Edição 427 | 16 Setembro 2013

Uma obra que é um campo de batalha

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Márcia Junges / Tradução: Moisés Sbardelotto

Investigação maquiaveliana sobre a natureza do poder, o que ele é e como se o exerce segue atual, assevera Marco Vanzulli. Trata-se de um pensamento que analisa de modo lúcido a “política antes do advento do pensamento único da liberal-democracia”

É preciso fazer tábula rasa das interpretações que, até o século XVI, se sobrepuseram à obra de Nicolau Maquiavel, aconselha o filósofo italiano Marco Vanzulli em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Nesse sentido, a obra de Maquiavel é um autêntico campo de batalha. Ler Maquiavel por Maquiavel pode parecer, de um lado, uma operação difícil ou até mesmo ingênua ou irrealista, como a que pretende voltar a uma pureza do original”, observa. Em seu ponto de vista, “um tema de grande inovação em Maquiavel é ter juntado à tradicional teorização sobre o exercício do poder grande atenção às maneiras de sua conquista”. Vanzulli examina também como Maquiavel e Vico procuravam compreender a tradicional questão do caráter instável das democracias. “De um lado, a política constitui-se claramente na esfera autônoma do pensamento, e, de outro, essa autonomia vê crescer, sobretudo nos anos 1700, fora de si um imenso desenvolvimento dos estudos sobre o funcionamento econômico dos Estados e comércios, os estudos monetários, as teorias da melhor economia nacional”. E assevera: “A leitura de Maquiavel consente-nos voltar, sem pretensão, às formas de desunião social, a um pensamento que olha lucidamente para a política antes do advento do pensamento único da liberal-democracia”.

Marco Vanzulli é doutor em Ciências Humanas pela Universidade de Nice Sophia Antipolis — UNSA, na França, com a tese L’idée de science chez Vico. Mythe et anthropologie. Leciona na Universidade degli Studi di Milano-Bicocca, na Itália. É autor de, entre outros, La scienza delle nazioni e lo spirito dell idealismo. Su Vico, Croce, Hegel (Milano: Guerini e Associati, 2003) e La scienza di Vico. Il sistema del mondo civile (2ª ed. Milano: Mimesis, 2006).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é a importância do pensamento de Maquiavel para a filosofia política de seu tempo e para a filosofia política dos nossos dias?

Marco Vanzulli - Maquiavel expressa uma filosofia política que pretende romper com toda a tradição precedente. Considere-se o uso contínuo dos advérbios adversativos, que seguem a referência à opinião comum, particularmente, mas não exclusivamente, em O Príncipe. Essa sua atitude nas comparações entre a tradição e a imaginação literária é devido à sua nítida distinção entre o pensamento utópico e o pensamento realista. Refiro-me naturalmente à audácia de O Príncipe, uma ousadia que atravessa toda a obra, mas que é expressa de modo felicíssimo no Capítulo XV, e na famosíssima admoestação para “buscar a verdade efetiva da coisa”. No texto, essa admoestação — o “realismo” de Maquiavel, como se diz — é imediatamente usada para redefinir a atitude do príncipe para com a ética e a religião (e as duas coisas, do ponto de vista de Maquivel, são uma só coisa, uma vez que está ausente nele a consideração da religião como transcendência, como algo que não seja humano, isto é, divino, teologia), mas, em geral, constitui a sua atitude para julgar as relações entre os homens. Um passo audacioso, o de Maquiavel, que se pode encontrar na celebérrima tese sobre a relação entre a grandeza do império romano e a desunião da plebe e do senado, no Capítulo 4, do Livro I dos Discursos, ou na temática, tratada tanto em O Príncipe quanto nos Discursos, sobre a fundação do governo popular, que não é um fundamento instável, sobre terreno pantanoso, como no ditado popular (veja-se o Capítulo IX, sobre o principado civil de O Príncipe, e em muitas passagens dos Discursos), mas a mais sólida base política.

