Edição 456 | 20 Outubro 2014

A manutenção da subjetividade humana diante do impulso tecnocientífico instrumental

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Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução: André Langer

Jesús Conill argumenta que o ufanismo tecnocrata deriva de um modelo de desenvolvimento que deteriora as o pensamento crítico

Refletir sobre o triunfo da técnica e avançar em pontos de vista que nos ajudem a compreender o significado das tecnologias no âmbito da vivência social se constitui em um dos grandes desafios da contemporaneidade. Nesse sentido, o professor doutor Jesús Conill, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, sustenta que é preciso “prestar uma atenção especial a cada um dos âmbitos da realidade em que as tecnologias intervêm. Não é a mesma coisa quando falamos do âmbito do meio ambiente ou do âmbito da saúde, da educação, da pobreza extrema, da economia de mercado, da empresa, do conhecimento e da pesquisa científica, da organização administrativa ou da função pública”, avalia.

Para o entrevistado, certo ufanismo com relação às sociedades tecnocientíficas deriva de um modelo de desenvolvimento que deteriorou a subjetividade humana e que nos conduziu a processos de alienação. “A partir de outras perspectivas mais humanistas, colocou-se de relevo que não se trata de uma consequência necessária, mas é um autêntico perigo que é preciso saber evitar, para que o proveito instrumental das tecnologias não destrua a riqueza da subjetividade humana, mas a amplie com novas possibilidades”, considera.

Em parte, a crise de uma certa racionalidade dominante deriva de deformações provocadas pela excessiva financeirização das relações. “Esse processo de crescente império das finanças, sem o devido controle e sem a devida orientação, desorientou as empresas de bens e serviços, que se viram impelidas cada vez mais nesse contexto a desvirtuar suas tarefas mais próprias e seus compromissos sociais”, argumenta. 

Jesús Conill estudou nas Universidades de Valencia, Espanha, e München, na Alemanha. Atualmente é catedrático da Universidade de Filosofia Moral e Política da Universidade de Valencia. Além disso, realizou estudos e pesquisas de extensão nas Universidades de München, Bonn, Frankfurt e Main, na Alemanha; St. Gallen, na Suiça; e Notre Dame, nos Estados Unidos. É autor, entre outras obras, de Ética hermenêutica (Madrid: Tecnos, 2006), Horizontes de economía ética. Aristóteles, Adam Smith, Amartya Sen (Madrid: Tecnos, 2004), Ética de los medios. Una apuesta por la ciudadanía audiovisual (coeditor, junto com Vicent Gozálvez – Barcelona: Gedisa, 2004).

O professor Jesús Conill apresenta a conferência Os marcos e ferramentas éticas nas tecnologias de gestão, no dia 21-10-2014, às 14h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. O evento integra a programação do XIV Simpósio Internacional IHU - Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são os principais marcos e ferramentas éticas nas tecnologias da gestão em nossos dias?

Jesús Conill - Primeiro, seria preciso determinar o que se entende por ética, porque pode haver diversas concepções, que teriam relações distintas com as tecnologias. Algumas inclusive poderiam tentar substituir a racionalidade das éticas tradicionais, antigas e modernas, pela racionalidade tecnológica. De tal maneira que o imperativo tecnológico se imporia como imperativo ético e se plasmaria na vida social com sucesso mediante a maquinaria tecnocrática.

Não obstante, diante do triunfo da técnica em todos os âmbitos, inclusive em sua determinação da racionalidade prática, cabe refletir e propor outras perspectivas, que também valorizam as inegáveis contribuições das tecnologias, mas oferecem uma visão mais compreensiva do significado das tecnologias e uma orientação responsável do seu crescente poder. Um desses enfoques mais enriquecedores é o de uma ética hermenêutica, que poderia servir de novo marco de reflexão para compreender e orientar a ação tecnológica. Esta primeira reflexão valeria para a ordem básica da fundamentação. Mas, em segundo lugar, para determinar as ferramentas éticas concretas, necessita-se prestar uma atenção especial a cada um dos âmbitos da realidade em que as tecnologias intervêm. Não é a mesma coisa quando falamos do âmbito do meio ambiente ou do âmbito da saúde, da educação, da pobreza extrema, da economia de mercado, da empresa, do conhecimento e da pesquisa científica, da organização administrativa ou da função pública, etc.

