Edição 204 | 13 Novembro 2006

A velhice é o resultado das condições de vida apreendidas

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IHU Online

Graduado em Pedagogia pela Universidade de Passo Fundo (UPF), Agostinho Both foi entrevistado por e-mail pela IHU On-Line para a matéria de capa da presente edição.

Both é especialista em Gerontologia Social pela UPF e mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ). Doutorou-se em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com a tese Identidade existencial na terceira idade: mediações do estado e da universidade.
Publicou inúmeros livros, dentre os quais destacamos Práticas sociais na terceira idade. Passo Fundo: EDIUPF, 1992; Conversas sobre a terceira idade ou fragmentos de gerontologia. Passo Fundo: EDIUPF, 1992; Gerontologia: Educação e longevidade. Passo Fundo: Imperial, 1999; Identidade existencial na velhice: Mediações do Estado e da Universidade. Passo Fundo: EDIUPF, 2000; Os Mais Velhos em Novos Tempos. Passo Fundo: Berthier, 2004.

IHU On-Line - O que é identidade existencial na terceira idade?

Agostinho Both
– A identidade existencial na terceira idade pode ser entendida como o conjunto dinâmico dos sistemas biopsicosossociais que caracterizam o idoso num determinado tempo de vida de sua velhice. A identidade, portanto, compreende fatores dados pelos recursos internalizados durante a vida pregressa e pelas oportunidades atuais, o que lhe concede maior ou menor capacidade de resiliência em lidar com o cotidiano, seus potenciais e limites. O processo educacional desenvolvido e suas disposições, o envolvimento do idoso em sua educação permanente e as condições e outorgas sociais realizam a mediação do desenvolvimento. Pode-se avaliar a qualidade da identidade existencial como conjugação da satisfação em viver seu tempo de vida e as expectativas em torno de objetos a serem ainda vivenciados. Assim sendo, os projetos de vida também se inserem na possibilidade da identidade bem realizada a qual pode ser mais precisamente definida pelo grau de intimidade que o idoso possui com a vida, pelo grau de sabedoria em lidar com o seu meio e a densidade do sentido que ela possui. Não existem, portanto, critérios rígidos na definição da identidade e sua flexibilidade que dependem do capital de saúde biopsicossocial investido e em investimento.

IHU On-Line - Como essa identidade se constitui e quais são os fatores que podem dificultar sua concretização?

Agostinho Both
– Ela se constitui num processo dinâmico durante toda a vida. Sendo assim, a identidade, bem como a própria velhice, não é uma fatalidade, mas um resultado das condições de vida apreendidas, em aprendizagem e em expectativa de apreender. A identidade se constitui num diálogo permanente entre as funções biopsicossociais, isto é, a identidade apresenta-se em constante reciprocidade de intervenções, podendo haver compensações. Assim, as limitações físicas podem ser compensadas pelo desempenho psicológico e deste pelo social e o social pelo físico. As dificuldades, na concretização de uma identidade que caracterize o idoso como um cidadão em desenvolvimento harmonioso e contente, se apresentam de muitas maneiras. O passado pode trazer limitações severas. O estilo de vida em torno do corpo, o baixo nível de desenvolvimento psicológico, tanto em sentido cognitivo como afetivo, as privações sociais, atuais ou passadas, podem modular uma imagem humana de difícil organização. A identidade, ou seja, o que define o sujeito idoso e a experiência de si mesmo, pode não ter sido bem posta, prejudicando tanto a percepção pessoal como a convivência com os outros. Isso significa que os padrões de conduta condicionam a saúde física e mental, interferindo no modo de constituir a identidade.

IHU On-Line - O que seriam as mediações do Estado e da universidade com relação à identidade existencial na terceira idade?

