Edição 445 | 09 Junho 2014

Pesquisa Participativa: por uma dialética entre teoria e prática

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Caroline Lisian Gasparoni e Luciane Rocha Ferreira

ADAMS, Telmo; STRECK, Danilo Romeu. Pesquisa participativa, emancipação e (des)colonialidade. Curitiba, PR: CRV, 2014.

Resenhando o livro Pesquisa Participativa, Emancipação e (Des)Colonialidade — prefaciado por Bernardete Gatti  —, somos convidadas/os a conhecer uma obra que desenvolve toda sua problematização, teórica e empírica, a partir de metodologias de pesquisa distintas. São abordadas as especificidades da pesquisa participativa, com as características que envolvem sua prática no contato com o campo empírico e sua análise crítica. Como pano de fundo, o livro nos remete a reflexões a respeito de conceitos de emancipação e (des)colonialidade desde a ótica do Sul. Os autores buscam articular a reflexão metodológica de cunho epistemológico com a análise dos resultados obtidos por meio de uma pesquisa realizada em uma organização não governamental, especificamente, junto aos projetos sociais desenvolvidos. A argumentação que perpassa o livro é o entendimento de que prática e teoria formam uma unidade dialética.

Telmo Adams e Danilo Streck compõem o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, ambos da Linha de Pesquisa: Educação, Desenvolvimento e Tecnologias. Professor Telmo é doutor em Educação pela Unisinos, pesquisador das questões envolvendo educação popular e economia solidária. É autor de Educação e Economia Popular Solidária (Aparecida/SP: Ideias & Letras, 2010).

Professor Danilo doutorou-se em Educação pela Rutgers University, New Jersey, USA. Também realizou seus estudos voltados para as questões envolvendo educação e participação cidadã. É autor, dentre outros, de Educação para um novo contrato social (Petrópolis/RJ: Vozes, 2003), Rousseau & Educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2004) e José Martí & Educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2008), além de organizador de diversas obras coletivas como o Dicionário Paulo Freire. Atualmente atua como editor do periódico International Journal of Action Research.

Pesquisa Participativa, Emancipação e (Des)Colonialidade está organizado didaticamente em sete capítulos, somando-se seis anexos com detalhamento de instrumentos utilizados na pesquisa e o prefácio escrito por Bernardete Gatti, que identifica a pesquisa como “um mergulho em interações situacionais...”.

O primeiro capítulo traz à tona a discussão a respeito da dificuldade de se discutir educação emancipatória nos tempos atuais. Remetendo-se ao filme Matrix, dirige o questionamento para o “quando” de nosso milênio e nos faz pensar sobre a necessidade da busca de “uma pedagogia do encontro de tempos” (p. 19) para lidar com as realidades da educação atual. Em meio à insatisfação causada pela confluência de diferentes “tempos”, vivemos, no decorrer do século passado e do atual, embates entre utopias pedagógicas diversas: behavioristas, humanistas, freireanas e até mesmo a defendida por Ivan Illich , o qual propunha uma sociedade sem escolas. Em meio a esses embates, procura-se sempre de novo redefinir o papel da escola atual: Qual metodologia utilizar? Quem são os educadores a ensinar no tempo em que estamos falando?

Para essas e outras questões que circundam os ambientes escolares, o livro nos aponta para a importância da contextualização das mediações pedagógicas como lugar de referência para recriar a educação para nossos tempos. Isso exige algo não menos importante, que é a criação de espaços de percepção e escuta das vozes silenciadas. Assim, a educação precisa não só “ouvir” os sujeitos atuais, percebendo suas visões de mundo expressas pelas diversas formas de cultura e representação, como também as vozes do passado silenciadas por uma escolha providencial da História contada em nossas escolas. Ao fim do capítulo, expõe-se o papel da pesquisa científica frente a esses cenários.