 

Pensamento imaginativo

Agora, se considerarmos que Maquiavel é um autor fundamentalmente anticínico, compreenderemos que o seu “realismo” não é desapego das coisas humanas, porque, como no fundo sempre se alerta (com algumas exceções, que depois talvez teremos oportunidade de indicar), a sua escrita é também ação política. Como bem escreveu Frederico Chabod, em Maquiavel a capacidade lógica e a compreensão profunda da realidade realizam-se e tornam-se pensamento vivo e orgânico apenas por intermédio de uma poderosa e inesgotável imaginação. Agora, o pensamento imaginativo de Maquiavel não é separável da sua capacidade de análise; é, na verdade, a alma. Todos esses motivos devem ser levados em consideração, se se deseja compreender a peculiaridade do pensamento de Maquiavel. 

Do ponto de vista mais estritamente da teoria da política, continua a ser fundamental a investigação de Maquiavel sobre a natureza do poder, sobre o que ele é e como se o exerce. Como se observou, um tema de grande inovação em Maquiavel é ter juntado à tradicional teorização sobre o exercício do poder grande atenção às maneiras de sua conquista (Bobbio  observou que, por isso, Gramsci — que, como marxista, punha-se a pergunta da tomada do poder — tinha achado-o particularmente interessante). Seria, todavia, um erro para qualquer um que desejasse entender Maquiavel (um erro que foi cometido desde o século XVI) tomar essas considerações fundamentais sobre poder como meras conclusões técnicas, como regras manualísticas boas para cada uso, separá-las do quadro filosófico maquiaveliano sobre o homem e sobre a sociedade em que estão colocados.

 

IHU On-Line - Em que sentido as ideias desse pensador ajudam a compreender as questões de teoria da história e da política?

Marco Vanzulli - A primeira operação a fazer é, sem dúvida, a de procurar ler Maquiavel por Maquiavel; em outras palavras, fazer tábula rasa de todas as interpretações que, até o século XVI, sobrepuseram-se à obra maquiaveliana (tivemos pesadas e volumosas no próprio recente século XX). Nesse sentido, a obra de Maquiavel é um autêntico campo de batalha. Ler Maquiavel por Maquiavel pode parecer, de um lado, uma operação difícil ou até mesmo ingênua ou irrealista, como a que pretende voltar a uma pureza do original, eliminando, de repente, toda a Wirkungsgeschichte , que constituiria, segundo uma tradição hermenêutica, o próprio sentido da obra. Essa operação, de outro lado, é tornada substancialmente mais fácil em uma comparação direta com a página maquiaveliana, que conserva um extraordinário frescor. Maquiavel ajuda-nos, em primeiro lugar, a compreender — isso pode parecer trivial, mas abre o caminho para uma reflexão muito fecunda, e, no meu modo de ver, ineludível — o quanto mudou a nossa concepção da história política, pela sua comparação com o modelo romano e pelo seu pensar a história, para citar Koselleck , em termos de “prognóstico” e não de “progresso”. No entanto, mesmo sobre este ponto, aconselho, entre outros, a leitura, no contexto dos Discursos, no Proêmio ao Segundo Livro, no qual Maquiavel, antes de confirmar que os antigos eram melhores do que os modernos e que os romanos eram os mais virtuosos dos italianos, explora com profundidade admirável a natureza do nosso olhar histórico.

 

Rompimento

Maquiavel é um clássico, cujas páginas devem ser reconhecidas, ou seja, além de mostrar-nos, de um lado, um autor que pensa diferentemente de nós, com outras categorias, outra temporalização dos eventos, por outro lado, mostra-nos um autor que pensa como nós, que coloca as questões que estão em curso, e, por isso, para o futuro, os problemas sobre os quais sempre se meditará. Em segundo lugar, Maquiavel, com talento e perspicácia inigualáveis, estabeleceu a questão da relação entre força e imaginação no mundo político de modo muito concreto, de uma forma que deveria ser questionada também a partir das questões de história política contemporânea. Vê-se em muitos contextos: toda a exposição incomum da virtude do príncipe, a partir do capítulo XV de O Príncipe, é atentíssima, é mesmo focada no motivo da “reputação”, ou seja, sobre a imaginação que o povo tem do príncipe: a diferença entre a ação real do príncipe e a imaginação que o povo tem é considerada inevitável, e, baseando-se nela, Maquiavel rompe decisivamente com os tratados humanistas quatrocentistas.

