Edição 427 | 16 Setembro 2013

A política desnudada

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Márcia Junges

Para Gramsci, Maquiavel inova ao compreender a política como uma ciência autônoma, com princípios e leis particulares, diferentes daqueles utilizados na moral e na religião, observa Gonzalo Rojas

Um campo autônomo, com regras de jogo próprias, e que “evita a guerra e permite uma vida civilizada”. Essa era a compreensão de Nicolau Maquiavel sobre a política, explica o cientista político Gonzalo Rojas, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Seu pensamento incomoda porque “desnuda” a política, “deixa de ser o ‘bem comum’, ou uma ‘vontade divina’ para, pelo contrário, ser definida como a luta pelo poder e sua conservação entre os homens”. Promovendo um cisma entre religião e política, o florentino “melhorou a técnica política tradicional dos grupos dirigentes conservadores, mas também a política da filosofia da práxis, o que dá um caráter essencialmente revolucionário” às suas ideias.

Gonzalo Rojas é graduado em Ciência Política pela Universidade de Buenos Aires — UBA, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo — USP com a tese Os socialistas na Argentina (1880-1980). Um século de ação política, e pós-doutor pela Universidade Estadual de Campinas — Unicamp. Leciona na Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em que aspectos Maquiavel é um escritor fundante da moderna Ciência Política? Alguns autores assinalam que Maquiavel foi o autor de uma teoria política ao cindir o Estado da religião e ao separar a ética cristã da esfera política. Outros afirmam que Maquiavel somente teorizou situações que presenciara, sem haver formulado uma teoria especificamente. Qual é seu ponto de vista?

Gonzalo Rojas - Maquiavel é o primeiro filósofo político que separa a “política” da moral e da religião. À diferença da teoria política clássica (grega antiga), onde a política faz parte de uma totalidade, sendo a polis o único marco onde o homem pode desenvolver suas atitudes individuais, morais e intelectuais pela sua natureza, e da teoria política medieval, onde predomina uma visão teocrática, descendente do poder político onde este emana de Deus, Maquiavel concebe a política como um campo autônomo, que tem regras de jogo próprias. Não há escritor político que tenha suscitado tantas controvérsias, comentários, reações ou aprovações como o florentino. Maquiavel incomoda desnudando a política mesma, que deixa de ser o “bem comum”, ou uma “vontade divina” para, pelo contrário, ser definida como a luta pelo poder e sua conservação entre os homens.

A principal preocupação de Maquiavel é atingir um objetivo político, como lograr a unidade nacional italiana dispersa em múltiplos principados, unidade lograda pela França e Espanha; como elaborar uma estratégia bem-sucedida para alcançar o poder e como o conservar, o que, segundo Sheldon Wolin , supunha uma economia da violência . 

Maquiavel é um realista, do ponto de vista que estuda a realidade como ela é, não como deveria ser. Ele não acredita que essa realidade seja imutável. Sendo a política dominação, conflito, toda decisão política inclui a avaliação de que grupos sociais vão se beneficiar e outros irão se prejudicar. O realismo, la veritá effettuale delle cose, a verdade efetiva das coisas, é um componente de uma visão moderna da política.

 

IHU On-Line - O que O Príncipe tem a dizer à política de nossos dias? Quais são as ideias fundamentais dessa obra que encontram reflexo na práxis política do século XXI? Em que aspectos Antonio Gramsci se “apropriou” de Maquiavel em uma perspectiva contra-hegemônica?

Gonzalo Rojas - Gramsci apresenta, na sua interpretação de Maquiavel, a importância teórica e política de pensar um príncipe moderno no marco da filosofia da práxis, a necessidade de que a secularização da política torne-se um senso comum e a política como uma práxis para a construção de relações de forças próprias na luta pelo poder na formação de uma nova vontade coletiva nacional e popular, para transcender as sociedades capitalistas “ocidentais”.

A ideia de Estado ampliado em Gramsci como uma articulação de coerção e consenso é relacionada com a existência, para Maquiavel, de diferentes tipos de Estado. Esses tipos de Estado podem se resumir a dois: as repúblicas, onde os homens são cidadãos, ou os principados, onde os homens são súditos. A ideia do Estado como um centauro está junta em Gramsci na ideia de Estado ampliado, com coerção e consenso, como dois momentos simultâneos da dominação burguesa, mas aparece também no príncipe que, entre as bestas, tem que escolher a zorra e o leão. A zorra porque vê as armadilhas, e o leão para amedrontar os lobos.