 

IHU On-Line - Dentre as mudanças das organizações na gestão contemporânea, quais estão relacionadas com as novas tecnologias?

Jesús Conill - Creio que quase todas têm a ver com as novas tecnologias, que invadiram todos os âmbitos da vida social, pública e privada. Não há praticamente nenhuma atividade humana que não esteja sendo afetada pelas tecnologias. As tecnologias estão afetando a natureza e a cultura de tal maneira que as estão transformando. O mesmo acontece com as instituições de qualquer tipo. As novas tecnologias da informação e da comunicação, por exemplo, transformaram quase todos os setores da vida, desde a própria comunicação, até a economia, a política, a educação, as relações pessoais, comerciais, o exercício da medicina e muitas outras profissões.

 

IHU On-Line - Em que medida as tecnologias impactam nas racionalidades da gestão?

Jesús Conill - Na realidade, a racionalidade tecnológica converte-se na racionalidade de gestão por excelência e seus dinamismos, assim como foram se desenvolvendo, expulsaram em muitas ocasiões quaisquer outros ingredientes da razão prática tradicional. A funcionalidade tecnológica invade progressivamente a vida e tende a converter-se na gestora, supostamente eficiente, da vida humana inteira, em todas as ordens. De fato, a razão instrumental impôs-se ao longo da modernidade hegemônica. A partir de diversas frentes criticou-se esta hegemonia, porque são possíveis diversas modernidades e, por isso, foram propostas, por exemplo, linhas de “modernidade crítica” ou reflexiva (vide, por exemplo, Adela Cortina , Ética sem moral - São Paulo: Martins Fontes, 2010), ou críticas genealógicas, como a nietzschiana (vide, por exemplo, El poder de la mentira. Nietzsche y la política de la transvaloración - Madrid: Tecnos, 1997), que tanto contribuíram para inspirar (de modo consciente ou inconsciente) muitas das atitudes contemporâneas.

 

IHU On-Line - Quais são as tensões que se apresentam à subjetividade dos trabalhadores em função das tecnologias de gestão em voga?

Jesús Conill - A primeira tensão que a história da tecnologia mostra é que ela provoca a redução ou eliminação do trabalho humano, embora haja quem defenda que se trata de um processo que, indiretamente e com o tempo, permite ser recuperado por outros meios. Tão somente, pois, uma atitude “ludita” rechaçaria por completo a inovação tecnológica. Em segundo lugar, também na história mostrou-se que certo tipo de desenvolvimento tecnológico deteriorou a subjetividade humana e, em algumas ocasiões, impulsionou processos de alienação em virtude da produção tecnológica, instaurada como racionalidade redutora do humano. A partir de outras perspectivas mais humanistas, colocou-se de relevo que não se trata de uma consequência necessária, mas é um autêntico perigo que é preciso saber evitar, para que o proveito instrumental das tecnologias não destrua a riqueza da subjetividade humana, mas a amplie com novas possibilidades.

 

IHU On-Line - Quais são os principais desafios de uma ética econômica e empresarial pensando no contexto das empresas, inseridas em uma economia globalizada de mercado?

Jesús Conill - O desafio mais importante é superar ou, ao menos, corrigir as deformações provocadas pela excessiva financeirização da economia. Na minha opinião, produziu-se uma perversão da economia através da ultrafinanceirização que durante as últimas décadas foi se expandindo em todos os âmbitos da vida. Esse processo de crescente império das finanças, sem o devido controle e sem a devida orientação, desorientou as empresas de bens e serviços, que se viram impelidas cada vez mais nesse contexto a desvirtuar suas tarefas mais próprias e seus compromissos sociais. Caso não se corrija esta transformação última da economia não haverá avanço do sentido social e ético-político da economia no curto prazo (o ‘curtoprazismo’), sem permitir que se avance no processo de formação das autênticas empresas, que são as que contribuíram para o bem social, conforme a sua atividade específica, cumprindo com os compromissos de todos os que estão envolvidos e são afetados por elas, segundo as fórmulas da teoria dos stakeholders, ou da “ética do discurso” (os afetados), ou mais recentemente pela ética dos “valores compartilhados”.

