Edição 450 | 11 Agosto 2014

A redescoberta da História em novos cenários e novos saberes

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Andriolli Costa e Ricardo Machado

Para a professora Carla Meinerz, a disciplina e o ensino de História se constituem, atualmente, a partir de outras formas de pensar e relacionar, mais abertas e dinâmicas

Ainda que os desafios ao ensino de História não sejam totalmente novos, há os que se apresentam a partir das singularidades de nosso tempo atual. “Vou destacar um acontecimento recente no Brasil, que é o aumento do número de pesquisadores e programas de pesquisa vinculados ao ensino de História, com o consequente alargamento e reconhecimento desse campo entre os historiadores em geral”, explica a professora doutora Carla Beatriz Meinerz, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Isso faz com que possamos frutificar os diálogos em torno desse entrelaçamento entre teoria, metodologia e ensino de História, tanto na Educação Básica quanto na Educação Superior, tendo possíveis novos interlocutores no debate”, complementa.

A compreensão de que a história não é um evento estanque, preso ao passado, mas sim algo que é construído e reconstruído no presente, permite que o professor seja capaz de articular conexões com a realidade atual. “Sendo o objeto de estudo da História as ações e interações humanas em diferentes tempos e espaços, nada mais pertinente do que pensar historicamente essas temáticas e, sobretudo, expandi-las na perspectiva da fundamentação de ações que promovam a justiça, o diálogo intercultural, a paz e a igualdade racial”, argumenta Carla. Além disso, os próprios aparatos tecnológicos e as redes de convivência on-line promovem uma profunda reorganização dos processos de aprendizagem, ainda que o papel do educador de história permaneça fundamental. “Parece importante compreender as mídias como redes de interação social e de troca de inferências, não necessariamente fundamentadas. Os historiadores trabalham com análise de fontes. Não creio que sites, blogs ou páginas do Facebook sejam concorrentes, mas gosto da ideia de complementaridade, na medida em que elas provocam polêmicas e nos instigam ao diálogo com diferentes abordagens e à exposição pública do que conseguimos aferir”, pontua.

Carla Beatriz Meinerz é graduada em Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde também realizou mestrado e doutorado em Educação. Atualmente é professora adjunta do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UFRGS. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são os principais desafios deste ensino nos dias de hoje? 

Carla Meinerz – Ensinar História pressupõe escolhas didáticas e metodológicas, opções temáticas e conceituais, criação de perguntas complexas, recortes espaciais e temporais específicos, estratégias pedagógicas, numa conjunção em que forma e conteúdo são indissociáveis. Se considerarmos a própria historicidade do ensino de História, parece difícil encontrar desafios totalmente novos. Alguns desafios se apresentam com diferenças ou singularidades nos dias de hoje, outros se desenvolvem dentro de contextos pouco experimentados até o momento. Vou destacar um acontecimento recente no Brasil, que é o aumento do número de pesquisadores e programas de pesquisa vinculados ao ensino de História, com o consequente alargamento e reconhecimento desse campo entre os  historiadores em geral. Isso faz com que possamos frutificar os diálogos em torno desse entrelaçamento entre teoria, metodologia e ensino de História, tanto na Educação Básica quanto na Educação Superior, tendo possíveis novos interlocutores no debate. A indissociabilidade entre passado e presente, no exercício da leitura e interpretação histórica, é uma tarefa que instiga o historiador e desafia o professor de História à postura reflexiva e investigativa. Destaco que o historiador no Brasil, em geral, é também professor nas Instituições de Educação Superior e que, nesses territórios educativos, o ensino de História pode e deve igualmente ser tratado como desafio. 

No caso brasileiro, temos ainda uma especificidade a ser referenciada como desafio político e pedagógico importante: a definição pela educação para a diversidade, que inclui a educação das relações étnico-raciais e a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Indígena, Africana e Afro-brasileira. É no cotidiano da cultura escolar que nossos jovens passam grande parte de suas vidas, construindo laços com os saberes científicos em distintas áreas do conhecimento, assim como vivenciando relações sociais marcadas por atributos étnico-raciais, de gênero, pertencimento religioso, geracional, entre outros. Nas proposições de construção dos conhecimentos históricos e nas trocas socioculturais, próprias das aprendizagens escolares, é desafio do professor de História articular conexões entre passado e presente para a compreensão e valorização das pluralidades e das diferenças étnico-raciais, por exemplo.  Sendo o objeto de estudo da História as ações e interações humanas em diferentes tempos e espaços, nada mais pertinente do que pensar historicamente essas temáticas e, sobretudo, expandi-las na perspectiva da fundamentação de ações que promovam a justiça, o diálogo intercultural, a paz e a igualdade racial.

