Edição 450 | 11 Agosto 2014

História e verdade — Os arquivos como valor de prova

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Andriolli Costa

Renato Pinto Venâncio aborda a importância dos arquivos para a pesquisa historiográfica a partir da constituição de valores de prova para fundamentar a verdade histórica

Atualmente é impossível pensar o trabalho do historiador descolado da pesquisa em arquivos. No entanto, não foi sempre assim. De acordo com o pesquisador Renato Pinto Venâncio, até o início do século XIX, “os livros de história tinham como modelo a tradição clássica, e os historiadores quase sempre escreviam a respeito da Grécia e de Roma, recorrendo a textos filosóficos ou literários”. Quanto aos arquivos, estes eram fonte de consulta para pesquisa teológica ou mesmo jurídica, mas não historiográfica. 

A partir dos “Novecentos”, no entanto, a aproximação com as gramáticas das ciências e a emergência de novas formas de encarar a sociedade estimularam “a ida aos arquivos e o desenvolvimento de um aparato crítico em relação aos documentos”. Grande parte devido à busca daquilo que Aristóteles nomeia de “valor da prova”. Venâncio relata que muitos historiadores, especialmente no século XIX, faziam a relação entre verdade e “valor da prova”. “No entanto, eles não eram ingênuos. Até mesmo uma criança sabe que nem tudo que está escrito num papel é verdade.” Os documentos de arquivo possuem este valor, o de uma verdade semelhante à jurídica.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Venâncio defende a distinção — e as complementaridades — das atividades de arquivista e historiador, explora exemplos de ações educativas em arquivos e discorre sobre um dos grandes problemas da digitalização de material de acervo. Segundo ele, existe uma impossibilidade estrutural de disponibilizar os milhões de páginas que compõem um arquivo na web. Isso faz com que o esforço de digitalização priorize material referencial, o que torna a circulação de conhecimento quase tautológica. “As instituições arquivísticas disponibilizam on-line seus acervos mais consultados e, em razão disso, eles são ainda mais consultados. Isso pode, de certa maneira, empobrecer o conhecimento histórico”, problematiza. 

Renato Pinto Venâncio é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica – PUCRJ, com mestrado pela Universidade de São Paulo, doutorado pela Universidade de Paris IV - Sorbonne e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo. Atuou como consultor científico, trabalhou como editor de periódicos em arquivos, tendo sido responsável pela coordenação da implantação do Sistema Integrado de Acesso do Arquivo Público Mineiro - SIA-APM. Atualmente é professor na Universidade Federal de Minas Gerais e coordena a Comissão de implantação da Diretoria de Arquivos Institucionais da UFMG. Dentre suas obras, destacamos Universidade & Arquivos: gestão, ensino e pesquisa (Belo Horizonte: ECI-UFMG, 2012), Cativos do Reino: a circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19 (São Paulo: Alameda, 2012) e a organização de Panfletos Abolicionistas: o 13 de maio em versos (Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 2007). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual a importância da Arquivística para a História? O que permite que ela se caracterize como uma disciplina própria e não como um braço da História? 

Renato Pinto Venâncio – A relação entre Arquivística e História é, em si, um fenômeno histórico. Até o início do século XIX, essa relação não existia. Os livros de história tinham como modelo a tradição clássica, e os historiadores quase sempre escreviam a respeito da Grécia e de Roma, recorrendo a textos filosóficos ou literários. Talvez a única área vinculada à História que, então, recorria sistematicamente aos arquivos fosse a da História Religiosa, mas numa perspectiva teológica, no sentido de provar que milagres tinham acontecido ou que determinado santo tinha realmente existido. Por isso é possível afirmar que até o início do século XIX não havia uma relação muito clara entre Arquivística e História. Os arquivos eram mais consultados pelos juristas do que pelos historiadores. 

