Edição 201 | 23 Outubro 2006

“Vivemos um cenário de refluxo do movimento social”

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IHU Online

O cientista social Jairo Cesar Marconi Nicolau, do IUPERJ, acredita que os partidos brasileiros estão fragilizados e que precisamos fortalecê-los. Ele aposta em outras reformas de participação da sociedade na política, afirmando que “a riqueza de uma democracia se deve em larga medida à riqueza do envolvimento dos cidadãos com a política para além do partido, da eleição”.

Jairo Nicolau possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestrado e doutorado em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pela Sociedade Brasileira de Instrução (SBI/IUPERJ). Atualmente é professor adjunto da mesma instituição. Tem experiência na área de ciência política, com ênfase em comportamento político, atuando principalmente nos temas de sistema partidário e partidos políticos. Entre seus livros publicados, citamos História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Sistemas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. Confira, a seguir, a entrevista que o professor nos concedeu por telefone, na última semana: 

IHU On-Line - Como podemos pensar a democracia no Brasil de hoje? Ela e a estrutura partidária ainda têm espaço na sociedade hiperindividualista de nosso país?

Jairo Nicolau
- Do ponto de vista do quadro geral, acho que avançamos bastante com relação ao arranjo democrático. Estamos fazendo quase 20 anos da Carta de 1988 . As instituições no Brasil são razoavelmente sólidas quanto à durabilidade e também não há nenhuma ameaça importante para a quebra da ordem democrática. Os militares, por exemplo, voltaram para os quartéis e abandonaram a política. Nós não temos nenhuma ação revolucionária de um grupo produzindo ações terroristas, boicotes, ou coisas do gênero. Todo o jogo político hoje se faz na arena eleitoral, parlamentar. A vitória de Lula em 2002 significou isso, uma alternância do poder real no Brasil, que foi o fato de um partido de esquerda assumir o poder sem nenhum grave conflito social, sem nenhuma resistência pesada, o que mostra a maturidade do País. Nós afastamos um presidente por impeachment. Hoje esse presidente, depois de 14 anos, volta ao Senado, com uma certa tranqüilidade, após passar o período de oito anos de cassação, ele volta à vida pública. Tudo isso revela um amadurecimento do processo democrático no País sem grandes solavancos.

IHU On-Line - Quais as condições dos partidos políticos hoje na sua opinião?

Jairo Nicolau -
Os partidos hoje poderiam estar em uma situação um pouco melhor. Eles deram, nessa campanha particularmente, sinais claros de cansaço, de estresse, mostrando dificuldade de representar os interesses das pessoas, dos indivíduos. Pelo menos aqui no Rio de Janeiro, na campanha para a câmara dos deputados e para a assembléia legislativa, os candidatos praticamente não falaram o nome dos partidos, como se eles tivessem desaparecido. Era um festival de candidatos tentando se distinguir um dos outros por atributos pessoais. Ninguém valorizou o fato de pertencer a um determinado partido e se honrar disso. O presidente Lula, nem uma vez sequer durante a campanha, fez menção ao fato de pertencer ao partido dos trabalhadores. Isso é bem revelador de um momento que os partidos brasileiros vivem, de muita divisão interna, de descrédito da população e num cenário de muita incerteza por conta da introdução da regra dos 5%, a cláusula de barreira . Some-se a isso uma potencial reforma política no ano que vem.

Nós fechamos um ciclo no País, no qual os partidos foram muito importantes. Estamos precisando de partidos um pouco mais fortes, com menos trocas de legendas durante o mandato. Precisamos de partidos mais orgânicos, operando de maneira mais concertada e sem líderes individuais, um com cada cabeça. Estamos vendo isso de ponta a ponta no Brasil. O partido decide uma posição, e um líder regional resolve tomar outra. Tem vários casos de divisão acontecendo. Um exemplo é o PPS, com o Blairo Maggi, governador reeleito do Mato Grosso pelo partido, apoiando Lula. Outro caso é o da Roseana Sarney apoiando Lula, mesmo sendo do PFL. Cito aqui até mesmo o fato de o PDT não assumir uma posição nacional, deixando seus quadros livres para apoiarem o candidato que considerarem o melhor. Isso é revelador desse cenário de fragilidade dos partidos. È preciso fortalecer os partidos brasileiros.

IHU On-Line - Quais são os interesses que os partidos representam hoje?