Agostinho Both
– Esta questão mereceria um longo debate, mas resumidamente, podemos dizer que as mediações do Estado dizem respeito àquelas que dão conta de o idoso poder realizar sua presença humana e social de forma a se ver cercado de possibilidades advindas da ética social gerada pelas políticas públicas. Isso significa que de pouco adiante o idoso querer ter a si mesmo como um sujeito em processo de construção de sua identidade se não houver condições sociais de exercitar seus desejos de realização. À universidade cabe oferecer conhecimentos e esclarecimentos sobre o processo de envelhecimento para que tanto o idoso como a sociedade e o Estado sejam esclarecidos sobre o perfil humano dos mais velhos. A universidade tem a responsabilidade de ampliar a visão humana sobre a velhice, concedendo-lhe contínuas e melhores percepções sobre o ser que envelhece e assim possibilitar que o idoso possa cumprir sua Identidade dentro de uma existência mais renovada e interessante. O diálogo permanente da universidade com o fenômeno do envelhecimento e a leitura honesta desta realidade facilitam o modo de envelhecer, favorecendo as condições para um envelhecimento bem-sucedido.

IHU On-Line - Quais são os maiores progressos conquistados pela gerontologia nos últimos anos? E quais são seus maiores desafios?

Agostinho Both
– Parece-me que os maiores avanços dizem respeito a uma visibilidade dos idosos e sua importância política e social. Mesmo nas universidades a questão do envelhecimento está sendo vista com olhares de atenção. Isso significa que a gerontologia está cumprindo um papel de anunciadora e denunciadora de um fenômeno complexo e modificador desde os processos educacionais, os processos políticos em todas as instâncias de governo até os espaços da intimidade de nossas casas. Aí residem ainda seus desafios, pois intervir nas instituições e aí construir mudanças exigidas pela dignidade humana na velhice é uma tarefa que exige resistência e mesmo luta, pois os espaços e as oportunidades culturais e sociais já estão destinados a outras categorias sociais. A brevidade da vida tem condicionado historicamente as formas sociais de apoiar seus cidadãos, prevalecendo os mais jovens sobre os mais velhos.

IHU On-Line - Como a sociedade ocidental encara a terceira idade? Quais são as maiores diferenças com relação à abordagem oriental?

Agostinho Both
– Não se faz um bom discurso com generalizações. Parece haver uma preocupação ocidental, tanto em resolver as questões econômicas, educacionais e sociais como em aprofundar conhecimento em torno da velhice, mas estas preocupações e a agilidade em resolvê-las são diferentes. Os países e suas condições econômicas, sociais e culturais apresentam-se de formas diferentes e, portanto, também oferecem de acordo com seu perfil condições melhores ou privações maiores no desenvolvimento humano. Por exemplo, é bem diferente o poder econômico de um velho aposentado na Alemanha e no Brasil, incidindo este poder sobre os cuidados na velhice independente ou dependente. Por sua vez a pressão política em torno dos idosos é diferente, ensejando-se melhor sorte para os países mais sensíveis e para seus idosos mais atentos aos seus direitos humanos.  

IHU On-Line - Que relações são possíveis estabelecer entre gerontologia, educação e longevidade?

Agostinho Both
– A gerontologia, entre outras preocupações, estuda a longevidade, isto é, os aspectos do processo do envelhecimento que lidam com a expectativa de vida. Em primeiro lugar, podemos pensar sobre o tempo máximo de vida até hoje vivido, o qual gira em torno dos 120 anos. Poucos são aqueles que apontam para este tempo de vida, embora os centenários já sejam objeto de estudos. O que se sabe é que a expectativa de vida vem aumentando, mas sem uma revolução radical, no plano genético não vamos alterar os anos da longevidade máxima. Outra questão na questão da longevidade reside na qualificação da velhice tardia, isto é, importa qualificar e não apenas quantificar. A questão educacional é fundamental ao se tratar da longevidade, tanto em termos quantitativos como qualitativos. A extensão da vida depende dos hábitos os quais são constituídos pela educação e dos quais resulta um estilo de vida mais ou menos qualificado e disso decorrem as probabilidades de estender a vida e uma via ativa. Por outro lado, as intervenções educacionais, para que o tempo de vida tenha densidade, não podem se afastar de aprendizados para ocupação do tempo livre. Dessa maneira a educação, para que seja adequada ao ser humano que envelhece, não pode esgotar seus esforços apenas em um processo educacional voltado para uma racionalidade instrumental preocupada somente em inserir os alunos apenas no mundo do sistema econômico e político. Aprendizados sobre as artes, serviços e uma multiplicidade de outros interesses podem contribuir para que se amplie a resiliência e, por conseqüência, a longevidade qualificada dos idosos.