 

IHU On-Line - A opção pelo ensino, especialmente na educação básica, ainda é uma opção de carreira buscada pelos jovens estudantes de História? 

Carla Meinerz – Para falar de opções é preciso delimitar as possibilidades e os condicionamentos que se oferecem àquele que pode escolher. Podemos inferir que, no Brasil, opta-se pela licenciatura também em função das escassas possibilidades que o mercado oferece à carreira de historiador, quando comparadas às da carreira de professor na Educação Básica. Em minha docência, acompanho os jovens licenciandos do curso de História, na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, através dos estágios curriculares obrigatórios, das ações do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - Pibid/subprojeto História e do Laboratório de Ensino de História e Educação -  LHISTE. Nessa inserção, compreendo que a opção pela docência é um caminho construído na trajetória de cada sujeito, nas relações estabelecidas com as disciplinas e os professores do curso, com os programas de pesquisa e extensão e nas experiências políticas e culturais dentro e fora dos espaços acadêmicos. No universo acadêmico em que transito, a proliferação de programas de incentivo à licenciatura e à formação de professores tem significado também um encontro mais sólido e qualificado de muitos jovens estudantes com as possibilidades da carreira docente na Educação Básica. Dados atuais publicados pela Fundação Carlos Chagas, em pesquisa encomendada pela Fundação Victor Civita, demonstram que no terceiro ano do Ensino Médio apenas 2% dos jovens desejam cursar Pedagogia ou alguma licenciatura em nosso país. Mesmo entre os jovens que estão nos cursos de licenciatura, é comum encontrar estudantes que ainda não consolidaram sua opção pela docência na Educação Básica. Porém, sou otimista no quesito que chamo de encontro com o ensino de História, ou seja, a descoberta de um campo que apresenta diversidade de concepções teóricas e metodológicas, capaz de criar a beleza que extrapola a saturação da experiência e encaminha para novas formas de agir e de pensar a docência.

 

IHU On-Line - Tendo em vista a perspectiva da memória, qual a importância dos professores de História para a construção de uma relação de afecção (afeição?) à disciplina?

Carla Meinerz - Estou pensando o ensino de História nos espaços escolares da Educação Básica, mas afirmo que o ensino de História nos territórios educativos da Educação Superior também deve ser polemizado. O licenciando é, ao mesmo tempo, professor em formação e estudante de História.  Muito do que ele experimenta na Educação Superior, como estudante, serve de referência e memória para sua prática docente, especialmente nos estágios curriculares obrigatórios. Na disciplina de Introdução à Prática e Estágio de História, no curso de licenciatura em História da UFRGS, os estudantes são desafiados a evocar memórias pessoais para narrar sua opção pela atividade laboral docente. Na leitura dessas narrativas, nem sempre há uma relação direta entre gostar de estudar História e gostar do professor de História. O que tenho atentado é para outras influências que se destacam nessas trajetórias. Na leitura desses memoriais e de pesquisas sobre memórias de professores de História, são os comentários dos alunos sobre a influência dos amigos, avós ou de outros familiares que me chamam a atenção. A opção pela docência e pela História é relacionada ao fato do avô/avó/pai/mãe ter sido professor da disciplina, as lembranças das histórias por eles contadas, ou ainda pela própria história de vida escolar desses sujeitos. O primeiro contato construído com a possibilidade de estudar História está nas narrativas construídas dentro dos grupos familiares ou de sociabilidades outras.

 

IHU On-Line – Se antes o aluno era limitado ao conhecimento do professor e dos livros didáticos, atualmente a escola não é mais um meio único de acesso à informação. De maneira geral, o historiador percebe minisséries, sites, blogs ou páginas do Facebook de fundamentação histórica como concorrentes ou mais como modos complementares de ensino? 

