Edição 447 | 30 Junho 2014

O jornalista-autor e a mediação do real — Para além de novas ou velhas gramáticas

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Andriolli Costa

Para Cremilda Medina, independentemente do meio em que é veiculada, a reportagem densa e tensa é resultado de um autor preparado para lidar com o real com equipamento técnico eficiente, sensibilidade dialógica ou cumplicidade ética e narrativa inovadora

Em uma tentativa de responder à imediatez da informação nas redes sociais, organizações jornalísticas perseguem o relato em tempo real, reinventando práticas e formatos e investindo em inovações tecnológicas. Por outro lado, outras iniciativas de mídia apostam no retorno à grande reportagem e à pesquisa jornalística — práticas que perderam espaço nos veículos tradicionais devido ao alto custo e à precarização das redações. Com duas visões aparentemente conflitantes, quais características deveriam ser resgatadas e quais deveriam ser superadas no jornalismo do futuro?

Para a professora Cremilda Medina, independentemente das frentes de trabalho, empresas, instituições, redes digitais ou iniciativas autônomas, o decisivo da prática jornalística não é outra coisa que não o contato vivo do repórter, os diálogos e os afetos. Como, afinal, “nomear de comunicador aquele indivíduo que não está afeto a seu povo?”, questiona, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Para Medina, o repórter não é apenas aquele que informa, mas um autor que desvela a complexidade do real e a materializa em palavras, na forma de narrativa jornalística. É o profissional “preparado para lidar com o real com equipamento técnico eficiente, sensibilidade dialógica ou cumplicidade ética e narrativa inovadora”.

Em um contexto de fragmentação de informações promovida pelas redes, esta figura do jornalista-repórter-autor, “com presença legitimada, para criar a articulação complexa dos sentidos da realidade imediata, com consciência identitária e sensibilidade estética” torna-se ainda mais fundamental. E é esta característica que o distingue dos demais produtores de conteúdo. “Esse autor de formação contínua, movido pela responsabilidade social, pode ou não registrar em sua narrativa a voz coletiva, significados e comportamentos no embate dos diferentes de uma sociedade democrática”, destaca ela. “Orquestrar tudo isso foi, é e será a autoria criativa dessa difícil e conflitiva mediação que, sem dúvida, nas sociedades autoritárias, torna-se um perigoso ato de resistência cultural.”

Cremilda Celeste de Araújo Medina é graduada em Jornalismo e Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, com mestrado e doutorado em Comunicação pela Universidade de São Paulo – USP. Professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP, é autora e organizadora de cerca de 60 livros. Dentre estes, destacamos: Entrevista, o diálogo possível (São Paulo: Ática, 1986), A arte de tecer o presente - Narrativa e cotidiano (São Paulo: Summus Editorial, 2003) e o recém-lançado e autobiográfico Atravessagem - Reflexos e Reflexões na Memória de Repórter (São Paulo: Summus, 2014).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No Brasil, a Agência Pública  é um dos grandes exemplos de projetos que, em um modelo sem fins lucrativos, recusam a cobertura em tempo real para promover um retorno à grande reportagem e à interpretação. As matérias da Agência possuem grande visibilidade por meio dos replicadores, e ela coleciona exemplos de financiamento bem-sucedido via crowdfunding. O que permitiu o surgimento destas iniciativas? Por que elas foram tão bem recebidas pelos leitores?
Cremilda Medina –
O tempo real não é incompatível com a reportagem, se a consideramos não pelo tamanho ou tempo de exibição. A reportagem densa e tensa é resultado de um autor preparado para lidar com o real com equipamento técnico eficiente, sensibilidade dialógica ou cumplicidade ética e narrativa inovadora. É claro que um produto elaborado com mais tempo pode avançar na profundidade interpretativa. Mas o que para mim é decisivo é o contato vivo do repórter, e não o isolamento sentado ou em pé operando máquinas, ou estático, vítima da inércia das facilidades claustrofóbicas das redações.