IHU On-Line - Como a educação formal e informal vem se caracterizando diante do envelhecimento populacional?

Agostinho Both
– A educação formal ainda está muito atenta aos ditames do pensamento reducionista que se afirma sobre os paradigmas do sucesso financeiro, produtivo e consumista. A vida propriamente não faz parte importante do currículo escolar. As demandas éticas dos conteúdos escolares, da sala de aula, da família e da comunidade são objetos pouco preocupantes. Se é verdade que os hábitos resultam de atividades sistemáticas, quais são ou deveriam ser os hábitos a serem desenvolvidos? Quais são as tarefas propostas para a qualidade de vida? De que forma os alunos são sistematicamente convidados a exercícios para a qualidade de vida pessoal e solidária? Quais os cuidados aprendidos na vigilância sobre a saúde e as necessidades comunitárias? Qual a aproximação entre escola e família? A educação mereceria uma revolução, pois o sentido dela ainda está voltado para a brevidade da vida e em desenvolver os aspectos intelectuais, ficando em segundo plano, ou sem plano, o desenvolvimento ético.

A educação informal parece ser ainda o recurso mais usual. Quando os problemas surgem, os idosos vão buscar encontrar novas respostas, mas de uma forma muito particular e errática. Existem ofertas não-formais de educação em muitos municípios, e as universidades oferecem oportunidades, mesmo que precárias, facilitando a educação informal dos idosos. Por sua vez, ainda não foram esgotados todos os recursos, e a educação permanente deve ser encontrada e até solicitada com apelos fortes por parte dos idosos. Os espaços educacionais para efetivar a educação permanente ainda são pobres e mesmo os idosos geram pouca expectativa em torno de si mesmos no sentido de um desenvolvimento mais vigoroso. Existe ainda um aprendizado histórico de poucas exigências educacionais. O processo do desenvolvimento da identidade na terceira idade e na velhice compreende um número elevado de intercessores e, dependendo deles, ficam estabelecidos diferentes potenciais e limites.

Finalizando, as questões podem ser respondidas da seguinte maneira: os conceitos sobre a potencialidade humana em cada etapa da vida, as respectivas outorgas e medições legais e morais podem suscitar diferentes construções do envelhecimento e da velhice. Os valores pessoais e históricos e a flexibilidade em arranjá-los no advento das perdas são variáveis decisivas para a identidade existencial na terceira idade. As intervenções sociais e pessoais podem ser decisivas na evolução positiva do envelhecimento e, sem dúvida, as fragilidades e os acidentes podem precipitar situações constrangedoras para o desenvolvimento. 
O grau de opções intelectuais, afetivas, artísticas e de serviços para enfrentar as transformações, pode potencializar favoravelmente o desenvolvimento. Não menos significativas são as condições de acessar aos bens culturais, seja pelo poder econômico, seja pelas disposições políticas. Os esforços, portanto, perpassam a educação de toda a comunidade que pretende renovar seu estoque de interpretação ética e cultural ante o envelhecimento e a velhice.

O processo da longevidade implica, portanto, variáveis biológicas, psicológicas e sociais, e as suas funções interagem solidariamente. A complexidade dos fatores e suas reclamações parece exigir uma revisão de todas as instituições, além do que, possivelmente, outras devam ser delineadas para abrigar a exigência da dignidade e da liberdade dos mais velhos. Os hábitos anteriores, segundo a autora, probabilizam o grau de liberdade no desenvolvimento. Por tudo isso, fica claro que a intimidade humana e a sabedoria podem produzir uma conquista para o envelhecimento e exigir novas leis e contratos sociais.  

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