Jairo Nicolau
- É difícil falar dos interesses. Os partidos hoje estão sem nenhuma vocação para tentar ocupar a Presidência, ou com baixíssima discussão interna sobre propostas para o País. Na verdade, muitos partidos são siglas que abrigam caciques locais, regionais. Uma característica dos partidos hoje é que eles estão em baixa intensidade de debate doutrinário, programático, de formulação intelectual. Os partidos vivem como grandes guarda-chuvas de lideranças locais e regionais. Basicamente, temos essa configuração padrão. Alguns com vocação mais de operar na Câmara dos Deputados e no Senado, outros com alguma ambição de controlar alguns estados, mas poucos partidos estão realmente preparados e formulando propostas para o País, com intelectuais em seus quadros. O que está faltando aos partidos brasileiros é serem mais do que simplesmente a reunião de lideranças locais, cada uma com seu interesse, sua ambição, e transcenderem um pouco esse localismo, esse particularismo, pensando projetos mais sistemáticos, direcionados para todo o Brasil.

IHU On-Line - É o momento de pensarmos em novos mecanismos políticos? Se sim, quais e como seriam eles? Com mais participação da sociedade civil?

Jairo Nicolau -
Eu vejo isso muito bem. Quanto mais envolvimento da sociedade civil, seja por intermédio dos órgãos de representação, sindicatos, associações, seja por intermédio da ação dos cidadãos, individualmente, na política. Não precisa ser necessariamente na arena partidária, parlamentar. Outras formas de envolvimento de cidadãos com a política são sempre bem-vindas por associativismo seja filantrópico, seja cultural, seja cívico. A riqueza de uma democracia deve-se, em larga medida, à riqueza do envolvimento dos cidadãos com a política para além do partido, da eleição.

O problema é que hoje vivemos um certo ceticismo da população brasileira, ou pelo menos uma falta de interesse em envolver-se com esses organismos. Então, não vivemos um momento propriamente de grande vitalidade organizacional, associativista. O movimento de bairros e o associativismo de vizinhança caíram muito, o movimento sindical vive um período muito voltado para as questões tópicas de cada categoria, o movimento de estudantes está sem vitalidade, o movimento ambientalista também fica muito circunscrito a uma área ou outra, e mesmo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que era o grande movimento social da década de 1990, anda muito devagar, perdeu a força, o ímpeto e o apoio que ele tinha inclusive na classe média urbana. Vivemos um cenário de refluxo ou de baixa mobilização social.

IHU On-Line - Que aspectos não poderiam ser deixados de lado em uma reforma política para o Brasil?

Jairo Nicolau
- Numa reforma política, temos que pensar primeiro como fortalecer os partidos. Depois, também precisamos criar novas regras de financiamento de campanha, já que as atuais chegaram ao limite, não funcionam mais, não equacionam mais os desafios de uma democracia de massas como a brasileira. Têm-se visto escândalos permanentes, caixa dois, e campanhas muito caras. E também é preciso mudar uma coisa ou outra no sentido de dar mais vitalidade ao processo eleitoral. Os outros tópicos dependem muito das preferências pessoais ou de como os partidos se armam para essa discussão.

IHU On-Line – E por onde deveria passar a formulação de um projeto de país para o Brasil?

Jairo Nicolau
- Com relação a questões mais profundas, para além da reforma política, há uma série de desafios que estão “quicando” para serem pensados com mais calma. Neste fim de campanha presidencial, vemos uma discussão sobre o papel do Estado no Brasil. Afinal, que papel deve ter o Estado? Ainda controlar parte da economia com suas empresas? Qual o papel do Estado como provedor de benefícios redistributivos, como a área social, os programas de renda mínima e transferência de renda? Outro tópico importante é a reforma da previdência, que apareceu como um tema controverso. Há a necessidade de pensarmos um desenho previdenciário mais equânime, e que tenha sustentabilidade a médio prazo, para as gerações que estão começando a trabalhar, ou estão no meio da sua vida profissional útil e querem garantir as mínimas condições para o futuro.

Outro desafio também com relação ao papel do Estado é o de um projeto de desenvolvimento, para fazer o Brasil crescer de forma sustentável. Nós precisamos enfrentar uma discussão séria, que não foi feita pelos candidatos a presidente. Por exemplo, o tema da previdência, os dois agora no segundo turno se esquivaram de debater, porque é um tema explosivo. O tema da política social todo mundo é a favor, todo mundo é contra a reforma da previdência porque é um tema que mexe com muitos interesses. Todos querem que o Brasil gaste muito com programas sociais e todo mundo é a favor de que o Brasil volte a crescer. O problema é que se não temos claro quais são os caminhos para chegar a esses objetivos, fica muito difícil sair desses clichês que temos visto nas campanhas.