 

Crise orgânica

Gramsci entende a política como relações de força e a necessidade de o príncipe moderno construir relações de força próprias nas diferentes situações de luta. Isso nos remete à diferença entre as armas próprias e as alheias realizadas pelo florentino com sua interpretação da política como luta pelo poder, separada da moral e da religião. Gramsci, seguindo Lênin , utiliza, mas inverte a relação realizada por Maquiavel entre Oriente e Ocidente, quando o florentino interpreta que no Oriente (Turquia) é difícil a conquista e fácil a permanência no poder, e no Ocidente (França) ocorre o contrário.

Gramsci, depois da inversão da relação, entende que da interpretação do tipo de estado que se enfrenta se desprende o tipo de luta que se realiza. Dessa forma, nos apresenta as possibilidades para passar de uma guerra de manobra (Oriente) a uma guerra de posição (Ocidente) no marco de uma nova estratégia revolucionária nos países capitalistas desenvolvidos.

Segundo Gramsci, só num contexto de crise orgânica é possível que o bloco histórico dominante seja substituído pelo bloco histórico contra-hegemônico, mas, no caso em que não exista esse bloco alternativo, a oportunidade se perde e se produz uma recomposição do bloco dominante sob novas bases. Podemos relacionar isto com os conceitos de virtude (a virtù romana) e fortuna; já que, para o florentino, sem oportunidade as virtudes se perdem, sem virtude a oportunidade terá vindo em vão. Então, a fortuna mostra seu poder quando não tem virtude organizada. Destacamos, também, a questão da organização em Gramsci, assim como a diferenciação de príncipe moderno de príncipe.

 

Política e violência

Gramsci faz uma inversão da definição de guerra de Carl Von Clausewitz , que podemos relacionar com os objetivos da guerra e da paz em O Príncipe, de Maquiavel, quando este escreve sobre a importância dos exercícios físicos e a leitura da história por parte do príncipe. Segundo Gramsci, tem de se fazer uma análise concreta da situação concreta em cada formação econômico-social para elaborar uma estratégia revolucionária. No florentino aparece a ideia de verdade real das coisas diferenciadas das representações imaginárias das mesmas. Os dois têm uma visão não conservadora do poder político. A ordem é necessária, mas a política substitui a violência, a conceição de estabilidade política, essa preocupação obsessiva não é imutável, é produto de um equilíbrio de forças. A política evita a guerra e permite uma vida civilizada, segundo o florentino. Estas apropriações nos fazem refletir sobre a possibilidade da utilização de Gramsci de Maquiavel em uma perspectiva contra-hegemônica.

 

Caráter revolucionário

Maquiavel inova toda a concepção do mundo, segundo Gramsci, ao separar a política como uma ciência autônoma com seus princípios e leis, diversos daqueles da moral e da religião. Para Gramsci, esta proposição tem um grande alcance filosófico. O estilo de O Príncipe é o de um manifesto político, de partido. O Príncipe é um homem de ação que impulsiona a ação dos outros, é um político. Gramsci desenvolve uma crítica à interpretação de Croce , segundo a qual o maquiavelismo é uma ciência que serve tanto aos reacionários como aos democratas, afirmando que essa interpretação é verdadeira só em termos abstratos. Segundo o comunista italiano, pode-se pensar que Maquiavel tem em vista “quem não sabe” e pretende educar politicamente “quem não sabe”, de forma positiva, quem deve reconhecer como necessários certos meios, mesmo próprios dos tiranos, porque deseja determinados fins. Quem não sabe nessa época? A classe revolucionária, o “povo”, a “nação italiana”.

Maquiavel tem um objetivo claramente político: persuadir estas forças a ter um “chefe” que saiba aquilo que quer e como obtê-lo, aceitá-lo com entusiasmo, mesmo se suas ações possam estar ou parecer contraditórias com a ideologia difundida na época, a religião. Para Gramsci, o maquiavelismo melhorou a técnica política tradicional dos grupos dirigentes conservadores, mas também a política da filosofia da práxis, o que dá um caráter essencialmente revolucionário ao florentino.

 

Superação da sociedade capitalista

Em outra parte dos Cadernos, é importante a crítica que Gramsci realiza sobre a teoria dos partidos políticos elaborada pelo discípulo de Max Weber , Robert Michels , autor da “lei de ferro das oligarquias”. Gramsci se pergunta também que lugar ocupa ou deve ocupar a ciência política, a política como ciência autônoma, em uma concepção sistemática, coerente e consequente do mundo, em uma filosofia da práxis, em uma concepção do mundo. Como conclusão geral do trabalho, consideramos que as análises das reconceitualizações gramscianas de Maquiavel fornecem elementos para uma filosofia da práxis contra-hegemônica que permite superar a sociedade capitalista.

