Edição 458 | 10 Novembro 2014

Papa Francisco: “A noite e o poder das trevas estão sempre próximos. Causa fadiga remar”

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Tradução: Benno Dischinger

Em uma liturgia especial de ação de graças ocorrida na tarde do dia 27 de setembro deste ano, na Igreja ‘del Gesù’, em Roma, o Papa Francisco presidiu uma homenagem ao 200º aniversário da restauração da Companhia de Jesus. Sancionada pelo Papa Pio VII, por meio da bula Sollicitudo omnium ecclesiarum de 7 de agosto de 1814, a decisão reestabeleceu a ordem, que havia sido suprimida há mais de 40 anos.

No decurso da solene Liturgia, que compreende a recitação das Vésperas e o canto do Te Deum, após a proclamação do Evangelho e antes da renovação das promessas da parte dos jesuítas presentes, o Santo Padre fez a homilia a seguir. O texto foi publicado, em italiano, pela Sala de Imprensa do Vaticano. A postagem foi publicada nas “Notícias do Dia”,  28-09-2014. 

Caros irmãos e amigos no Senhor,

A Companhia condecorada com o nome de Jesus viveu tempos difíceis, de perseguição. Durante o generalato do Pe. Lorenzo Ricci  “os inimigos da Igreja chegaram a obter a supressão da Companhia” (João Paulo II , Mensagem ao Pe. Kolvenbach , 31 de julho de 1990) da parte do meu predecessor Clemente XIV . Hoje, recordando a sua reconstituição, somos chamados a recuperar a nossa memória, fazer memória, chamando à mente os benefícios e os dons particulares (cf. Exercícios Espirituais, 234).

Hoje quero fazê-lo aqui convosco.

Em tempos de tribulação e de perturbação se levanta sempre um acúmulo de dúvidas e de sofrimento, e não é fácil ir em frente, prosseguir na caminhada. Sobretudo nos tempos difíceis e de crises surgem tantas tentações: parar de discutir ideias, deixar-se levar pela desolação, concentrar-se sobre o fato de ser perseguidos e não ver mais nada. Lendo as cartas do padre Ricci uma coisa me impressionou muito: sua capacidade de não se deixar deprimir por estas tentações e de propor aos jesuítas, em tempo de tribulação, uma visão das coisas que o enraizasse ainda mais na espiritualidade da Companhia.

O Padre Geral Ricci, que escrevia aos jesuítas de então vendo as nuvens se adensarem no horizonte, os fortificava em seu pertencimento ao corpo da Companhia e à sua missão. Eis: num tempo de confusão e perturbação fez discernimento. Não perdeu tempo em discutir ideias e lamentar-se, mas se conscientizou da vocação da Companhia.

E esta conduta levou os jesuítas a fazer a experiência da morte e ressurreição do Senhor. Ante a perda de tudo, até de sua identidade pública, não fizeram resistência à vontade de Deus, não resistiram ao conflito procurando salvar a si mesmos. A Companhia — e isto é belo — vivenciou o conflito até o fundo, sem reduzi-lo: viveu a humilhação com Cristo humilhado, obedeceu. A gente jamais se salva do conflito com a esperteza e com os estratagemas para resistir. Na confusão e diante da humilhação a Companhia preferiu viver o discernimento da vontade de Deus, sem procurar um modo de sair do conflito de maneira aparentemente tranquila. Ou pelo menos elegante. Não o fez.

