Edição 428 | 30 Setembro 2013

Manifestações expõem fragilidades e limites do projeto constitucional-republicano de democracia

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Redação

Cinco participantes das manifestações que surpreenderam o Brasil entre os meses de junho e julho narram suas experiências, impressões e avaliações dos protestos. São homens e mulheres, jovens e adultos, de profissões e formações culturais distintas, que estiveram presentes em atos organizados nas cidades de Belo Horizonte, Brasília e Rio de Janeiro.

Os depoimentos foram realizados a partir de convite feito por meio do Facebook, uma das principais ferramentas utilizadas nas convocações para os protestos. Daniel Teixeira, mestrando no Departamento de Antropologia do Museu Nacional – UFRJ, também deu contribuição à coleta destes depoimentos, sugerindo nomes de pessoas que participaram das manifestações e que, solidariamente, enviaram seus textos.

Eis os textos.

 

“Do dia pra noite todas as grandes TVs, rádios e jornais viraram apoiadores das manifestações, o que ajudou a aumentar a sensação de que algo estava errado”

Gabriel Machado é morador de Belo Horizonte e graduando do curso de graduação em Engenharia de Computação do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG.

Confira o depoimento.

 

No último mês de junho, fomos todos surpreendidos por várias manifestações país afora. As marchas se tornaram grandes como há décadas não se via, embora seus objetivos e anseios fossem (e ainda são) pouco definidos. Como vários outros brasileiros, fui às ruas por curiosidade. Esperava que fosse o início de uma mudança com a qual sonhava já há tempos, uma virada à esquerda, um levante popular, o povo assumindo seu papel de líder da nação. O que vi nas ruas, porém, foi bastante diferente do que imaginei.

Estive nas ruas nos três jogos da Copa das Confederações realizados em Belo Horizonte. No primeiro cheguei tarde. Peguei um ônibus e me dirigi à região da Pampulha, onde fica o estádio Mineirão. No caminho, fui tentando ligar para amigos e ter notícias do que estava ocorrendo. Nenhum me atendeu. Já havia se passado cerca de quatro horas desde que a marcha partira da Praça Sete de Setembro, no centro da cidade. Tive notícias, por familiares, de que os confrontos já estavam ocorrendo e que a polícia tentava dispersar os manifestantes.

Chegando próximo à UFMG, vi uma fila interminável de viaturas da polícia. Fiquei algum tempo sentindo o clima do ambiente. Muitas pessoas cantavam, riam e tocavam instrumentos, mas a qualquer barulho mais alto a correria recomeçava. O cheiro de gás lacrimogêneo ainda era forte no ar. Algumas pessoas derrubavam grades e a cerca da universidade estava no chão. Fui caminhando com o restante dos manifestantes de volta à praça Sete e vi no caminho várias pichações em protesto à Copa, à Fifa e às políticas públicas implementadas pelo prefeito e pelo governador. Ainda eram apenas rascunhos das pichações que seriam feitas nas próximas manifestações.

Desci procurando um ônibus, porém tive que andar mais de uma hora até passar o primeiro. O trânsito continuava fechado e os veículos passavam lentamente. Pela praça Sete passam milhares de pessoas durante o dia e, à noite, tomam conta da cena os bares e os frequentadores dos quarteirões fechados: hippies, punks, jovens de periferia e de classe média, grupos de surdos-mudos, moradores de rua, além de carrocinhas de cachorro-quente e a polícia. Nesse lugar, se encontravam cerca de três mil pessoas, várias ainda segurando cartazes e outras apenas conversando e avaliando o dia. Passado algum tempo, um grande grupo de manifestantes chegou vindo da Pampulha. Depois fui embora – tinha que trabalhar no dia seguinte. Já em casa acompanhei pela PosTV o desenrolar do protesto, que terminou em bruta pancadaria no centro da cidade, com manifestantes quebrando bancos e grandes lojas e policiais reprimindo fortemente. Não houve nenhuma boa notícia.