 

IHU On-Line - Em que medida a obra de Maquiavel influencia o pensamento político de Vico e Gramsci?

Marco Vanzulli - Vico  é enormemente influenciado por Maquiavel. Na sua obra, podem-se mesmo descobrir os moldes maquiavelianos em contextos altamente críticos. Isso quer dizer literalmente que Maquiavel ajuda Vico não somente a pensar, mas também a formular o próprio pensamento. Isso não significa, porém, que os moldes de Maquiavel significam as mesmas coisas nos dois autores. Eu diria que o tema dos direitos civis, a questão do conhecimento da virtù das repúblicas, é um legado de Maquiavel, é claro, nem sempre separável em Vico pela convivência com outros autores. E, por outro lado, o pensamento de um autor que é apenas um pouco original não é redutível à soma das fontes que atuam nele. Nesse sentido, achei sempre muito questionável a crítica antiviquiana de Paolo Rossi  (veja Le Sterminate Antichità ).

Voltando à relação Vico-Maquiavel, parece-me também que alguns motivos de valorização nas comparações das repúblicas populares são de ascendência maquiavelianas. Todavia, como tive oportunidade de escrever, para Vico a questão maquiaveliana da manutenção da virtude política não pode ser resolvida, permanecendo no nível político, porque a ciência de Vico parte dos princípios da natureza comum das nações, que são mais inclusivas e gerais.

 

Autonomia política da moralidade

Quanto a Gramsci, ele é certamente influenciado, ao ler Maquiavel, pela interpretação crociana, que, como sublinha justamente Michele Martelli , para satisfazer a exigência do próprio sistema filosófico, as categorias dos “distintos”, faz de Maquiavel o descobridor da autonomia da política da moralidade, e vê no motivo da força o elemento fundamental da relação política; Gramsci é influenciado também por outras interpretações de sua época (encontram-se, nos Cadernos do Cárcere, referências às obras de Croce e Russo, Hércules e Chabod). Todavia, além dessas influências, é originalíssimo no envolver-se na problemática do partido marxista, aquela do ideal político nacional que o secretário florentino perseguia, retomando a seu modo a questão de quem era o verdadeiro destinatário de O Príncipe. Assim, em comparação com Croce, o pensador sardo contextualiza historicamente, de um lado, o pensamento de Maquiavel, vinculando-o à “classe revolucionária” do tempo, ou seja, os republicanos das cidades italianas, progressistas, antifeudais, e, de outro, dobra-o às suas próprias exigências e expectativas teóricas de certo modo menos arbitrárias do que a de Croce. Aqui Gramsci é verdadeiramente o fundador de uma linha interpretativa que terá grandes resultados. Pensa-se, todavia, em Maquiavel de Althusser , impensável sem as Breves Notas de Gramsci.

 

IHU On-Line - Quais são as principais premissas do pensamento de Maquiavel?