 

IHU On-Line - A partir dessa perspectiva, qual é o nexo que une democracia participativa, sociedade civil e ética empresarial?

Jesús Conill - Há diversas formas de conectar o sentido da democracia participativa, contando com a sociedade civil, a partir do impulso da ética empresarial. Em qualquer dessas formas coloca-se de manifesto a necessidade de conectar o âmbito estritamente político com o amplo espectro da sociedade civil e o mundo empresarial que está consciente de seu sentido social. Porque o sistema democrático de uma sociedade aberta não se circunscreve às instituições políticas e jurídicas do Estado. Os cidadãos se incorporam à convivência por outras vias, que alimentam a vida política, controlam-na e a orientam para as melhores metas possíveis. Entre elas estão não apenas as culturais, mas também as empresariais, que cada vez mais estão sendo decisivas na configuração dos padrões da vida compartilhada nacional e internacional, ou seja, na conformação dos estilos de vida.

 

IHU On-Line - Quais são os principais impasses que se apresentam nas relações interpessoais na gestão contemporânea a partir da perspectiva da gestão da ética?

Jesús Conill - As relações interpessoais poderiam ser mais enriquecedoras se ultrapassassem os estreitos limites da mercantilização, juridificação e coação política, porque uma sociedade só se pode fundar, como é devido, na cooperação entre os cidadãos. Sem a vivência da cooperação não será possível a justiça social e não se poderá avançar na formação de sociedades abertas, com autêntica liberdade. Não há autêntica liberdade sem justiça; e não há justiça sem cooperação. Não basta a mera coação do Leviatã . Portanto, nas relações interpessoais é preciso descobrir o aspecto mais fundamental, que é a relação do reconhecimento mútuo e recíproco. Nem tudo é política, economia e direito. A riqueza da vida humana, nas relações interpessoais, vai além dessas relações reduzidas e comprimidas, mesmo quando inescusáveis (embora em possível transformação), e se abre à vida ética, ou seja, à escolha dos modos de vida que cada qual, em relação com os demais, avalia como melhores que outros.

 

IHU On-Line - Em que aspectos a “cultura do management” influencia a construção da subjetividade dos gestores e das relações com os trabalhadores?

Jesús Conill - A cultura do management é levada a cabo com diversos estilos. Pode ser de caráter mecânico, como se tratasse de administrar coisas, ou inclusive “recursos” humanos, ou pode estar consciente de que se trata de administrar as atividades de uma organização e/ou instituição executadas por pessoas. E então entramos em outra dimensão nova na forma de gerir: trata-se de uma autêntica gestão ética, que leva em conta o “ethos” das pessoas, isto é, a atividade organizacional ou institucional em um marco próprio da vida humana. Isto, evidentemente (porque assim o vemos), não é fácil, mas, ao menos, deveria constituir um ideal ao qual aspirar, se queremos humanizar as relações com os trabalhadores. Do contrário, a manipulação e a instrumentalização convertem-se no único modo de gerir as pessoas, convertendo-as reducionisticamente em meras coisas ou recursos a serviço de outros fins, quando uma das formulações do princípio da ética moderna, baseada no respeito à pessoa humana, nos recomenda o imperativo da “não instrumentalização”.

 

IHU On-Line – Qual é o principal desafio da formação técnica e da formação crítica nos gestores?