 

IHU On-Line - Tomando O Príncipe em consideração, alguns estudiosos apontam Maquiavel como absolutista. A partir dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, o florentino é tido como republicanista. Como percebe essas conceitualizações e o que elas expressam sobre a (in)compreensão da obra maquiaveliana?

Gonzalo Rojas - Temos três obras fundamentais do florentino — Os discursos sobre a década de Tito Lívio, O Príncipe (1513) e A arte da guerra — nas quais encontramos suas preocupações centrais. Consideramos obras complementárias, de jeito nenhum excludentes. Através de Tito Lívio, Maquiavel pôde expressar suas ideias sobre a política, a república e o conflito. Deve-se destacar que o conflito entre a plebe e a nobreza, a plebe e o Senado, foi causa de grandeza e liberdade para Roma, e não de males. O livro O Príncipe afirma que sim, o príncipe tem que escolher entre os grandes e o povo, tem que se decidir, sem dúvida alguma, pelo povo, principalmente porque necessita viver sempre com o mesmo povo, mas não com a mesma nobreza.

O povo só pede para não ser oprimido, ponto de partida e chegada da interpretação dos elitistas, mas esta afirmação só é real para Maquiavel nos principados onde seus habitantes são súditos; então, o povo é um ator passivo. Mas nas repúblicas é diferente, porque o povo está constituído pelos cidadãos. Nos capítulos XXIX e LVIII do livro I dos Discursi, Maquiavel sustenta que o povo é menos ingrato, mais sábio e constante que o príncipe.

 

Drama político

Nos três livros, Maquiavel refere que O Príncipe deve possuir armas próprias, sendo sua principal ocupação, durante a paz, se preparar na arte da guerra, na organização e disciplina dos exércitos, constituindo a verdadeira ciência do governante. A preocupação de Maquiavel não era só entender lucidamente o drama político e de civilização que se desenvolvia ante seus olhos, senão mudar um estado de coisas. Era um político, um homem de ação que exorta à ação, segundo Antonio Gramsci. Fiel a este talante, mais de uma vez Maquiavel pega a justeza da observação de seu admirado Dante ao falar que “em política não se age para saber, senão que se sabe para agir”. Qualquer interpretação monoexplicativa da obra de Maquiavel, no meu entendimento, expressa uma incompreensão da obra maquiaveliana.

 

IHU On-Line - Rousseau afirmou que, fingindo dar lições aos reis, Maquiavel deu lições ao povo. Qual é o fundamento dessa ideia?

Gonzalo Rojas - Em geral eu agrupo em quatro, mas poderiam ser mais, as interpretações sobre Maquiavel.

1) Benedetto Croce, interpretação conhecida como historicista: Maquiavel foi um puro teórico, objetivo e neutro, que fez a ciência política sem paixão, falou das coisas como elas são (realista) e essas coisas podem servir a qualquer um.

2) Maquiavel como maquiavélico, denunciado como o cínico imoral da política, lido e aceito pelos homens políticos do absolutismo como Frederico II  de Prússia. Os maquiavelistas, os elitistas (W. Pareto , G. Mosca  e R. Michels) e os gerencialistas (Benham ) absorvem um aspecto de Maquiavel, a ideia de que o povo nos principados é passivo, e tiram uma conclusão geral: então, só é capaz de agir na política uma minoria ativa. É uma interpretação elitista de Maquiavel. Federico Chabod , um dos principais estudiosos da obra de Maquiavel, afirma que este “abriu o caminho para os excessos do absolutismo”.

3) Interpretação “democrática” de Maquiavel opondo os Discursi ao Príncipe [1513], Spinoza, Rousseau e toda a tradição do Risorgimento — De Sanctis , Mazzini , para os quais Maquiavel foi um republicano que disse ao povo a verdade sobre os tiranos, para desmascará-los. Poderíamos pôr Gramsci, até certo ponto, neste bloco também por algumas das problematizações apresentadas acima.

4) Hegel , que nos seus escritos políticos, na parte sobre a constituição alemã, coloca que a Itália não tem Estado como a Alemanha, mas teve um teórico para pensar sua ausência e defende a ideia de Maquiavel de utilizar o cinismo contra o cinismo.

A interpretação democrática, a que agrupamos como terceira, é a rousseauniana, e tem como fundamento, entre outras coisas, de forma simplificada, que na verdade os monarcas governaram durante séculos do mesmo jeito e não precisariam que alguém explicasse o que deveriam realizar para conquistar e manter principados. Maquiavel estaria escrevendo ao povo para advertir sobre as maldades dos tiranos. Devemos lembrar que, para Rousseau, o conceito de povo é diferente do que conhecemos hoje, já que este se diferencia da canalha. Mas esse é o argumento central desta hipótese rousseauniana.

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