Nos dias seguintes a essa primeira manifestação fui recolhendo relatos de amigos que me contaram do horror que passaram. Bombas atiradas para o alto, manifestantes correndo desesperados, cavalaria avançando sobre as pessoas, tiros de borracha, cassetetes e desespero generalizado. Vários conhecidos levaram tiros de borracha. Uma amiga levou um golpe de cassetete na cabeça que a fez levar vários pontos – há um vídeo que mostra ela se levantando do chão e caindo em seguida com o golpe dado pelo policial. Nenhum destes conhecidos estava em enfrentamento com a polícia, nenhum deles reagiu ou arremessou algo e todos levaram os tiros direto no corpo, mostrando que a polícia simplesmente ignorou a instrução de ricochetear no chão as balas de borracha.

Nas conversas que tive depois dessa primeira marcha, as impressões que compartilhei com meus amigos foram de que, além de despreparados, não éramos um grupo unificado. Grande parte das pessoas ia às ruas sem noção do que exigir de nossos governantes. Muitos cartazes traziam dizeres vagos como "abaixo a corrupção" ou "valorização da saúde", numa clara demonstração de que a ação política ainda é algo muito distante de nossa realidade.

No segundo jogo, fomos à manifestação mais preparados. Chegamos à praça Sete e vimos que o cenário era diferente. Além de vários cartazes de "Fora Dilma" e coisas do tipo, havia um bloco de esquerda que nunca imaginei ver unido. Vários partidos, que em outras situações estariam se digladiando, se uniram em um grupo maciço para se proteger e levantar bandeiras em comum. Algo raro de se ver. Fomos "armados" de cartazes/escudos, feitos de cartolina e papelão grosso, com o objetivo de nos proteger de eventuais tiros de bala de borracha (eles funcionaram maravilhosamente bem).

Iniciamos a marcha em direção ao estádio e fiquei impressionado com a quantidade de pessoas que estava nas ruas. Ao chegarmos à UFMG, cerca de nove quilômetros depois, tive notícias de que ainda havia pessoas saindo do centro da cidade. A quantidade de manifestantes, estimativa sempre tão flutuante, chegou a 200 mil em algumas fontes. Chegando lá, o cenário era ainda pior do que no primeiro dia. Além da Polícia Militar, estavam nas ruas o Exército e a Força Nacional de Segurança, estes dois últimos dentro do campus da UFMG, fato inédito até durante a ditadura. A polícia havia montado uma barreira na avenida Antônio Abrahão Caram, ao lado do campus, em frente ao viaduto José de Alencar.

Fomos para perto da barreira, para ver, ouvir e sentir o clima. O que vimos foi assustador. Ao lado do Batalhão de Choque estavam pelo menos 50 homens da força nacional, ocultos pela vegetação junto à cerca do campus. Vimos várias pessoas incitando os manifestantes sobre a polícia, que já atirava algumas bombas de gás lacrimogêneo. Entre elas estava um homem, já pra lá dos 50, de camisa regata e com quase dois metros de altura que gritava para os manifestantes "vamos pra cima deles! Vamos, é nossa chance!". Outro homem, esse sem camisa e na casa dos 40, gritava, nervoso e bravejante, "avancem! Vamos! Pra cima deles!".

Os manifestantes nada faziam além de assistir. Algumas poucas pessoas arremessavam, lá de trás, pedras e rojões. E então a polícia resolveu reagir. Sem nenhum sinal visível, bombas de gás e de efeito moral voaram da barreira do choque e de dentro do campus. Várias balas de borracha vieram em nossas direções e, nessa hora, ficamos felizes por estarmos com nossos escudos. A sensação do gás foi horrível, senti vontade de vomitar e senti minha garganta fechando. Saímos correndo. Alguns poucos foram para a frente e começaram a chutar e devolver as bombas. Muitas pessoas correram para cima do viaduto, de onde várias caíram e dois morreram durante as manifestações. Passamos vinagre num pano para aliviar a sensação de sufocamento e ardência.