Não é jamais a aparente tranquilidade que consola o nosso coração, mas a verdadeira paz que é dom de Deus. Não se deve jamais procurar o “compromisso” fácil, nem se devem praticar fáceis “pacifismos”. Somente o discernimento nos salva do verdadeiro desenraizamento, da verdadeira “supressão” do coração, que é o egoísmo, a mundanidade, a perda do nosso horizonte, da nossa esperança, que é Jesus, que é unicamente Jesus. E assim o Padre Ricci e a Companhia, em fase de supressão, têm privilegiado a história em relação a uma possível “historinha” cinza, sabendo que é o amor que julga a história, e que a esperança — também no escuro — é maior do que as nossas expectativas. O discernimento deve ser feito com reta intenção, com o olhar simples. Por isso o Padre Ricci chega, precisamente nesta ocasião de confusão e desorientação, a falar dos pecados dos jesuítas. Não se defende sentindo-se vítima da história, mas se reconhece pecador. Olhar a si mesmos reconhecendo-se pecadores evita colocar-se na condição de se considerar vítimas ante uma carnificina. Reconhecer-se pecadores, reconhecer-se realmente pecadores, significa colocar-se no comportamento adequado para receber a consolação.

Podemos repercorrer brevemente este caminho de discernimento e de serviço que o Padre Geral indicou à Companhia. Quando em 1759 os decretos de Pombal destruíram as províncias portuguesas da Companhia, o Padre Ricci viveu o conflito, não se lamentando nem se deixando ir à desolação, mas convidando à prece para solicitar o bom espírito, o verdadeiro espírito sobrenatural da vocação, a perfeita docilidade à graça de Deus.

Quando em 1761 a tempestade avançava na França, o Padre Geral solicitou que se pusesse toda a confiança em Deus. Queria que se tirasse proveito das provas sofridas para obter maior purificação interior: elas nos conduzem a Deus e podem servir para sua maior glória; depois recomenda a prece, a santidade da vida, a humildade e o espírito de obediência.

Em 1760, após a expulsão dos jesuítas espanhóis, ainda continua convidando à prece. E, enfim, aos 21 de fevereiro de 1773, seis meses antes da assinatura do Breve Dominus ac Redemptor, ante a total falta de ajuda humana, vê a mão da misericórdia de Deus que convida aqueles que submete à prova a não confiar em algum outro que não seja somente Ele. A confiança deve crescer precisamente quando as circunstâncias nos jogam por terra. O importante para o Padre Ricci é que a Companhia até o último seja fiel ao espírito de sua vocação, que é a maior glória de Deus e a salvação das almas. A Companhia, também diante de seu próprio fim, permaneceu fiel ao fim para o qual foi fundada. Por isso Ricci conclui com uma exortação a manter vivo o espírito de caridade, de união, de obediência, de paciência, de simplicidade evangélica, de verdadeira amizade com Deus. Todo o resto é mundanidade. A chama da maior glória de Deus também hoje nos atravesse, queimando todo comprazimento e envolvendo-nos numa chama que temos dentro, que nos concentra e nos expande, nos engrandece e nos apequena.

Assim a Companhia vivenciou a prova suprema do sacrifício que injustamente lhe era solicitado, tornando própria a prece de Tobias que, com o ânimo abatido pela dor, suspira, chora e depois reza: “Tu és justo, Senhor, e justas são todas as tuas obras. Toda via tua é misericórdia e verdade. Tu és o juiz do mundo. Ora, Senhor, recorda-te de mim e olha-me. Não me punas pelos meus pecados e pelos erros meus e dos meus pais. Violando as tuas ordens, pecamos diante de ti. Entregastes-nos ao saque; abandonastes-nos à prisão, à morte e a ser a fábula, o escárnio, o desprezo de todos, entre os quais nos dispersastes”. E conclui com a solicitação mais importante: “Senhor, não afastes de mim a tua face” (Tb 3,1-4.6d). E o Senhor respondeu mandando Rafael remover as manchas brancas dos olhos de Tobias, para que voltasse a ver a luz de Deus. Deus é misericordioso, Deus coroa de misericórdia. Deus nos quer bem e nos salva. Por vezes o caminho que conduz à vida é estreito e apertado, mas a tribulação, se vivida à luz da misericórdia, nos purifica como o fogo, nos dá tanta consolação e inflama o nosso coração afeiçoando-o à prece. Os nossos irmãos jesuítas na supressão foram fervorosos no espírito e no serviço do Senhor, alegres na esperança, constantes na tribulação, perseverantes na prece (cf. Rm 12,13). E isto deu honra à Companhia, não certamente os encômios dos seus méritos. Assim será sempre.