IHU On-Line – O retorno à reportagem, a apuração cuidadosa e o interesse público são respostas suficientes para o jornalismo dos novos tempos? O que deve ser resgatado e o que deve ser superado no jornalismo do futuro?
Cremilda Medina –
Ao longo de cinco décadas venho afirmando, na prática e na teoria (indissolúveis para mim), o lugar de aperfeiçoamento contínuo do mediador-autor na comunicação social. Não há princípio nem fim — não acredito em “genesismos” ou fim da história —, a luta, ou saga, ou aventura, prazerosa ou dolorosa, é um processo em que se conquista a legitimidade desse autor das mediações sociais capaz de dar respostas aos desafios da narrativa da contemporaneidade. Independentemente das frentes de trabalho, empresas, instituições, redes digitais ou iniciativas autônomas, esse autor de formação contínua, movido pela responsabilidade social, pode ou não registrar em sua narrativa a voz coletiva, significados e comportamentos no embate dos diferentes de uma sociedade democrática. Orquestrar tudo isso foi, é e será a autoria criativa dessa difícil e conflitiva mediação que, sem dúvida, nas sociedades autoritárias, torna-se um perigoso ato de resistência cultural.

IHU On-Line – Como você vislumbra a emergência de um possível pós-jornalismo?
Cremilda Medina
– Não partilho da concepção evolucionista (caricatura darwinista) dos pré, durante e pós. Como disse antes, o processo é mais complexo do que essa grade mental da linearidade. A história nos diz — como, aliás, o dizem cientistas das exatas — que as recorrências convivem com a linha do progresso, ou a seta do tempo com o ciclo do tempo. Estamos, pois, mergulhados num processo histórico de longa e curta duração. Se trabalhamos com a atualidade e a atualização da aventura humana, emergem a todo o momento recorrências que nos espantam. É caso da erupção de todo o tipo de violência no horizonte social que se comprometia com a civilização e os direitos humanos. Pelo menos era a grande promessa dos “progressistas” do final do século XIX.

IHU On-line – Pensando na participação cada vez mais ativa do jornalismo cidadão e em iniciativas como a Mídia NINJA, de que forma eles estabelecem novas gramáticas para o fazer jornalístico como um todo?
Cremilda Medina –
Não há novidade por aí. Quem for à história do jornalismo, sobretudo ao período inaugural do rádio e da televisão, encontrará o debate e as experiências que ensaiaram deslocar o papel consagrado do jornalista na sociedade para todos os cidadãos. Com a fragmentação alucinada das informações, devido às facilidades tecnológicas da distribuição, mais do que nunca carecemos do jornalista-autor-repórter, com presença legitimada, para criar a articulação complexa dos sentidos da realidade imediata, com consciência identitária e sensibilidade estética. As gramáticas estão permanentemente em crise porque correm atrás do prejuízo: a formação contínua, insisto, do jornalista vai muito além de velhas ou novas gramáticas. A sociedade sabe reconhecer a importância e os desafios do comunicador social, profissionalizado e escolarizado. Porque essa mesma sociedade, a não ser os que cedem a impulsos juvenis, ainda não inventou outra forma de socializar e preparar profissionais de qualquer área a não ser por meio da Escola, da experiência inovadora da pesquisa.

IHU On-line – Se o jornalismo ocidental tradicional está imerso em empirismo factual e objetividade, amparado pela lógica cientificista, em que se ampara esta outra produção espontânea que tem surgido nas redes? 
Cremilda Medina –
Já contamos com uma massa crítica considerável que desconstruiu o tecnicismo, a lógica cientificista e os pressupostos da objetividade. Aliás, tenho a oportunidade de citar um dos meus livros em faço esse exercício: Ciência e jornalismo, da herança positivista ao diálogo dos afetos (São Paulo: Summus Editorial, 2008). Verifiquei, nos estudos, que essas questões não são exclusivas do jornalismo (ocidental), e sim de uma herança que perpassa todos os saberes disciplinados. Gosto de citar, na prática interdisciplinar que venho desenvolvendo de 1990 em diante, que a medicina traz muita lenha para o fogo desses debates.