Se tirarmos as peças de acusação entre os candidatos, há um enorme consenso em relação às propostas. Só não querem ver isso os militantes de cada campanha. Se, por brincadeira, tomarmos nota de “quem disse isso e quem disse aquilo”, sem colocar o autor, as pessoas vão se confundir, porque eles dizem rigorosamente a mesma coisa. É uma agenda que não quer mexer com o eleitor médio nem com temas explosivos, não quer enfrentar certos desafios, por exemplo, discutir para valer o papel das empresas privadas, a previdência, debater uma forma de tirar as pessoas do Bolsa Família, e não colocar mais gente, elaborando um projeto de desenvolvimento que consiga tirá-las, fazendo-as ganhar autonomia, tendo um trabalho, requalificando-se profissionalmente. Esses temas precisam ser enfrentados.  

IHU On-Line - Como seria o projeto de país para a esquerda e para a direita? Lula e Alckmin defendem um projeto de país? Como seria o projeto em cada caso?

Jairo Nicolau
- Entender as duas candidaturas como expressão de direita e esquerda é forçar a barra. Isso as duas campanhas estão tentando fazer, sobretudo a campanha do Lula, tentando empurrar o Alckmin para a direita, mas não é o caso. O governo Lula, por exemplo, adotou várias políticas na área macroeconômica. Foi um governo que deu continuidade às premissas das políticas macroeconômicas de Fernando Henrique Cardoso, com uma óbvia diferença aqui e acolá. A autonomia do Banco Central, com metas inflacionárias, superávit fiscal, responsabilidade fiscal desenhada pelo Fernando Henrique, toda essa agenda foi seguida, e esse tema não apareceu na campanha como um tema que dividisse.

Não dá para dividir os candidatos como expressão simples e sem matizar um pouco da esquerda e da direita, porque ambos os candidatos têm apoios de partidos e de figuras ligadas à esquerda e à direita. Ambos têm apoio dos setores mais “atrasados” da política brasileira, mais conservadores não no sentido do conservadorismo doutrinário, mas do conservadorismo de práticas clientelistas. Ainda que os militantes queiram, é difícil avaliar o governo Lula como expressão pura e simples da esquerda, e é difícil imaginar a campanha do Alckmin como uma campanha de expressão pura e simples da direita. O governo Lula pode ser classificado hoje, no máximo, como governo de centro-esquerda, com boa vontade nós acrescentamos esse qualificativo de esquerda. E o candidato Alckmin seria de centro. Os dois políticos são muito pragmáticos, são pouco ideológicos. 

IHU On-Line - O senhor vê que eles estão defendendo um projeto de país?

Jairo Nicolau
- Não, não estão. No fundo, os projetos são muito parecidos. É até curioso, pois em alguns tópicos parece que as coisas se invertem. Lula tem enfatizado mais o ensino de terceiro grau, com as universidades, Prouni, as novas universidades nas áreas populares, em cada centro do País um pólo, o que não seria uma agenda da esquerda. E Alckmin tem chamado a atenção para o ensino fundamental, ampliação do ensino médio, e tem falado mais nisso do que o PT.

Política de assistência

Ambos concordam que o Bolsa Família foi um avanço e ambos vão mantê-lo. Ambos falam que o Brasil tem que crescer e que os dois têm as receitas para isso. Ninguém quer falar em cortes, porque isso é impopular. Ninguém quer falar de previdência, embora saibamos que quem vencer terá de fazer uma reforma da previdência. Ano que vem será um ano com menos capacidade de investimento do que esse ano,  mas isso tudo ninguém quer falar. A campanha esconde os temas controversos e se agarra a temas fáceis. Ninguém quer receber o ônus de chutar os fatos, quem for contra o Bolsa Família perde a eleição no outro dia. Quem falar de privatizar a Petrobras perde a eleição na hora seguinte. São temas intocáveis. Falar de previdência é mexer com o interesse de um enorme contingente de funcionários públicos, aposentados, associações, sindicatos e base eleitoral. São temas que em uma campanha só podem mexer candidatos que não vão vencer, que querem politizar a campanha e podem falar o que pensam. Um candidato nas circunstâncias de Lula e Alckmin não diz o que vai fazer. Ele fala o que as pessoas querem ouvir.  

IHU On-Line - Podemos considerar o PT ainda como um partido de esquerda?

Jairo Nicolau
- O PT sim, ele está à esquerda do Lula. O PT tem uma certa autonomia, ainda que hoje o partido esteja muito zonzo, depois desses escândalos que envolveram os principais dirigentes, todos foram afastados, e com um certo declínio eleitoral nos centros urbanos, que o partido sofreu agora. O PT vai ter que fazer um processo de reconfiguração, de peneiramento dos seus quadros e dos seus programas, e daí vamos saber o que ele pensa. Por enquanto, o PT, nesses últimos anos, ficou muito ligado a ser o partido do Lula, o partido que resolveu dar suporte ao Lula. Agora é hora de mostrar o que o partido pensa para além do governo Lula. O PT é o defensor do que o Lula faz?