Marco Vanzulli - Depois de haver insistido, e com justiça, na novidade e na ruptura instituída pelo pensamento maquiaveliano, é igualmente justo colocá-lo em sua própria época, e ter assim a melhor disposição para compreender quais são os pressupostos histórico-teóricos da sua reflexão. Não faltam, se bem que sejam menos numerosos do que os outros, estudos que avizinharam a obra de Maquiavel à tradição humanística, à mentalidade política dos tribunais italianos, dos diplomatas e dos embaixadores italianos na Itália e na Europa. Assim, o olhar lucidamente realista não pareceria somente de Maquiavel. Ele, entretanto, produz uma profunda filosofia, não apenas um pensamento político, uma filosofia que fala do homem, da religião (nesse sentido, tem razão Leo Strauss , quando diz que Maquiavel fala das religiões tout court, não somente da religião como instrumentum regni, exatamente no sentido de compreender profundamente o que a religião, em um determinado meio-chave, significa, da maneira como o faz Maquiavel, dar uma interpretação filosófica da religião), da natureza, etc. O realismo lúcido já expresso por outros não tinha alcançado a plenitude conceitual que se acha em Maquiavel, que, no entanto — e esse é outro caráter fundamental de seu pensamento —, ao mesmo tempo o embebeu fortemente com um ideal civil que é a alma de suas obras. Nada a ver com a dicotomia abstrata e rígida entre moral ou consciência e razão de Estado de autores como Botero, que, por certo, influenciou a leitura maquiaveliana de Croce.

 

O erro de Croce

O estilo dilemático, no qual as questões teóricas são esclarecidas e ao mesmo tempo simplificadas e a escolha segura de uma das alternativas apresentadas, é típico do estilo de Maquiavel. Guicciardini repreenderá pela simplificação e perda da variedade e da maior contingência que a realidade apresenta não tão facilmente resumível em máximas ou diagramas ou leis gerais. Em Maquiavel, um modo tal de argumentar está a demonstrar uma grande confiança na eficácia da sua abordagem, que não aspira tanto a colocar-se como “tratado de política”, mas propõe as soluções para os problemas políticos de sua época por intermédio de uma conceptualização e, portanto, de uma teorização da política.

Não surpreendentemente, observa-se que as últimas obras perdem o vigor, a concisão figurativa da primeira produção. Está aqui também o motivo da união entre “teoria” e “prática” característica das obras de Maquiavel. Foi certamente um erro de Croce (já em certo sentido desmascarado por Gramsci) de tornar Maquiavel um “teórico”, um “cientista” da política. Por outro lado, essa união entre teoria e prática em Maquiavel constituiu o ponto de partida para interpretações arrojadas, mas absolutamente sem fundamento nos textos, como aquelas atuais que enfatizam indevidamente a noção de “multidão” em Maquiavel, distorcendo-lhe o pensamento. O risco é o de submeter o pensamento de Maquiavel sobre “povo” às exigências contemporâneas, mas que não eram as do escritor florentino. Por “povo”, Maquiavel não compreende o que se pensa da Revolução Francesa em diante. Recordemos que, em Maquiavel, o “povo” opõe-se aos “grandes”, às famílias patrícias conservadoras, mas não inclui os assalariados, a plebe, a parte mais pobre da população florentina, que não constitui cidadania em sentido próprio. O nosso filosofar sobre um autor não pode descuidar de levar em consideração esses aspectos histórico-políticos.

 

IHU On-Line - Quais são as principais questões que surgem do pensamento de Maquiavel e Vico sobre o tema do bem público?

Marco Vanzulli - Em ambos, a atenção para tal questão está relacionada àquela da virtude de uma civilização e às formas de governo e de vida cívica mais adequada para sustentá-la, e ambos têm, tradicionalmente, a preocupação do caráter transitório da república popular. Desse ponto de vista específico, poder-se-ia dizer que ambos tentam dar uma resposta à tradicional questão do caráter instável das democracias: em Vico, no final, a escolha é pela maior estabilidade das monarquias, mas não há dúvida de que, para ele, a plenitude e o ápice de um percurso civil venham na república popular, onde a política resolve-se com transparência, e está ausente o tema da razão de Estado. Mesmo Maquiavel — republicano no coração, como também Guicciardini, mesmo ele, como o amigo, acabou acusado de ser um mero conselheiro dos tiranos! — oscila entre essas duas formas políticas. O Príncipe, assim como os Discursos, bem longe de serem obras de “ciência política” geral, são, também, as respostas precisas para os problemas político-institucionais de Florença. Felix Gilberto mostrou-o muito bem. Portanto, o horizonte do bem comum para Maquiavel está historicamente entre o repensar da participação popular da comunidade florentina (relançada no período de seu amigo Soderini Savonarola) e a forma monárquica do governo Medici, no contexto iminente da servidão da Itália.

