Edição 445 | 09 Junho 2014

Melhores condições de vida favorecem mobilizações

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Luciano Gallas

As manifestações podem não estar ligadas a uma resposta à degradação das condições de trabalho, por exemplo, e sim a uma ampliação de expectativas causadas justamente por uma melhoria das condições de trabalho, afirma Marcelo Kunrath

“Contrariamente ao senso comum que identifica a greve (e, de forma mais geral, mobilizações contestatórias) como uma resposta à piora das condições de trabalho, me parece que um conjunto de melhorias observadas nos últimos anos (em especial, o declínio do desemprego, o crescimento do trabalho formal e o aumento do rendimento dos trabalhadores) melhorou a posição dos trabalhadores na sua capacidade de negociação perante os empregadores. Ou seja, ao contrário do argumento de que estas melhorias levariam, automaticamente, a uma acomodação dos trabalhadores, o que parece estar ocorrendo é o inverso: a experiência de melhorias tende a ampliar o horizonte de expectativas dos trabalhadores, criando as bases para a mobilização pela conquista de novas melhorias. Se esta hipótese estiver correta, pode-se antecipar um contexto de acirramento da ação coletiva dos trabalhadores no Brasil. Além disso, existe um conjunto de organizações sociais e políticas investindo ativamente na construção de ações grevistas em todo o país, às vezes por fora das estruturas sindicais”, avalia o sociólogo Marcelo Kunrath Silva.

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Kunrath analisa a manifestação dos conflitos sociais e políticos vividos pelo país, a qual toma as ruas em meio à organização da Copa do Mundo. Segundo o professor, há quatro grupos distintos envolvidos nestes protestos: a população diretamente afetada pelas obras e intervenções urbanas realizadas para os megaeventos, as organizações sociais e políticas que contestam a alocação prioritária de recursos públicos para a Copa, as organizações que aproveitam o contexto do evento para obter respostas às suas reivindicações, e os grupos, muitos deles conservadores, que se aproveitam do momento para fazer oposição aos governos. “O ciclo de protestos de 2013 pode ser apreendido como uma confluência, bastante improvável, de atores heterogêneos, orientados por causas e objetivos distintos, que se articularam enquanto compartilhadores de um mesmo repertório de ação: a manifestação pública. Além disso, outra grande novidade do ciclo de protestos de 2013 foi a entrada em cena de uma grande quantidade de pessoas sem vinculação organizativa e mobilizada pelas redes sociais da internet. Este ciclo de protestos expressou uma enorme diversidade de inquietações e conflitos da sociedade brasileira, cobrindo praticamente todo o espectro de posições políticas.”

Marcelo Kunrath Silva possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado e doutorado em Sociologia pela mesma instituição e pós-doutorado no Watson Institute for International Studies da Brown University, Estados Unidos. Atualmente é professor do Departamento de Sociologia da UFRGS, integrando os programas de pós-graduação em Sociologia e em Desenvolvimento Rural. Coordena o Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento, cujo sítio na internet está disponível no link http://bit.ly/SBgXkz.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Há impacto da organização da Copa do Mundo de 2014 sobre os movimentos sociais brasileiros?
Marcelo Kunrath Silva –
É possível pensar quatro tipos de relações entre a Copa do Mundo e as mobilizações contestatórias em curso no Brasil. Primeiramente, temos os segmentos da população diretamente atingida pelas obras e intervenções urbanas relacionadas à realização da Copa. Estes segmentos, cuja expressão mais organizada é a rede de Comitês Populares da Copa, se mobilizam para confrontar os efeitos negativos (em especial, a remoção de populações) produzidos pelas obras da Copa. Em segundo lugar, podemos observar organizações sociais e políticas que se mobilizam para protestar contra a priorização por parte dos governos da alocação de recursos públicos em obras e serviços relacionados à realização da Copa do Mundo, em detrimento do direcionamento destes recursos para outras destinações (com destaque para saúde e educação) consideradas prioritárias.

Em terceiro lugar, colocam-se organizações sociais e políticas que identificam no contexto da Copa uma oportunidade para obter respostas positivas às suas demandas. Frente à visibilidade internacional assumida pelo país em função da Copa e à interpretação de que os governantes estão preocupados em evitar situações que exponham publicamente conflitos sociais, cria-se um estímulo para a emergência de movimentos reivindicatórios. Por fim, encontramos segmentos que identificam na crítica à Copa do Mundo uma forma de expressar sua oposição aos governantes, em especial ao governo federal. A crítica à Copa, enfatizando supostos casos de corrupção ou incompetência governamentais, tornou-se um foco central de articulação de um conjunto de segmentos políticos e sociais, em grande medida conservadores, que hoje se colocam claramente em uma oposição aberta ao Governo da Presidente Dilma. Observa-se, assim, que a Copa cria um contexto particular que oportuniza a expressão pública de diversos conflitos sociais e políticos que, em geral, não são resultado direto da própria Copa.

IHU On-Line - As manifestações de 2013 ocorreram em meio a um processo de retomada das paralisações sindicais no Brasil. O DIEESE estima em 446 e em 554 o número de greves no país em 2010 e 2011, respectivamente. Em 2012, um ano antes da Copa das Confederações, ocorreram 873 paralisações, enquanto em 2013 foram organizadas mais de 900 greves. Conforme o DIEESE, é o maior número de paralisações desde 1996. É possível apontar as principais causas deste fenômeno?
Marcelo Kunrath Silva –
Seria preciso uma ampla pesquisa para responder de forma adequada a esta questão. No entanto, pode-se levantar uma hipótese contraintuitiva, relacionando este crescimento das greves com a melhoria das condições dos trabalhadores no mercado de trabalho, observada nos últimos anos. Contrariamente ao senso comum que identifica a greve (e, de forma mais geral, mobilizações contestatórias) como uma resposta à piora das condições de trabalho, me parece que um conjunto de melhorias observadas nos últimos anos (em especial, o declínio do desemprego, o crescimento do trabalho formal e o aumento do rendimento dos trabalhadores) melhorou a posição dos trabalhadores na sua capacidade de negociação perante os empregadores.

Ou seja, ao contrário do argumento de que estas melhorias levariam, automaticamente, a uma acomodação dos trabalhadores, o que parece estar ocorrendo é o inverso: a experiência de melhorias tende a ampliar o horizonte de expectativas dos trabalhadores (ou aquilo que Wanderley Guilherme dos Santos  chamou do “horizonte do desejo”), criando as bases para a mobilização pela conquista de novas melhorias. Se esta hipótese estiver correta, pode-se antecipar um contexto de acirramento da ação coletiva dos trabalhadores no Brasil. Além disso, existe um conjunto de organizações sociais e políticas investindo ativamente na construção de ações grevistas em todo o país, às vezes por fora das estruturas sindicais oficiais (como tem ocorrido em várias das greves de rodoviários no país). Compreender o significado e o alcance disso dependeria de uma pesquisa empírica.

IHU On-Line – Então estamos vivendo uma nova onda de paralisações ou estamos presenciando uma situação mais pragmática: os trabalhadores se aproveitam da visibilidade dos grandes eventos para repercutir antigas reivindicações?
Marcelo Kunrath Silva –
Creio que as duas coisas. Como colocado anteriormente, o contexto da Copa cria condições de maior visibilidade e impacto para a atuação das organizações de trabalhadores. Ao mesmo tempo, penso que as melhorias (limitadas, mas mesmo assim significativas) nas condições dos trabalhadores tendem a estimular o processo de mobilização. 

IHU On-Line - Como as paralisações dos trabalhadores dialogam com os protestos contra a organização da Copa?
Marcelo Kunrath Silva –
Obviamente existem relações. Não podemos esquecer que um dos setores que se destacaram nas recentes greves foi o dos trabalhadores da construção civil nas obras dos estádios da Copa. No entanto, penso que são processos distintos e que é equivocado interpretar toda esta conflitualidade recente no país como algo unificado (avaliação que parece estar presente entre algumas organizações sociais e políticas).

IHU On-Line - Neste sentido, qual é a proximidade entre os protestos de 2014 e aqueles de 2013? O que eles revelam sobre certo sentimento de inquietação em nossa sociedade atual?
Marcelo Kunrath Silva –
O ciclo de protestos de 2013 pode ser apreendido como uma confluência, bastante improvável, de atores heterogêneos, orientados por causas e objetivos distintos, que se articularam enquanto compartilhadores de um mesmo repertório de ação: a manifestação pública (sintetizado na palavra de ordem “vem pra rua”). Além disso, outra grande novidade do ciclo de protestos de 2013 (especialmente no mês de junho) foi a entrada em cena de uma grande quantidade de pessoas (provavelmente a maioria dos participantes na segunda metade de junho) sem vinculação organizativa e mobilizada pelas redes sociais da internet. Este ciclo de protestos expressou uma enorme diversidade de inquietações e conflitos da sociedade brasileira, cobrindo praticamente todo o espectro de posições políticas (da extrema direita à extrema esquerda).

Em 2014, o quadro já é bastante distinto. É claro que as mobilizações de 2014 estão relacionadas ao ciclo de protestos do ano passado, mas têm outra dinâmica. São processos bem mais focados em termos de pautas e/ou demandas. Tendem a estar estruturados em torno da ação de uma ou mais organizações que funcionam como estruturas de mobilização.

IHU On-Line - Este conjunto de fatores indica que um eventual conformismo preponderante nos últimos anos chegou ao fim?
Marcelo Kunrath Silva –
Considero equivocada a avaliação de que vivíamos um período de conformismo nos últimos anos. Primeiramente, sempre houve um volume relativamente elevado de ações coletivas contestatórias no país. Em segundo lugar, o deslocamento de parte da atuação das organizações da sociedade civil brasileira para a atuação institucional (participação em conselhos de políticas, na implementação de políticas públicas, etc.) não pode ser confundido com conformismo. Os fóruns institucionais abertos à participação social tendem a ser espaços altamente conflitivos. Em terceiro lugar, as pesquisas mostram que assistimos nos últimos anos a um crescimento significativo no número de organizações sociais no país, mostrando uma relativa vitalidade associativa. O fato é que a manifestação pública dá visibilidade a um conflito que, por vezes, já estava presente. Penso que muitas das pautas que emergem no ciclo de protestos de 2013 não são necessariamente novas, e sim que adquirem uma nova visibilidade e impacto pela força da mobilização contestatória.

IHU On-Line - Qual é o papel das manifestações organizadas pelos sem-teto e pelas famílias removidas em função das obras dos megaeventos para o atual momento do país?
Marcelo Kunrath Silva
– Este é um dos segmentos citados antes que se mobilizam no contexto da Copa, sendo aquele que podemos relacionar mais diretamente com o evento. Mas mesmo neste caso é preciso ter cuidado para evitar simplificações do tipo: a Copa gerou as mobilizações. É preciso ter presente que movimentos de moradia ou dos sem-teto têm uma atuação histórica nas cidades brasileiras. E, em algumas cidades, são estes movimentos que têm construído as mobilizações das populações atingidas pelas obras da Copa.

IHU On-Line - As manifestações de 2014 indicam que os movimentos sociais institucionalizados estão reassumindo um protagonismo político que teria sido exercido no ano anterior pelos movimentos de organização coletiva horizontal?
Marcelo Kunrath Silva
– Esta questão aponta para um ponto de profundos debates na literatura sobre movimentos sociais: a existência de uma mudança qualitativa na organização e atuação dos movimentos sociais em função da difusão das tecnologias de informação e comunicação. Uma das grandes surpresas do ciclo de protestos de 2013, como apontado anteriormente, foi a expressiva mobilização de indivíduos desconectados de organizações sociais, mas conectados pelas redes sociais da internet e telefonia móvel. Este processo parece dar sustentação a alguns autores que enfatizam um deslocamento da centralidade das organizações sociais nos processos de contestação, com as redes sociais assumindo o papel de estruturas de mobilização. Estaríamos, assim, assistindo à emergência de um ativismo personalizado executado por indivíduos conectados via tecnologias de informação e comunicação.

No entanto, o que também se observou do ciclo de protestos de 2013 e em seus desdobramentos em 2014 é que a construção inicial da mobilização e a manutenção da mobilização após o período de pico do ciclo de protestos tendem a ser realizadas por organizações sociais. Neste sentido, estas ainda manteriam uma posição central nos processos de mobilização contestatória. Parece que a complexidade do atual momento é que observamos a convivência de processos distintos na conformação das mobilizações sociais, e a questão é como estes se articulam empiricamente.

IHU On-Line - Qual é a contribuição dos movimentos de organização horizontal para os movimentos sociais brasileiros?
Marcelo Kunrath Silva –
Se “movimentos de organização horizontal” significam as redes de mobilização constituídas nas redes sociais da internet, por exemplo, penso ser esta uma caracterização equivocada. Estas redes podem ser profundamente hierárquicas, com indivíduos (administradores) assumindo uma significativa posição de controle sobre o debate e seus participantes.

O que me parece uma discussão política estratégica e um tema central da atual agenda de pesquisa sobre movimentos sociais é a relação entre as organizações de movimentos sociais e as novas formas de interação e ação baseadas nas tecnologias de comunicação e informação. O fato de que todos ficaram atônitos com o ciclo de protestos de 2013 indica a existência de novos processos que ainda precisam ser identificados e analisados.

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