O PT tem marcações próprias que o governo Lula não está implementando? O PT vai ser a favor da mesma agenda econômica e social, do Bolsa Família, das agências reguladoras? Tudo o que o Lula fizer vai ser o programa do PT ou o PT tem que pensar o Brasil para além do governo Lula? É uma tensão que sempre esteve presente, mas nos últimos anos, como o partido afundou em uma crise interna muito grande, acho que ele não teve tempo para definir-se em relação a esses tópicos e pensar seu grau de autonomia ou de adesão em relação ao presidente Lula.

IHU On-Line - Como classificar o PSDB e o PMDB? Quais as principais correntes dentro desses dois partidos?

Jairo Nicolau
- O PSDB ainda, apesar do nome, não é propriamente um partido social democrata à antiga. É mais um partido de corte liberal, de centro. Se fosse na Europa, o PSDB seria certamente classificado como um partido de centro, e não como um partido social democrata. Os programas dele têm apoio da classe média, com uma agenda muito ligada à herança do Fernando Henrique. É um partido ligado à era Cardoso e seus feitos e defeitos, e é obvio que há uma corrente no partido um pouco menos liberal e com flertes mais estatistas, como é o caso do governador eleito de São Paulo, José Serra. Hoje o PSDB é um partido de centro, com enorme apoio da classe média, e muito ligado à defesa e aos tópicos da era Cardoso.

O PMDB é um partido curioso, que é a configuração mais bem acabada do que eu acabei de dizer de um partido que é uma confederação de lideranças estaduais e que não consegue sair disso. Uma parte dessas lideranças estaduais são lulistas, outra antilulistas, como antes eram henriquistas e anti-henriquistas, uma parte do partido vai para a oposição, uma parte fica com o governo, uma parte dá votos para o governo, outra dá votos contra e o partido vive muito bem. Há três eleições que não disputa a eleição presidencial com candidato próprio. E o balanço interno dele se dá em função desse equilíbrio ou desequilíbrio entre as forças estaduais. Não é um partido vocacionado para a presidência, não consegue transcender essa sua marcação de confederação e também não é um partido que tenha uma marca doutrinária particular, não tem uma herança para defender, nem uma agenda a propor. Hoje o País está vivendo em função do contraste de duas eras: a era Cardoso e a era Lula. E se Lula vence essa eleição, vamos ter duas eras de oito anos cada uma e o contraste deve marcar a política brasileira por um bom tempo. E o PSDB e o PT se destacam como grandes herdeiros, como grandes defensores e acusadores dessas duas eras.

IHU On-Line - Que País o senhor deseja? Com qual Brasil o senhor sonha?

Jairo Nicolau
- Acho que temos muitos desafios pela frente, para enfrentar nos próximos anos. Talvez um dos maiores deles seja a segurança pública. O País com que eu sonho, depois que morei um ano na Inglaterra, ano passado, é um país em que a gente recupere as ruas, a tranqüilidade para se deslocar, com confiança de que possamos voltar a ocupar as ruas para brincar, para o lazer, para se divertir, coisa que perdemos e que algumas gerações nunca tiveram, que é o espaço público como um espaço de tranqüilidade. Esse não é mais hoje problema das grandes cidades, a insegurança é de ponta a ponta no País, e isso é um problema gravíssimo, de um país violento, de pessoas agressivas e muitos crimes. Há uma certa banalização da morte no País e esse é um tema que precisamos pensar sob uma perspectiva humanista. Não dá mais, isso é diário. Temos acidentes de automóvel num mesmo fim-de-semana com mais de 70 mortos. Esse não pode ser um tema banal, que renda uma matéria no Jornal Nacional e acabou. O País precisa parar para balanço. Não podemos continuar mantendo esse número dep com uma certa tranqüilidade. É óbvio que o nosso maior desafio é uma incorporação mais plena dessa multidão de pobres, desvalidos, excluídos de toda ordem, que nós fomos produzindo nas últimas décadas. Hoje, ainda que programas como bolsa família ajudem muito, temos que dar um passo adiante. Precisamos de uma melhoria substancial no nosso sistema educacional. Temos um sistema educacional pífio, vergonhoso. Não são só as crianças fora da escola, mas é a falta de qualidade do nosso ensino.

 

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