Os autores iniciam o segundo capítulo abordando a questão das heranças culturais de subserviência no bojo da colonialidade do poder, do saber e do ser de cuja dependência a pesquisa e a educação não são isentas. Essas heranças são reproduzidas no contexto de reestruturação produtiva do capitalismo, ou seja, tanto mais dependente e excludente quanto mais preferimos copiar modelos arcaicos ao invés de nos arriscarmos a criar novos. Frente a essa questão, como se constituiu a pesquisa brasileira? Buscando uma resposta a essa pergunta, o livro nos apresenta como contribuição típica a pesquisa participativa — investigação-ação participativa, pesquisa participante, pesquisa-ação, sistematização de experiências — que se caracteriza pelo caráter educativo e emancipatório ao envolver os sujeitos integrados ao processo metodológico, na sua formulação, realização e interpretação dos dados produzidos (ADAMS e STRECK, 2014, p. 33). As primeiras experiências brasileiras envolvendo pesquisa participativa, no campo da educação popular, são registradas por Paulo Freire na investigação dos “temas geradores”.

A necessária clareza em relação à compreensão da colonialidade — como “paradigma da modernidade eurocêntrica, colocado (e aceito) como parâmetro de um conhecimento que se autodefiniu como superior e universal, com a decorrente ‘desclassificação’ dos saberes do sul” (ADAMS e STRECK, 2014, pg. 35) — busca identificar seus traços na produção de conhecimento nos meios acadêmicos. Uma simples expressão “nortear” pode nos revelar a força intrínseca presente na nossa realidade. Força essa que revela as raízes do colonialismo que continua presente na forma de colonialidade, sentimento de inferioridade, impotência e passividade. Por que não “sulear” para designar o melhor caminho a seguir?

No terceiro capítulo, conhecemos um pouco a respeito do lócus onde foi realizada a investigação: o Centro de Formação Urbano-Rural Irmã Araújo (Cefuria), em Curitiba, PR. O Cefuria foi criado no início dos anos 1980 por um grupo de militantes cristãos com a finalidade de desenvolver projetos com comunidades e organizações, visando processos de formação e organização. O capítulo traz um detalhamento da dinâmica participativa, com suas diferentes mediações que foram compondo o leque de iniciativas realizadas em um verdadeiro mutirão de pesquisa (ver anexos ao final do livro).

A sistematização do processo foca a centralidade da pesquisa em torno de duas dimensões amplamente vivenciadas pela experiência empírica dessa Instituição: a organização política e econômica, tendo como horizonte a Economia Solidária, enquanto estratégia de capacitar as pessoas envolvidas para que tenham condições concretas de emancipação por meio da viabilização de empreendimentos solidários.

Na quarta parte do livro, os autores problematizam o conceito de emancipação no contexto histórico da modernidade europeia e da colonialidade gerada nos países colonizados da América Latina onde se cunhou o termo libertação. O texto nos presenteia com uma reflexão crítica a respeito das contradições/tensões existentes nesse processo, trazendo contribuições importantes para a compreensão das implicações do que se busca hoje como transformação social num contexto de globalização. Por fim, o capítulo sintetiza os principais elementos utilizados como indicadores de emancipação na análise compreensiva/interpretativa realizada.

No capítulo 5, os autores trazem uma relação descritiva e analítica das diferentes experiências realizadas pelo Cefuria. Os autores colocam que emancipação não se restringe a um conceito, “não se resume a uma coisa abstrata, mas dá-se em lugares e com públicos concretos.” Assim, ao descrever as experiências suscitadas e acompanhadas com um processo de Educação Popular Solidária, foi possível perceber como era compreendida e trabalhada pelos educadores e educadoras da instituição. Para tanto, o texto traz relatos cotidianos que introduz o leitor e a leitora na rotina de trabalho dos carrinheiros, nas padarias comunitárias, nos clubes de troca, entre outros. Enfim, traz a vida em detalhes a partir das frentes de trabalho educativo e de ação produtiva dos grupos em questão (ADAMS & STRECK, 2014, p. 81). Ao final do capítulo podemos encontrar uma síntese de tensões emergentes como desafios e possibilidades institucionais de organizações que atuam no campo socioeducativo como o Cefuria, várias das quais são também questões pertinentes à academia, como: teoria e prática, estrutura e missão institucional, relação entre local e global, financiamento e autonomia.

Em relação à instituição, campo empírico e participante da pesquisa, a análise conclui no sexto capítulo que o Cefuria buscou atualizar-se dentro do campo dos movimentos e organizações sociais constituindo-se um modelo estruturante contribuindo no processo de emancipação, “ao mesmo tempo em que se modificou no ambiente das práticas desenvolvidas” (ADAMS & STRECK, 2014, p. 52).