Recordemos a nossa história: à Companhia “foi dada a graça não só de crer no Senhor, mas também de sofrer por Ele” (Fil. 1,29). Faz-nos bem recordar isto.

A nave da Companhia foi sacudida pelas ondas e não é de admirar-se disto. Também a barca de Pedro pode sê-lo hoje. A noite e o poder das trevas estão sempre próximos. Causa fadiga remar.

Os jesuítas devem ser “remadores espertos e valorosos” (Pio VII , Sollecitudo omnium ecclesiarum): remai, portanto! Remai, sejais fortes, também com o vento contrário. Rememos a serviço da Igreja. Rememos sempre! Mas, enquanto remamos — todos remamos, também o Papa rema na barca de Pedro — devemos rezar muito: “Senhor, salva-nos!”, “Senhor, salva o teu povo!” O Senhor, também se somos homens de pouca fé, pecadores, nos salvará. Esperemos no Senhor! Esperemos sempre no Senhor!

A Companhia reconstituída por meu predecessor Pio VII era feita de homens corajosos e humildes em seu testemunho de esperança, de amor e de criatividade apostólica, aquela do Espírito. Pio VII escreveu querer reconstituir a Companhia para “acudir de maneira adequada às necessidades espirituais do mundo cristão, sem diferença de povos e de nações” (ibid.). Por isso ele deu autorização aos jesuítas que ainda cá e lá existiam graças a um soberano luterano e a uma soberana ortodoxa, a “permanecerem unidos em um só corpo”. Que a Companhia permaneça unida em um só corpo!

E a Companhia se tornou missionária e se pôs à disposição da Sé Apostólica, empenhando-se generosamente “sob o vexilo da cruz para o Senhor e o seu vigário na terra” (Formula Instituti, l). A Companhia retomou sua atividade apostólica com a pregação e o ensinamento, os ministérios espirituais, a pesquisa científica e a ação social, as missões e o cuidado dos pobres, dos sofredores e dos marginalizados.

Hoje a Companhia enfrenta com inteligência e operosidade também o trágico problema dos refugiados e dos prófugos; e se esforça com discernimento no sentido de integrar o serviço da fé e a promoção da justiça, em conformidade com o Evangelho. Confirmo hoje quanto nos disse Paulo VI à nossa trigésima segunda Congregação geral e que eu mesmo escutei com meus ouvidos: “Por toda parte na Igreja, também nos campos mais difíceis e de ponta, nas encruzilhadas das ideologias, nas trincheiras sociais, existiu e existe o confronto entre as exigências candentes do homem e a perene mensagem do Evangelho, lá estiveram e estão os jesuítas”. Palavras proféticas do futuro beato Paulo VI.

Em 1814, no momento da reconstituição, os jesuítas eram uma pequena grei, uma “mínima Companhia”, que, todavia se sabia investida, após a prova da cruz, da grande missão de levar a luz do Evangelho até os confins da terra. Assim devemos sentir-nos hoje, portanto: em saída, em missão. A identidade do jesuíta é aquela de um homem que somente adora Deus e ama e serve os seus irmãos, mostrando através do exemplo não só em que acredita, mas também em que espera e quem é Aquele no qual pôs a sua confiança (cf. 2 Tim. 1,12). O jesuíta quer ser um companheiro de Jesus, alguém que tem os mesmos sentimentos de Jesus.

A bula de Pio VII, que reconstituía a Companhia, foi firmada aos 7 de agosto de 1814 junto à Basílica de Santa Maria Maior, onde o nosso santo padre Inácio celebrou sua primeira Eucaristia na noite de Natal de 1538. Maria, nossa Senhora, Mãe da Companhia, ficará comovida com nossos esforços para estar a serviço de seu Filho. Ela nos guarde e nos proteja sempre.

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