Tudo isso muda nos Novecentos. Grosso modo isso decorreu do papel que a História passou a ocupar. A partir das revoluções constitucionais, que puseram fim ao Antigo Regime, a noção de soberania migrou da realeza para a nação. Nesse último caso, tratava-se de um “eu coletivo”. Como definir uma nação? Ora, uma das respostas a essa questão foi a de pensar a nação como um passado em comum. É bom também lembrar que a construção dessas histórias nacionais projetava-se em territórios, que muitas vezes eram alvos de disputas (Alemanha e França, por exemplo) ou então lutavam por fundamentar uma noção de soberania em competição com outras (Itália, por exemplo). Todo esse quadro estimulou a ida aos arquivos e o desenvolvimento de um aparato crítico em relação aos documentos. No século XIX, a Arquivística foi definida como uma ciência auxiliar da História. No século XX, porém, essa definição deixou de ter sentido, pois a Arquivística passou a existir além dos Arquivos Históricos. A metodologia de Gestão Documental, com seu conceito de ciclo de vida dos arquivos, levou os arquivistas a se tornarem — pelo menos nos países desenvolvidos — um braço da modernização administrativa das organizações. Uma parte desta história é contada no excelente livro, recentemente traduzido, Arquivos para quê? Textos escolhidos (São Paulo: iFHC, 2010), de Bruno Delmas .

 

IHU On-Line – Como se dá a relação do historiador com o arquivista? No âmbito profissional, há espaços de tensão, ou as atividades que eles desempenham mais se complementam do que competem entre si?

Renato Pinto Venâncio – Essa questão é bastante interessante. Defendo que os historiadores — salvo aqueles que estudaram a Arquivística contemporânea — não têm competência alguma para atuarem nos arquivos correntes ou intermediários. Os cursos de História não tratam dessas questões. Quais informações têm os alunos de graduação dessa área a respeito de Planos de Classificação Hierárquica de Documentos Administrativos ou de Tabelas de Temporalidade e Destinação? Creio que a resposta é: nenhuma. Por outro lado, há espaço para os historiadores trabalharem nos arquivos permanentes dos Arquivos Públicos. O conhecimento histórico é importante na identificação e descrição de acervos arquivísticos. O mesmo podemos afirmar em relação aos projetos de ação cultural ou ação educativa dos Arquivos Públicos. Por outro lado, os arquivistas também precisam conhecer História, caso contrário eles não conseguirão avaliar as massas documentais produzidas pelas organizações ou por pessoas físicas. Enfim, trata-se de uma interdisciplinaridade, e não de uma competição.

 

IHU On-Line – Quais são os métodos que permitem ao historiador construir (ou reconstruir) narrativas sobre o passado sem, com isso, incorrer na ficcionalização do relato?

Renato Pinto Venâncio – Recorro aqui ao texto de Carlo Ginzburg , Sobre Aristóteles e a história, mais uma vez . Nele, Ginzburg observa que Aristóteles  diferencia a qualidade dos textos históricos de Heródoto  em relação aos de Tucídides , sublinhando que este último dava mais valor à prova. Então chegamos a uma questão fundamentalmente arquivística: os documentos de Arquivo têm valor de prova. Isso que os diferenciam, por exemplo, dos documentos de Biblioteca. Qual é o significado desse valor de prova? Ora, nesse aspecto adentramos em um campo minado, pois muitos historiadores associaram esse valor à noção de “verdade”. De fato, os historiadores do século XIX faziam essa relação. No entanto, eles não eram ingênuos. Até mesmo uma criança sabe que nem tudo que está escrito num papel é verdade.

A Escola Metódica  do século XIX, comumente caracterizada como positivista, trabalhava com a noção de “verdade jurídica”. Então, quando se dizia que os documentos de arquivo eram verdadeiros, não necessariamente se acreditava que eles reproduziam integralmente a realidade (aliás, se fosse assim, por qual razão esses historiadores teriam desenvolvido o aparato da crítica interna e externa às fontes?). A verdade jurídica voltava-se para a questão da custódia responsável (ou seja, onde permaneceu ou circulou o documento), ou então procurava-se identificar se o autor do documento reconhecia essa autoria. Enfim, é uma noção de verdade formal e dependente da crítica. Voltando à questão inicial, a História se diferencia da Literatura em razão da necessidade da prova. As hipóteses de pesquisa precisam ser demonstradas. É isso que faz a ida ao arquivo algo tão interessante: quase sempre a hipótese inicial não é confirmada. Então é estabelecida uma relação dialógica entre o historiador e o documento, fazendo com que a hipótese inicial seja ajustada às evidências. O resultado desse diálogo é sempre surpreendente, enriquecendo e aprofundando as perspectivas culturais da humanidade. 

 

IHU On-Line - De que formas as novas tecnologias permitiram uma mudança no modo como se desenvolvia a pesquisa em acervos?