Depois disso resolvemos que já tínhamos visto o bastante e fomos para a casa de uma amiga em um bairro vizinho. Eram cerca de 17h. Ficamos lá fazendo uma avaliação da manifestação e a sensação de derrota era unânime. Todos se sentiam desnorteados e tinham a sensação de que algo de muito ruim estava para acontecer. Nos escondemos todos lá até depois das 22h e ficamos ouvindo os helicópteros e sentindo o cheiro do gás, que se espalhava pelo bairro. Todas as notícias que recebemos foram sobre a violência policial: além das já habituais bombas e balas de borracha, a cavalaria avançava em massa e os helicópteros auxiliavam a lançar bombas e a espalhar o gás. Fui pra casa de táxi com um casal de amigos e continuei acompanhando pela PosTV a manifestação, que acabou de forma semelhante à anterior. 

Entre o primeiro e o segundo protestos em Belo Horizonte, a mídia nacional mudou o discurso completamente. Enquanto antes se falava de baderneiros e vândalos, agora se falava do gigante que havia acordado. Do dia pra noite todas as grandes TVs, rádios e jornais viraram grandes apoiadores das manifestações, o que ajudou a aumentar a sensação de que algo estava errado. Apesar desse sentimento ruim, via-se que todos estavam tão desorientados quanto eu: o governo, a mídia, a polícia e o restante dos manifestantes. Nas conversas que tive depois da segunda marcha, cheguei à conclusão de que toda essa violência desnecessária da polícia, os agentes infiltrados provocando vandalismo (o que foi flagrado em vídeo mais de uma vez) e a reviravolta na opinião da mídia faziam parte de um plano para deslegitimar as marchas.

No jogo seguinte, cheguei na praça Sete com certo atraso. A massa já havia saído e poucas centenas de pessoas ocupavam a rua despretensiosamente. Fiquei um tempo por lá e fui cuidar de outras coisas. As notícias que recebi depois foram assustadoras: um grupo de manifestantes mais organizado, além de quebrar várias lojas, queimou carros de concessionárias, soltou foguetes e rojões na polícia e transformou a Pampulha em um cenário digno de filme de ação. A polícia respondeu à altura.

Não sei de onde surgiu a ideia da Assembleia Popular Horizontal, mas a convocação foi feita pelo Facebook e a plenária aconteceu debaixo do Viaduto Santa Tereza, no centro de Belo Horizonte. Nesta primeira, havia cerca de mil pessoas. Tudo aconteceu em clima de paz e alguns atos foram marcados. Naturalmente havia vários integrantes de partidos, de movimentos sociais e de organizações não governamentais, mas também havia muitos autônomos, não vinculados a nenhuma instituição, além de policiais disfarçados. Outras assembleias ocorreram e marcou-se um ato para um sábado de manhã, em frente à Câmara dos Vereadores. Nesse dia, havia sido marcada uma sessão extraordinária para votar uma proposta enviada pelo prefeito Márcio Lacerda para diminuir o preço da passagem de ônibus. A proposta previa uma isenção de um imposto municipal para que a passagem abaixasse 10 centavos.

A manifestação ocorreu com confronto da polícia, que atirou gás de pimenta a esmo, e terminou com uma ocupação da câmara que durou uma semana. Esta ocupação, por um lado, conseguiu uma reunião com o prefeito e outra com o governador, mas, por outro, desmobilizou a assembleia, pois a mesma passou a ser marcada em cima da hora e dentro da própria Câmara de Vereadores. Depois de uma semana de atividades, decidiu-se por desocupar a câmara e realizar uma ocupação cultural de uma tarde no centro da cidade. Ao final de todo este processo, conquistou-se a diminuição da passagem de ônibus em 15 centavos. Entretanto, o mais importante dessa questão, a abertura das planilhas de custo das empresas de ônibus, não aconteceu.

Desde então, o movimento de rua esfriou visivelmente em Belo Horizonte. Ainda assim, continuam acontecendo assembleias nas quais várias pessoas tentam reverter a metodologia para algo realmente democrático e horizontal. Vários grupos se formaram, vários contatos foram feitos e os grupos que já existiam se fortaleceram. Espero que alguma mudança significativa ocorra e que tudo isso não tenha sido em vão. Espero que essa balançada na inércia do povo tenha um efeito positivo e que as pessoas cobrem mais de seus representantes. Espero que esse movimento não dê uma guinada à direita. Espero, principalmente, que uma nova forma de representatividade surja para que tenhamos realmente voz diária na política e não apenas de dois em dois anos. Venceremos!

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