Jesús Conill - O principal desafio da formação técnica e da formação crítica dos gestores é constituído pela necessária formação ética do técnico em uma ética da responsabilidade à altura dos tempos e aplicada a cada campo profissional concreto. Sem uma ética dos profissionais, estes ficam reduzidos a meros técnicos a serviço de qualquer causa, com o falso pretexto de que seu saber é neutro. Há muito tempo vem se debatendo sobre a neutralidade axiológica do conhecimento técnico, até sua conversão em tecnocracia e, portanto, em um poder social e mental em nossas sociedades do conhecimento dos especialistas. Por isso, é tão importante seguir refletindo sobre os valores que sempre estão em jogo na tomada de decisões dos profissionais, que, portanto, não são apenas técnicos. Daí a necessidade de uma formação mais completa e integral, que inclua o senso crítico, isto é, a autocompreensão do sentido de sua atividade específica e o discernimento dos valores que estão incrustados nele e nas consequências e perigos que comporta. Esta nova forma de ética foi se denominando — em suas diversas modalidades — de “ética da responsabilidade”.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Jesús Conill - O mais preocupante é o desenvolvimento disforme das finanças, porque o que em muitas ocasiões foi proposto como inovações financeiras foram ofertas carentes de verdadeiro sentido, sem autêntica garantia econômica, com o único afã de aumentar os lucros contábeis. Dessa maneira, aumentam os riscos, reduz-se a transparência, vai se perdendo a confiança e rompem-se os vínculos tradicionais com os clientes.

Por isso foram muitas as vozes que expressaram sua preocupação e chamaram a atenção para os perigos que implicava a fascinante “lógica” do capitalismo ultrafinanceiro. É muito preocupante a crescente autonomização do sistema financeiro, ao se desvincular cada vez mais da economia mundial o movimento de capitais do fluxo de bens e serviços. Esta tendência poderia deformar o âmbito financeiro e fazer com que se esqueça do seu autêntico papel como instrumento para designar com eficiência recursos escassos, assumir riscos e servir à economia real; desta maneira perderia também sua legitimação econômico-social e, portanto, ética (referi-me a isso anos atrás em Horizontes de economía ética. Aristóteles, Adam Smith, Amartya Sen - Madrid: Tecnos, 2004).

Esta linha de reflexão encontra-se também há muito tempo em economistas como James Tobin , que considerava que “a proliferação de operações financeiras não serve, muitas vezes, para realizar mais economicamente uma tarefa, mas para inflar a quantidade e a variedade de intercâmbios financeiros, operações mediante as quais se foge de uma regulação e para obter um benefício privado sem a equivalência de um benefício social”.

Portanto, uma “superestrutura” financeira “desconectada da economia real” recortaria as possibilidades de crescimento real da economia mundial e separaria cada vez mais o benefício privado (rendimentos a curto prazo) do benefício social (necessidade de investimentos produtivos). Não se deveria esquecer que o sentido da economia “simbólica” (movimentos de capital, tipos de câmbio e correntes creditícias) consiste em estar a serviço da economia “real” (correntes de bens e serviços).

Por outro lado, também se deveria ter em conta a influência que o desenvolvimento deste capitalismo ultrafinanceiro e especulativo teve e está tendo sobre os mais pobres do mundo. Precisamente os anos de maior desenvolvimento disforme do setor financeiro coincidiram com o declive das economias que fomentavam o desenvolvimento humano entre os mais pobres da Terra (como mostram os relatórios sobre o desenvolvimento humano apresentados pelo PNUD). Portanto, as exigências éticas de solidariedade internacional, reclamadas pelos pobres, deveriam estar presentes nas reflexões sobre o novo cenário global da economia.

As repercussões sociais são tremendas. Uma das repercussões sociais a que todos os estudiosos da globalização aludem é a desestruturação das instituições modernas, entre as quais se sobressai o Estado. Outro efeito inaceitável da globalização está sendo o aumento do abismo que separa os ricos e poderosos dos pobres (os áporoi). É uma autêntica contradição proclamar que toda pessoa é livre e igual e manter na prática desigualdades tão injustas. Os pobres já não contam para nada, carecem de todo tipo de poder, porque não podem nem sequer negociar para fazer valer suas exigências. Estão à margem de qualquer participação significativa sobre o seu futuro. Dessa maneira, recrudesce-se e agrava-se a prática da aporofobia, que quase todo o mundo tenta encobrir com outras terminologias, recusando chamar a realidade por seu nome: aversão ao pobre, ao desvalido, ao que nada tem a oferecer em troca, em qualquer terreno (econômico, político, jurídico, da opinião pública) (vide as reflexões de Adela Cortina, por exemplo, em seu livro ¿Para qué sirve realmente la ética? – Barcelona: Paidós, 2013).

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