienta a Companhia em uma sociedade pós-moderna? 

Leandro Karnal – A educação aberta, o debate, o empirismo e a adaptação aos mundos, como no jesuíta papa Francisco . Entender que a pós-modernidade (ou o mundo líquido) são momentos históricos passageiros e que a missão cristã é eterna. 

 

IHU On-Line – Recentemente o papa Francisco propõe declarações que fogem da ortodoxia católica, como comentários mais brandos sobre a homossexualidade e o Big Bang. O que ainda deve ser feito para a Companhia avançar, como instituição, dialogando com os dilemas contemporâneos?   

Leandro Karnal – As declarações não fogem da ortodoxia. O pensamento medieval é amar o pecador e odiar o pecado. O papa manda acolher o homossexual, mas não a homossexualidade. Comparando-se com coisas do passado, é um salto, mas não é uma mudança estrutural. Após Pio XII  há uma intensa atividade da Pontifícia Academia de Ciências sobre teoria da evolução ou Big Bang. Na época de Paulo VI  houve declarações similares. 

 

IHU On-Line -  Deseja acrescentar mais alguma coisa? 

Leandro Karnal – A Companhia é uma peça fundamental na construção do mundo moderno. Não importa nossa relação de louvor ou de crítica, a ação continua lá. Este seria mais um momento de entender do que qualificar as ações jesuíticas, até porque qualificar fala muito de nós e pouco do outro. 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição