Edição 445 | 09 Junho 2014

A apropriação privada da cidade nos megaeventos

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Luciano Gallas

O geógrafo Paulo Soares aborda o modelo de políticas públicas de mobilidade urbana adotado no Brasil e a privatização do futebol, transformado em um grande projeto comercial destinado à acumulação de capital

“Vivemos uma era de mercantilização e capitalização de toda a nossa vida, tanto nos aspectos sociais como também nos aspectos pessoais. Essa mercantilização tem ligação com as transformações do capitalismo no final do século XX, sua passagem para uma fase financeira flexível (ou líquida, como colocam alguns). Hoje tudo é mercantilizável, tudo se transforma em commodity e é passível de investimento. A própria natureza é mercantilizada (vide as propagandas de condomínios fechados). A paisagem é mercantilizada (vide a valorização das favelas com "vista para o mar", no Rio de Janeiro), logo o espaço urbano, a cidade, também é mercantilizada”, afirma o geógrafo Paulo Roberto Rodrigues Soares. “A apropriação privada da cidade é que explica esta dominação do território por marcas e corporações”, complementa ele.

Segundo o docente, o patrimônio cultural da sociedade é apropriado pelas corporações com o objetivo de obter lucro, privatizando a cidade — que, por definição, deveria ser um espaço de todos. Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Paulo Soares analisa o atual modelo de políticas públicas de mobilidade urbana no Brasil e discute o legado de realização da Copa para o projeto de desenvolvimento urbano do país. “O evento esportivo foi convertido em um megaevento comercial e de acumulação de capital. Sou um apaixonado por futebol e gostaria que ele não estivesse submetido a esta lógica, não tivesse sido apropriado privadamente. A corporação organizadora do megaevento trata o futebol como sua propriedade, quando historicamente ele foi construído pela humanidade que o adotou como o esporte de sua preferência”, pondera o geógrafo.

Paulo Roberto Rodrigues Soares possui graduação em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG, mestrado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Rio Claro e doutorado em Geografia Humana pela Universidad de Barcelona, Espanha. Atualmente é professor do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e colaborador no Programa de Pós-graduação em Geografia da FURG. Participa como pesquisador do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em artigo publicado no sítio Copa em Discu$$ão , o sr. mencionou que o modelo urbano atual, baseado em políticas de mobilidade focadas no transporte individual, em uma política habitacional regulada exclusivamente pelo capital e na atração de megaeventos para impulsionar projetos desenvolvimentistas, produz "cidades mais privadas, mais fragmentadas, menos solidárias e de pior qualidade de vida". Qual é a contribuição da Copa do Mundo de 2014 para este cenário?
Paulo Roberto Rodrigues Soares -
A Copa do Mundo está inserida neste processo como um "acelerador" das políticas de desigualdade. Não foi a Copa ou a FIFA que produziram cidades mais privatizadas ou segregadas, porém o modelo de gestão dos megaeventos encaixa-se em um movimento mais amplo de mudança na gestão urbana. Em um período anterior, o objetivo da gestão política das cidades era a integração funcional de seus diferentes setores, mesmo que prevalecesse a especialização destes setores em funções urbanas básicas (habitação, comércio, indústria, lazer, circulação). Pelo novo modelo, o projeto integral de cidade é substituído pela ideia de que cada pedaço da cidade deve se desenvolver de acordo com as oportunidades que apareçam. E quem proporciona estas oportunidades? O mercado, que valoriza determinados setores e relega outros, pois as desigualdades são funcionais para o grande capital imobiliário e comercial.

IHU On-Line - No modelo urbano mencionado, o capital tem um papel central na formulação das políticas públicas. As consequências deste fato, entre as quais a valorização do privado e a desvalorização do coletivo, indicam que não vivemos apenas uma crise econômica em nossas cidades, mas também, e principalmente, uma crise ética?
Paulo Roberto Rodrigues Soares –
O que é referido como “crise ética” está relacionado com a "mercantilização" de todos os setores de nossa vida cotidiana. Vivemos uma era de mercantilização e capitalização de toda a nossa vida, tanto nos aspectos sociais como também nos aspectos pessoais. Essa mercantilização tem ligação com as transformações do capitalismo no final do século XX, sua passagem para uma fase financeira flexível (ou líquida, como colocam alguns). Hoje tudo é mercantilizável, tudo se transforma em commodity e é passível de investimento. A própria natureza é mercantilizada (vide as propagandas de condomínios fechados). A paisagem é mercantilizada (vide a valorização das favelas com "vista para o mar", no Rio de Janeiro), logo o espaço urbano, a cidade, também é mercantilizada.

IHU On-Line - Como a crise ética se reflete na mobilidade urbana? Quais são os valores que norteiam a organização de nossas cidades?
Paulo Roberto Rodrigues Soares –
Nossas cidades foram construídas para o transporte individual, pois têm a marca da nossa sociedade fundada sobre a concentração da propriedade (especialmente da terra), da riqueza e do bem-estar. O Estado sempre trabalhou em prol das elites em nosso país e em nossas cidades. Há um reconhecimento e uma naturalização das desigualdades. Como na questão habitacional: é "natural" construir casas populares de baixa qualidade, afinal, "são pobres, estão ganhando casas, ainda querem mais?". Assim, é natural que os pobres, os moradores das periferias, tenham transporte de má qualidade. Pela visão dominante, estes deveriam estar conformados, "pelo menos tem ônibus", não interessa a qualidade. 
 
IHU On-Line - Os investimentos públicos no planejamento de megaeventos como a Copa do Mundo beneficiam que setores da sociedade? Quem realmente lucra com a realização da Copa?
Paulo Roberto Rodrigues Soares –
Estes investimentos beneficiam, em primeiro lugar, as grandes corporações que fazem a gestão do processo. As grandes corporações organizadoras dos megaeventos, seus consultores e assessores, as construtoras que abocanharam a maior parte das obras da Copa. Evidentemente que existe a noção de legado, de obras que ficam para as cidades-sede, mas o que se observa é que este legado será realizado em um prazo muito distante dos eventos em si.
 
IHU On-Line - A política de financiamento e isenção de impostos para as grandes obras, como a construção de estádios e a remodelação de aeroportos, encontra algum paralelo nos investimentos realizados em políticas sociais?
Paulo Roberto Rodrigues Soares –
Os dados governamentais divulgados apontam que os recursos mobilizados para a Copa (e para as Olimpíadas de 2016) são inferiores ao gasto público com políticas sociais (saúde e educação, por exemplo). Logo, não se trata de uma questão quantitativa. Penso que o problema é a cultura de isenção de impostos para o grande capital, para as grandes corporações, enquanto que pequenas e médias empresas, famílias, trabalhadores em geral não têm estes benefícios que são dispensados ao grande capital. O problema é que aceitamos esta lógica de atração de investimentos via isenção de impostos no contexto da "guerra dos lugares". Se não damos isenção, os investimentos não vêm, os megaeventos vão para outros países e "perdemos" a oportunidade. O Estado é refém do grande capital globalizado, que nos dias de hoje tem atuação planetária e decide onde vai se territorializar de acordo com as maiores vantagens oferecidas.

IHU On-Line - A realização da Copa seria um bom momento para o país repensar a lógica em que se baseia sua política nacional de mobilidade urbana?
Paulo Roberto Rodrigues Soares –
Temos um marco legal importante, a Política Nacional de Mobilidade Urbana , que fala em direito à cidade, em sustentabilidade, em transporte público de qualidade... O problema é transformar esta lei (e outras) em realidade, pois, na prática, a teoria é outra. Apesar de todos os marcos legais disponíveis, a sociedade não consegue impor o modelo que está na lei. Prevalece o modelo de privilégio do transporte privado motorizado. É como no Estatuto da Cidade , que aponta para o desenvolvimento urbano sustentável, para a função social da propriedade urbana, mas que, na prática, não reverteu a lógica mercantil de produção das nossas cidades.

IHU On-Line - O usuário do transporte público é basicamente o trabalhador e a trabalhadora. E é principalmente o fator econômico que motiva o deslocamento diário das pessoas nos grandes centros urbanos. Se a motivação é econômica, por que o atual modelo de mobilidade não oferece um transporte público ágil e de qualidade?
Paulo Roberto Rodrigues Soares –
Ainda que já tenhamos consciência de que necessitamos uma mudança radical na nossa política de mobilidade urbana, prevalecem os interesses privados e individuais na questão. As montadoras têm uma força econômica e política muito grande. O governo está sempre buscando uma solução para os seus problemas. Os meios de comunicação hegemônicos também dependem muito desta indústria. Basta observar a quantidade de anúncios de automóveis nos horários nobres da televisão aberta ou por assinatura, bem como nos grandes jornais e revistas semanais. O automóvel ainda é um símbolo de status e distinção social em nosso país.
 
IHU On-Line - O custo e as condições precárias do transporte público oferecido foi o tema central das manifestações organizadas em junho-julho de 2013 no Brasil. O Estado brasileiro tem conseguido atender às demandas dos trabalhadores?
Paulo Roberto Rodrigues Soares –
Infelizmente, ainda não. Mesmo após as grandes manifestações do ano passado, tivemos algumas iniciativas, mas estas ainda não renderam grandes efeitos. Talvez não sejam soluções de curto prazo, mas devemos continuar discutindo e cobrando das autoridades soluções para a questão. O importante é ter consciência de que, na reorientação política da questão da mobilidade, alguns setores deverão ceder privilégios. E estes são os setores que sempre lucraram com o sistema.
 
IHU On-Line - Neste aspecto, quais das obras de mobilidade urbana inicialmente previstas para serem finalizadas antes do início da Copa estão de fato concluídas? Quais obras eram importantes e, apesar disso, foram excluídas do planejamento?
Paulo Roberto Rodrigues Soares –
No caso de Porto Alegre, pode ser citado o projeto dos BRTs [Bus Rapid Transit; em português: veículo leve sobre pneus - VLP), que ficaram para depois da Copa, sendo inclusive excluídos da matriz de responsabilidades. Acredito que eles serão implantados, mas, sem a pressão do prazo da Copa ou de eleições municipais, as obras tendem a avançar a passos lentos. Outra obra que julgo importante e que deveria ser mais discutida é o metrô (subterrâneo) de Porto Alegre. Se compararmos a cidade com outras de porte similar na Europa, a maior parte delas conta com o metrô na sua matriz de mobilidade urbana. Também temos a tecnologia do Aeromóvel , concebida aqui e que, infelizmente, nunca foi aproveitada por nós, a não ser agora com aquele mini-ramal no Aeroporto.
 
IHU On-Line - A apropriação privada dos investimentos públicos é o que explica a fragmentação da cidade e o domínio de determinados territórios pelas grandes marcas comerciais que patrocinam os megaeventos?
Paulo Roberto Rodrigues Soares –
A apropriação privada da cidade é que explica esta dominação do território por marcas e corporações. Como coloquei anteriormente, tudo é mercantilizável hoje em dia, inclusive a paisagem. O que é de todos, construído por todos, patrimônio cultural da sociedade, é apropriado por algumas corporações que querem associar sua imagem à cidade e lucrar com isso. Anos atrás, um grande banco patrocinou uma campanha para eleger o símbolo de São Paulo. "Casualmente" foi escolhida a avenida onde se situava a sede deste banco. Esta é uma forma de se apropriar de modo privado da cidade que é de todos.  
 
IHU On-Line - Gostaria de adicionar algo?
Paulo Roberto Rodrigues Soares - 
A Copa do Mundo será realizada no Brasil, o país do futebol, a "pátria de chuteiras", onde este esporte tem profundas raízes culturais. Infelizmente esta se realiza em um momento histórico no qual o evento esportivo foi convertido em um megaevento comercial e de acumulação de capital. Sou um apaixonado por futebol e gostaria que ele não estivesse submetido a esta lógica, não tivesse sido apropriado privadamente. A corporação organizadora do megaevento trata o futebol como sua propriedade, quando historicamente ele foi construído pela humanidade que o adotou como o esporte de sua preferência.

Também é de lamentar que tenhamos perdido uma oportunidade de discutirmos o modelo de cidade que queríamos construir e aproveitado a Copa para isto. Preferia que a Copa no Brasil fosse reconhecida mundialmente como aquela na qual o legado realmente beneficiou a maioria da população e não as corporações. Como um megaevento que não segregou e nem expulsou populações de seus territórios de vida. Gostaria que tivéssemos uma Copa que valorizasse a igualdade e a diversidade.

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