 

Hipoteca interpretativa

Para Vico, o contexto histórico impõe o desenvolvimento de um pensamento político que favoreça ideologicamente o acesso das classes progressistas à condução do governo, solidamente na mão da monarquia absoluta em quase toda a Europa. Trata-se de iluminá-los. Nesse ponto estão as oscilações significativas nas diversas versões da Nova Ciência, como mostra a maior ou menor ênfase no argumento do recurso, as mesmas variações no estilo literário. Mesmo em Vico, portanto, a dimensão político-prática do pensamento moderno é fundamental, não extrínseca, não é simples corolário de uma ciência geral. Ciência que, em Vico, é fortemente (não é por acaso que o título da sua obra principal seja Nova Ciência, mas os seus comentaristas raramente levaram-no a sério) dotada, no entanto, de uma complexidade que escapa a todas as interpretações dominantes. E, mesmo aqui, não se pode insistir o bastante sobre a pesada hipoteca interpretativa colocada pela interpretação crociana de 1911, que, se atribuía a Maquiavel uma ciência que não existia, desta vez não compreendia o caráter do sistema científico da Nova Ciência, e desmembrava-a em partes pré-filosóficas e partes pseudocientíficas.

 

IHU On-Line - Qual é o limite intransponível da política sobre a base do pensamento desses dois autores?

Marco Vanzulli - Uma diferença fundamental entre Maquiavel e Vico é que o segundo coloca fortemente como tema, e em conexão com a política, as razões ligadas ao “econômico”, à propriedade, ao trabalho e à reivindicação dos direitos; para Maquiavel, o econômico, como escreveu Roberto Esposito , representa de alguma maneira “o impensado”: veja-se a discussão em Discursos, I, 37, sobre a reforma agrária dos Gracos, a imobilidade que simboliza o corpo da cidade, dividida em dois estados de espírito imutáveis (“e estão em cada república dois estados de espírito diversos, o do povo e o dos grandes”), os “grandes” e o “povo”, as considerações sobre “plebe”; o público, para Maquiavel, deve ser mantido rico, e os cidadãos, não demasiadamente ricos, para ter a cidade virtuosa. Não são temas novos, encontramo-los frequentemente na tradição ocidental, da antiguidade grega em diante. De nosso ponto de vista, a consideração da política, ao contrário, apresenta uma impureza de fundo, dada às exigências econômicas, às constantes influências econômicas na política, que se desejava, em vez disso, puro exercício de autoadministração de parte de uma comunidade. De um lado, a política constitui-se claramente na esfera autônoma do pensamento, e, de outro, essa autonomia vê crescer, sobretudo nos anos 1700 fora de si um imenso desenvolvimento dos estudos sobre o funcionamento econômico dos Estados e comércios, os estudos monetários, as teorias da melhor economia nacional.

 

A economia como “a própria ciência”

Tradicionalmente, a economia era considerada em sintonia com a moral e a política, sobre a qual vinha colocada toda a ênfase. Mas, nos anos 1700, a economia não desempenha mais, na disposição dos conhecimentos, um papel intermediário entre moral e política, mas torna-se completamente a própria ciência. Para pensar essa situação, que parece aporética aos olhos do homem moderno, é necessária uma nova concepção da dinâmica histórica. Vico, pensador que vive entre os anos 1600 e 1700, está também conceitualmente entre Maquiavel, entre o mundo clássico, se assim se deseja, e a modernidade (entendo a Revolução Francesa), mas ainda não dispõe daquela concepção de temporalidade que estará na base do conceito de progresso, ou seja, da ideia do caráter totalmente inédito do futuro. Então, quando se interroga sobre formas de governo, tornam a ser debatidas as questões tradicionais da manutenção do ápice de um movimento político antes da inevitável decadência, isto é, o ápice de todo um percurso civil, e a sua ciência — que junta magistralmente os diversos planos do devir histórico — volta a confinar a política em um círculo de considerações puramente políticas.