O Cefuria caracteriza-se por uma instituição que teve coragem e soube repensar-se em função das exigências dos novos tempos. Iniciou-se um processo de troca solidária onde a promoção da autonomia era o foco da ação pedagógica que ali se instaurou. Essa iniciativa se constitui em um exemplo de como a transformação pode acontecer a partir do que se realiza por meio de projetos sociais gestados em conjunto com o público-alvo. É fazer com, e não para.

E nesse processo de reafirmação de uma identidade a instituição parceira da pesquisa desenvolveu um plano de ações dialógicas em busca da autogestão dos grupos acompanhados. Dentro desta lógica, propõe-se a vislumbrar a possibilidade para que as pessoas envolvidas possam formar, ao longo deste processo, uma relação entre o micro e o macro da sociedade, onde tenham condições de perceber, de forma contínua, que possuem o poder de transformar a sociedade atual, e não apenas limitar-se a ser produto resultante dela. Tudo isso mediado por uma mística percebida como força privilegiada de mobilização do Cefuria e das pessoas e grupos que o constituem.

O último capítulo que encerra a presente obra busca sistematizar a experiência investigativa do Cefuria enquanto prática social, política e pedagógica. Na realização da pesquisa nessa organização, os pesquisadores precisaram construir relações de confiança a partir do que a própria pesquisa participativa propõe como metodologia: protagonismo dos participantes da pesquisa e compreensão de seus “universos simbólicos” (ADAMS e STRECK, 2014, p. 110).

Os autores do livro explicitam, claramente, que a decisão por realizar a pesquisa no Cefuria foi de colaborar com o empoderamento e com a formação de sujeitos capazes de exercer sua real cidadania. O texto traz, como pressuposto desse objetivo maior, o desenvolvimento de três temas centrais de base da pesquisa: “a neutralidade como uma impossibilidade, a objetividade como busca de comunicação com o outro e a rigorosidade como compromisso profissional e ético” (ADAMS e STRECK, 2014, p. 112).

Adams e Streck posicionam a pesquisa como uma tarefa pública na construção da cidadania. A pesquisa participativa proporciona a reflexão contribuindo na formação de sujeitos conscientes que se inserem na vida social e interferindo direta ou indiretamente na mobilização social. Para pesquisadores, é de grande relevância que estejam conscientes da amplitude que as pesquisas podem atingir. Certamente esta possibilidade da contribuição efetiva da pesquisa aumenta a responsabilidade política, social e ética da pesquisa acadêmica, no sentido de realmente estar a serviço da emancipação social.

Por outro lado, a leitura também chama a atenção dos militantes dos diversos movimentos sociais, os quais desenvolvem um trabalho socioeducativo que articula muitas das dimensões aqui abordadas. Chama à responsabilidade também estes atores, tanto quanto dos pesquisadores, para assumirem a corresponsabilidade nesse processo de construção. O compromisso ético, político e pedagógico deve orientar a ação de todos os atores como agentes da transformação social possível.

Encontramos nesse livro razões que justificam uma merecida recomendação para a leitura: com uma linguagem adequada, imbuída de clareza e simplicidade, os autores defenderam e explicitaram suas experiências de pesquisa de campo e reflexões teóricas de forma bastante objetiva. A leitura torna-se agradável ao leitor devido a uma escrita direta utilizando-se de recursos, tais como exemplos acessíveis, relatos de experiências e problematização, tendo por base um referencial teórico-metodológico crítico.

A obra segue como uma sugestão aos pesquisadores que necessitam conhecer mais a respeito do grupo metodológico de pesquisas participativas, podendo suscitar inspirações para recriá-las em suas próprias pesquisas empíricas em diálogo com as teorias das ciências humanas e sociais.  Também poderá servir como base aos que querem aprofundar seus conhecimentos a respeito de conceitos como emancipação e (des)colonialidade, dimensões estas fundamentais para educadores e educadoras, pesquisadores e pesquisadoras, mas também para militantes dos movimentos sociais populares que lutam por um mundo melhor. Boa leitura!

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