Edição 450 | 11 Agosto 2014

Parábolas, a língua do Reino

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Giorgio Agamben | Tradução: Selvino J.Assmann

O livro/ Eis porque narramos

A literatura é a memória do fogo que perdemos. E se continuamos a narrar, a inventar e compartilhar histórias é justamente porque não podemos abrir mão do mistério do qual também fomos separados. Parte dai a reflexão que Giorgio Agamben escande nos ensaios reunidos em Il fuoco e il racconto (...), nova etapa de um longo percurso intelectual durante o qual o pensador soube entrelaçar entre si as linguagens da filosofia, da literatura e da teologia. Uma vastíssima rede de remissões testemunhada também pela passagem que antecipamos nesta página, no qual o assunto principal de Il fuoco e il racconto é aplicado às parábolas evangélicas ou, mais precisamente, o nexo inseparável  entre "Parábola e Reino".

Eis o texto de Agamben:

Sobre as parábolas (Von den Gleichnissen)   é o titulo de um fragmento póstumo de Kafka,  publicado por Max Brod em 1931. Trata-se aparentemente, como o título parece sugerir, de uma parábola sobre as parábolas. O sentido do breve diálogo que se desenrola entre os dois interlocutores (de um terceiro, que recita o primeiro texto, não se diz nada) é, porém, precisamente o contrário, a saber, que a parábola sobre as parábolas não é mais uma parábola.

"Muitas pessoas se queixam porque as palavras dos sábios sempre são apenas parábolas, mas inaplicáveis na vida cotidiana, que a única vida que temos. Quando o sábio diz: "Vá além", ele não quer dizer que a gente (einer) deva ir para outro lado, algo que se poderia sempre fazer, se o resultado valesse a pena, mas sobretudo se refere a algo distante e  misterioso, algo que não conhecemos, algo que ele mesmo não conseguiria designar  mais de perto (näher) e que, portanto, já não pode ser de ajuda alguma. Todas estas parábolas só e precisamente querem dizer que o incompreensível  é incompreensível, e isso já o sabíamos. Mas aquilo com que nos preocupamos cada dia são outras coisas".

Uma voz anônima (einer, "alguém") sugere a solução do problema: "Por que vocês resistem? Se seguissem as parábolas, terminariam por tornar-se parábola vocês mesmos, e com isso estariam livres das preocupações cotidianas". A objeção do segundo interlocutor - "aposto que também esta afirmação é uma parábola" - parece, contudo, insuperável: também o fato de tornar-se parábola e a saída da realidade são, segundo todas as evidências, apenas uma parábola, com o que o primeiro interlocutor não tem dificuldade de concordar ("você venceu"). Só nesta altura ele pode esclarecer o sentido da sua sugestão e inverter improvisamente a derrota em vitória. Frente ao comentário despreocupado do segundo: "mas infelizmente só em parábola", ele responde sem qualquer ironia: "não; venceu na realidade; na parábola você perdeu".

Quem se obstina em manter a distinção entre realidade e parábola não entendeu o sentido da parábola. Tornar-se parábola significa compreender que não há mais diferença entre a palavra do Reino e o Reino, entre o discurso e a realidade. Por isso, o segundo interlocutor, que insiste em acreditar que a saída da realidade ainda seja uma parábola, só pode perder.  Para quem se faz palavra e parábola - a derivação etimológica mostra aqui toda a sua verdade - o Reino está tão perto que pode ser captado sem "ir além".

Segundo a tradição da hermenêutica medieval, a Escritura tem quatro sentidos (que um dos autores do Zohar faz corresponder aos quatro rios do Éden e às quatro consoantes da palavra Pardes, "paraíso"): aquele literal ou histórico, o alegórico, o tropológico ou  moral, e aquele anagógico ou místico. O último sentido - conforme está implícito no seu nome (anagogia significa movimento para o alto) - não é um sentido ao lado dos outros, mas indica a passagem a outra dimensão (na formulação de Nicolau de Lira, ele indica quo tendas, "aonde deves ir"). Aqui, o equívoco sempre possível é o de tratar os quatro sentidos como diferentes uns dos outros, mas substancialmente homogêneos, como se, por exemplo, o sentido literal se referisse a um certo lugar ou a certa pessoa e o anagógico, a outro lugar ou a outra pessoa. Contra este equívoco, que gerou a estúpida ideia de uma interpretação infinita, 

Orígenes não se cansa de lembrar que "não devemos pensar que os eventos históricos sejam figura de outros eventos históricos, nem que as coisas corporais sejam figura de outras coisas  corporais, mas que as coisas corporais são figura de realidades espirituais e os eventos históricos, de realidades inteligíveis". O sentido literal e o sentido místico não são dois sentidos separados, mas homólogos: o sentido místico nada mais é do que o fato de a letra elevar-se para além do seu sentido lógico, do que o transfigurar-se na compreensão - ou seja, a cessação de todo sentido ulterior. Entender a letra, tornar-se parábola significa permitir que nela aconteça o Reino. A palavra "como se não fôssemos Reino", mas justamente e só desse modo ela nos abre a porta do Reino. A parábola sobre a "palavra do Reino" é, assim, uma parábola sobre a língua, a saber, sobre aquilo que ainda e sempre nos resta por entender - o fato de sermos falantes. Compreender a nossa morada na língua  não significa conhecer o sentido das palavras, com todas as suas ambiguidades e todas as suas sutilezas. Significa, isso sim, darmo-nos conta de que aquilo que na língua está em questão é a proximidade do Reino, a sua semelhança com o mundo - tão próximo e tão semelhante que custamos a reconhecê-lo.  Pelo fato de que a sua proximidade é uma exigência, a sua semelhança uma apóstrofe que não podemos deixar insatisfeita. A palavra nos foi dada como parábola, não para nos afastarmos  das coisas, mas para as deixarmos perto de nós, mais perto - como acontece quando reconhecemos num rosto uma semelhança, como quando uma mão roça em nós.  Parabolar é simplesmente falar: Marana tha, "vem, Senhor".

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