Daí a importância da pesquisa que se consagrou em todas as áreas, mas em particular nas ciências da comunicação. Um autor de narrativas da contemporaneidade (ou Reportagem), filiado a um processo de pesquisa, não se entrega cego ao reducionismo técnico tradicional nem ao espontaneísmo da liberdade de expressão. Procura constituir um repertório, atuar com noções complexas, estudar a dialogia e se inspirar nos artistas com sensibilidades muito sintonizadas com o povo para então criar uma narrativa de escuta profunda. Daí o jornalista democrático migrar da Era da Liberdade de Expressão Individual para o Direito Social à Informação. Este percurso possível já está documentado, muito antes da atual euforia com as redes digitais.

IHU On-Line – No início deste ano, o QuakeBot, do LA Times, foi o primeiro a escrever uma notícia sobre um terremoto nos Estados Unidos. O HomicideReport, no mesmo jornal, escreve sobre todos os homicídios ocorridos na cidade. Como você encara esta “virada não humana” que o jornalismo semântico e de base de dados, entre outros, traz para a prática jornalística?
Cremilda Medina –
Os dados e informações equacionados em gráficos, estatísticas, respondem a uma mentalidade que pretendia controlar os acontecimentos por meio das aparências quantitativistas. A cobertura econômica, por exemplo, padece com essa concepção exclusiva da mensuração. Não que os números e o factual esquemático sejam descartáveis numa narrativa humanizada no cotidiano, mas serão sempre informações complementares.

O jornalista, o repórter, não pode se entregar à epiderme das bases de dados: já aprendeu, na solidez histórica dos valores editoriais, que é preciso dar vida a essa pele e fazer a leitura interpretativa das estatísticas. Ou seja, levar a informação quantitativa para a vida e o protagonismo pretensamente representado em um determinado número. Dados em si não expressam social e individualmente as histórias humanas marcadas pela diferença. Podemos apelar para os historiadores que, na crise de paradigmas contemporânea, agregaram, à objetividade documental, histórias de vida, testemunhos e outras ricas leituras do acontecimento. Ora, o jornalismo sempre alimentou a polifonia e a polissemia de seu discurso com esses recursos. 

IHU On-Line – Ao ser mediada pela tecnologia, com foco em números e dados objetivos, quais os perigos da desumanização da produção jornalística? Qual o espaço para o diálogo dos afetos?
Cremilda Medina –
Na medida em não formos afetados pelas neopatias (doença ou delírio com a novidade), continuaremos afetos ao Outro e não nos encarceramos no Ego. Problema que se põe para nossos netos como para todos os profissionais. O diálogo médico-paciente, paciente-médico atesta esse desafio. E afinal, como nomear de comunicador aquele indivíduo que não está afeto a seu povo? Salvem-nos os artistas que não abdicaram dessa comunhão poética.

IHU On-Line – Buscando se adequar à lógica dos pageviews e do compartilhamento que privilegia as emoções, o storytelling, e as histórias de interesse humano, o jornalismo se rende cada vez mais a formatos típicos das redes sociais. Como equalizar relevância informativa e interesse público sem se render ao sensacionalismo?
Cremilda Medina –
O lúdico, a emoção prazerosa é o grande ato emancipatório do ser humano. Dolorosamente descobrimos isso na arte do inconsciente que, no hospício, é a maneira sublime de transcender à internação, à esquizofrenia. Por que então “censurar” o lúdico, o emocional. Sempre provoquei essa questão em termos pedagógicos para que a narrativa jornalística conjugasse o drama social à experiência lúdica. Excessos ditos sensacionalistas é outra questão: a voz íntima e humana do repórter pode alertar para a quebra dos limites. Dificilmente os códigos de ética ou as regulações jurídicas falam mais alto do que a voz interior de um profissional consciente desses limites.

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