 

IHU On-Line - Quais elementos de O Príncipe, de Maquiavel, são oferecidos para pensar sobre a crise da democracia representativa e da colonização da política por parte da economia em nosso tempo?

Marco Vanzulli - A democracia representativa resgatou apenas recentemente, na história do pensamento político ocidental, a palavra “democracia”, uma palavra que antes era geralmente desprezível. Mas a resgataram ao preço de identificar a palavra “democracia” com “democracia representativa” ou “democracia liberal”. É um mecanismo de pensamento desencadeado pela primeira vez pelo poderoso dispositivo do pacto social hobbesiano, e, depois, fundamentando-se com a identificação — todavia não unânime no mesmo pensamento liberal (pensa-se, somente para dar um exemplo, em Kant   de Zum ewigen Frieden , com seu louvor à república e a condenação da democracia) — do pensamento liberal do final do século XVIII e democracia. Essa identificação terminou por constituir um verdadeiro “pensamento único”, que se queria como incomparável e definitivo. É considerada a forma final (ao contrário das catástrofes totalitárias dos anos 1900 ou a decadência da civilização), também graças à sua difusão histórico-geográfica (vejam-se os escritos de Robert Dahl , para uma ênfase desse aspecto).

 

Conflito a ser superado

A teorização e a afirmação, mesmo em nível de senso comum, da “democracia representativa” têm as características de uma ideologia no sentido marxista. E um de seus aspectos fundamentais é o de considerar o conflito social como algo que pode ser superado pela política ou que, de outra forma, não tem qualquer influência sobre a política, a qual prescinde disso na base da cidadania e dos direitos, o que, em última instância, é mediado virtuosamente pela própria política, que representaria uma esfera de recomposição e de distribuição. Tudo isso é mesmo verdade em alguns sentidos: no ideológico, mesmo porque, muitas vezes, parafraseando Marx, em O Capital, quando fala do fetichismo, o que parece, é; e em sentido histórico isso é necessariamente (mas, igualmente, necessariamente de modo parcial) verificado na socialdemocracia. O socialismo democrático do século XX desenvolveu efetivamente também essas funções, com equilíbrio difícil, jamais resolvido e continuamente por redefinir, entre a exploração do trabalho e da redistribuição.

Agora, sem procurar levar a cabo uma crítica das noções de direito e representação à maneira de Hanna Arendt, que desloca, em minha opinião, o foco dos pontos mais nevrálgicos indicados com clareza por Marx, também porque não se trata de refutar a dimensão dos direitos, mas de esclarecê-la e de ampliá-la, permanece a questão da redefinição do impacto das divisões de classe nas instituições políticas democrático-representativas liberais. Para Maquiavel, o bem comum produz-se no interior de uma divisão não dissimulada, de algum modo social e politicamente aberta e reconhecida, e que não se pretende suprimir. Algo que será, a seguir, obscurecido pela igualdade dos cidadãos proclamada pela Revolução Francesa, que separa e complica a relação entre a esfera social e a esfera política. 

Nas democracias representativas contemporâneas, é comum a ideia de que a divisão social, por si só escondida, seja superada pelo fato da representação, e que o estado de direito seja ipso facto o estado da igualdade. Como o espaço do ideológico cresceu nas sociedades democráticas contemporâneas ou, soi-disant, da racionalidade política compartilhada é um ponto que mereceria, partindo dessas considerações, ser aprofundado. A leitura de Maquiavel consente-nos voltar, sem pretensão, às formas de desunião social, a um pensamento que olha lucidamente para a política antes do advento do pensamento único da liberal-democracia.

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