Renato Pinto Venâncio – Creio que a tecnologia apresenta dois aspectos: um positivo e outro nem tanto. O aspecto positivo é que está ocorrendo uma revolução do acesso aos acervos arquivísticos. A disponibilização crescente de fundos arquivísticos via internet democratiza o conhecimento e viabiliza a multiplicação da pesquisa e dos cursos de pós-graduação. Um exemplo: até a década de 2000, um dos campos mais elitistas da pesquisa sobre a história brasileira dizia respeito à Inquisição. Era necessário ir a Portugal, pois os processos inquisitoriais estão na Torre do Tombo ; também era necessário lá permanecer durante meses. Nesse caso a pesquisa tinha um custo muito elevado, restringindo o número de pesquisadores. Sem dúvida, havia a possibilidade da microfilmagem, mas isso também é dispendioso e depende das leitoras de microfilmes, que também são difíceis de encontrar. 

Hoje a situação mudou. A maior parte dos processos inquisitoriais está disponível no site da Torre do Tombo . Por outro lado, existe um problema: os Arquivos Públicos são compostos por centenas de milhões de páginas. Nenhum Arquivo Público de grande porte conseguirá, pelo menos por enquanto, disponibilizar todo seu acervo on-line. Quanto a isso, posso mencionar um exemplo que conheço bem: atualmente o Arquivo Público Mineiro  disponibiliza on-line aproximadamente 1 milhão de páginas de documentos do século XVIII ao XX. Ora, isso representa menos de 5% de seu acervo. 

Então, estamos diante da seguinte situação: as instituições arquivísticas disponibilizam on-line seus acervos mais consultados e, em razão disso, eles são ainda mais consultados. Isso pode, de certa maneira, empobrecer o conhecimento histórico. Os portais das instituições arquivísticas devem evitar tal situação e dar destaque aos Guias de Fundos e Coleções, assim como destacar a riqueza e diversidade da documentação que abrigam.

 

IHU On-Line – Em um contexto de disponibilidade quase infinita de informação on-line em acervos e arquivos públicos digitais, torna-se mais fácil ou mais difícil para um historiador cercar um tema de interesse? 

Renato Pinto Venâncio – Na questão acima, em parte respondi sua indagação. A questão é o seguinte: o trabalho do historiador não é solitário. A pesquisa acadêmica está sempre inserida em contextos historiográficos. Então, um pesquisador iniciante deve sempre começar por procurar estudar a historiografia nacional e internacional a respeito do tema selecionado. Em outras palavras, o arquivo é um momento avançado da pesquisa. Os documentos precisam ser indagados, questionados e essas questões estão presentes na historiografia da área.

 

IHU On-Line – Atualmente, existem projetos e políticas públicas de incentivo à ação educativa em arquivos? Quais são os grandes desafios? 

Renato Pinto Venâncio – Eis um campo em que os historiadores podem contribuir. Uma ação educativa bem estruturada depende de várias etapas. O contato com os professores, depois a produção de material para ser utilizado pelos professores de História (por exemplo: indicação de um ou uma série de documentos, sua contextualização, perguntas e respostas, etc.), em seguida vem o treinamento de estagiários que receberão os alunos no Arquivo. Por último, a recepção dos alunos. Há experiências internacionais envolvendo professores de Matemática, Português ou mesmo de Química em ações educativas em Arquivos Públicos. No Brasil, há um trabalho excepcional feito pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo , de Ação Educativa via internet. Não tenho conhecimento de políticas públicas de ações educativas em Arquivos, nem acho que isso consistiria em um objeto de uma política pública.

 

IHU On-Line – O que é preciso ser feito para a democratização das informações disponíveis nos arquivos? Apenas a digitalização é suficiente para dar conta disso? 

Renato Pinto Venâncio – Creio que acima respondi parcialmente sua questão. No entanto, gostaria de acrescentar um aspecto fundamental. Há recursos nas agências de fomento à pesquisa para a criação de portais com acervos arquivísticos. No entanto, não há linhas de financiamento para a manutenção desses portais. Então, muito é feito e muito é perdido. Devia-se adotar o modelo da Espanha, no qual o Ministério da Cultura mantém uma plataforma única: a Pares . Os arquivos regionais podem manter seus próprios portais, mas o ministério da cultura garante a continuidade da disponibilização dos acervos digitalizados.

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