Carla Meinerz – Parece importante compreender as referidas mídias como redes de interação social e de troca de inferências, não necessariamente fundamentadas. Os historiadores trabalham com análise de fontes. Não creio que sites, blogs ou páginas do Facebook sejam concorrentes, mas gosto da ideia de complementaridade, na medida em que elas provocam polêmicas e nos instigam ao diálogo com diferentes abordagens e à exposição pública do que conseguimos aferir. Os sujeitos não constroem seus saberes em relação ao conhecimento histórico somente com o que os historiadores oferecem, mas também por intermédio das variadas redes que podem incluir a família, a escola, grupos culturais, políticos, religiosos e igualmente através das novas tecnologias de informação. Estamos diante de novos cenários que produzem outras formas de relação com os saberes, distintas inserções e interações sociais, diversas formas de pensar os outros e a nós mesmos. Num contexto no qual a informação está cada vez menos restrita ao ambiente escolar ou acadêmico, é fundamental consolidar a nossa função social como professores e pesquisadores, ou seja, como mediadores culturais.

 

IHU On-Line – Da mesma forma, em um universo de informações ao qual estamos imersos, é muito comum a presença de informações incorretas ou de fonte questionável. Neste sentido, qual a importância de um profissional capaz de realizar a mediação entre conteúdo legítimo e não legítimo?  

Carla Meinerz – Essa mediação é fundamental e nos coloca diante da tarefa de democratizar o conhecimento histórico, não apenas na forma da docência escolar, que por tradição consolidamos, mas através do diálogo com grupos sociais distintos e, por vezes, adversos. A comunidade de profissionais da História não é uma comunidade homogênea em pensamento e ação. Porém, temos algo em nosso ofício, que tendencialmente nos congrega: olhar a fonte e criar perguntas complexas é nosso fazer cotidiano: que fonte é essa? O que ela nos diz? Qual sua autoria? Qual sua legitimidade? O que podemos inferir a partir dela? Como a relacionamos com outras fontes? Que contextos de poder estão nela imbricados?

Para mim, o legítimo e o não legítimo estão diretamente relacionados à análise das fontes, como citei antes, mas igualmente com as conquistas que fizemos e que estamos por fazer em relação à justiça, à cidadania, ao diálogo intercultural e à promoção da igualdade. É preciso posicionar-se, sim, diante de questões como o racismo, por exemplo, compostas de conteúdo histórico e interrogações do tempo presente.

 

IHU On-Line – Ao permitir uma relação mais próxima com a história local — como no nome dos logradouros ou monumentos, qual a importância da educação patrimonial para engajar o aluno na perspectiva histórica? 

Carla Meinerz – Eu tenho aprendido muito com os debates em torno da Educação e Patrimônio, porque inseridos nos processos de reconhecimento da indissociabilidade entre memórias individuais e coletivas e na valorização dos saberes evocados pelas comunidades locais. No caso do ensino, esse saber está reconhecido na interação com o que tem a dizer o jovem estudante, a partir de suas experiências de vida, seus pertencimentos e atributos identitários. Ir até a praça onde o jovem vive sua sociabilidade, canta, joga, anda de skate, toma chimarrão, e reconhecer ali histórias, memórias, narrativas... não poderia estar aí um possível engajamento na perspectiva histórica?    

 

IHU On-Line – Falando em engajamento, é possível utilizar um ambiente tão dispersivo quanto o on-line para engajar os alunos em relações pedagógicas mais participativas? Existem exemplos de práticas deste tipo? 

Carla Meinerz – Para criar uma relação pedagógica participativa é preciso estar convencido de que a aprendizagem exige protagonismo do estudante. É preciso reconhecer no jovem um interlocutor. Não é possível aprender o ofício do historiador, por exemplo, sem manusear fontes, aprender a fazer perguntas complexas, exercitar escolhas e recortes conceituais, temporais ou espaciais. Também não é possível fazer tudo isso sem ler, escrever, expor ideias, trabalhar em grupos de estudo e pesquisa. Por isso, a teoria, a metodologia e o ensino são indissociáveis. Quando colocamos o estudante como protagonista do processo de ensino, escutamos e observamos, incentivamos mais perguntas que nos surpreendem e menos repostas que desejamos. O ambiente on-line, com criação de páginas específicas, como blogs, pode sim se transformar em um ambiente virtual de estudo, com um grande potencial interativo.  Existem boas práticas nessa perspectiva.

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