Edição 201 | 23 Outubro 2006

Falta política à política

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IHU Online

“Atualmente há pouca discussão política e ideológica de idéias sobre o Brasil. Falta política à política. Na atual campanha política, não há propriamente debate entre projetos para o País. Nenhum dos dois candidatos tem a coragem política de explicitar o projeto que seu eventual governo tentaria viabilizar, até para não inviabilizar sua eleição. Mas há diferenças importantes entre Lula e Alckmin”. É o que diz a cientista social, Miriam Limoeiro Cardoso, nesta entrevista exclusiva concedida por e-mail à IHU On-Line.

Miriam discorreu sobre diversos assuntos, como eleições, política, ideologias desenvolvimentistas e contribuição do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Ela é cientista social, doutora em sociologia e professora (aposentada) da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense. A professora é autora do livro: Ideologia do Desenvolvimento no Brasil: JK-JQ, Ed. Paz e Terra, 1978.

IHU On-Line - Quais as origens da ideologia desenvolvimentista no Brasil? Essa ideologia ainda pode ser aplicada nos dias atuais?

Miriam Limoeiro Cardoso
- Entendo que o desenvolvimento é uma ideologia. A partir da Segunda Guerra Mundial começa a se forjar uma nova hegemonia, comandada pelos Estados Unidos, sob a qual se projeta um novo ciclo de expansão do capitalismo em que as regiões então chamadas “pobres” do mundo eram estratégicas, tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista político. Os grandes formuladores norte-americanos, artífices políticos dessa expansão, tinham clareza da necessidade de dispor de uma ideologia dentro da qual os países-alvo pudessem adotar como seu objetivo próprio, maior e imediato, a sua inserção naquela expansão capitalista sob a forma requerida pelo capital então hegemônico.

O par desenvolvimento/modernização foi então concebido e apresentado sob uma perspectiva evolucionista da história, supostamente constituída por um caminho único (o desenvolvimento ou modernização), no qual alguns países se teriam “atrasado”, o que permitia qualificá-los como “subdesenvolvidos” ou, caso aceitassem ingressar no circuito proposto para superar o seu atraso relativo, como “em desenvolvimento”. Para seus formuladores originais estava também claro que era preciso valer-se do campo político local dos países a serem desenvolvidos / modernizados, fazendo aí uso do Estado para a implementação das políticas compatíveis e contando com apoio intelectual para dar consistência a uma ideologia nacional-desenvolvimentista.

Ideologia desenvolvimentista

A ideologia desenvolvimentista conjuga sempre desenvolvimento e segurança (esta pensada como segurança nacional, dentro da concepção do Estado de segurança nacional): o crescimento econômico, apresentado como combate à miséria, é concebido como a melhor defesa do capitalismo como modo de vida, o que à época se entendia fundamentalmente como barreira contra o comunismo. O desenvolvimentismo coloca como centro o econômico e o concebe com base na crença na possibilidade de crescimento ilimitado. Desde então, essa ideologia opera um importante deslocamento, do político para o tecnocrático: as questões da política passam a ser encaradas prioritariamente como questões técnicas, e a figura do economista passa a ocupar o lugar do político, transformando as análises e deliberações políticas em análises e deliberações tecnocráticas. Opera também um outro deslocamento bastante importante: o foco da análise e da política é deslocado para o futuro, quando se tornará possível usufruir os resultados das políticas que produzem privações e sacrifícios no presente, e esse futuro é aí sempre futuro, sempre adiado.

O desenvolvimentismo é a formulação local de propostas políticas concretas por meio das quais um determinado país acata como objetivo maior da política nacional o desenvolvimento / modernização, para entrar nesse processo de tornar-se “moderno”, e para acelerá-lo. No caso do Brasil, a política do desenvolvimento / modernização caracterizou os governos de JK e de toda a ditadura militar que tomou o poder com o golpe de 1964. Na conjuntura atual de mundialização do capital, a ideologia do desenvolvimento / modernização apresenta-se sob roupagem nova, como ideologia da globalização.

As políticas orientadas pelo desenvolvimentismo produziram uma inserção tipicamente dependente (sob a forma capitalista dependente) no processo da expansão do capitalismo mundo afora no pós-guerra. Seus resultados foram: crescimento econômico via firmas multinacionais; dívidas externas espetaculares para garantir os investimentos julgados necessários; sociedades desiguais internamente em cada país e no cenário internacional; concentração de renda fortíssima e crescente; enorme concentração da propriedade; autocracia etc. O desenvolvimento / modernização é o substituto do colonialismo em sociedades pós-coloniais e politicamente independentes.
É preciso notar, no entanto, que a hegemonia hoje está com o capital financeiro e portanto as políticas de desenvolvimento / modernização via industrialização não mais podem ter o mesmo significado que tiveram em meados do século passado. Aquele ciclo de desenvolvimento é passado, esgotou-se, acabou.

IHU On-Line - Qual a principal contribuição do ISEB para a política e para o País? O que motivou sua criação? Como estão as suas condições hoje? Em que medida a história do ISEB nos auxilia a compreender o Brasil de hoje?

Miriam Limoeiro Cardoso
- O ISEB  pode ser pensado como um think-tank. No caso, um think-tank estatal, parte do aparelho de Estado desenvolvimentista. Não era um conjunto homogêneo, abrigava diferentes perspectivas políticas e de pensamento, como acabou evidenciado na cisão que marcou sua última fase. Mas o que o unificava era a produção no próprio país de uma ideologia justificadora das políticas desenvolvimentistas. O ISEB contribuía para dar localmente o foco e a direção do debate político: centrado no par desenvolvimento / modernização, apontando para a possibilidade de desenvolvimento nacional. A tese mais importante que na época fundava essa possibilidade era a de que o desenvolvimento nacional (no limite, desenvolvimento autônomo) seria sustentado por uma união nacional dos trabalhadores em apoio a uma suposta burguesia nacional, em oposição ao latifúndio e ao imperialismo, considerados estes como responsáveis pelo atraso e pelo arcaico dominantes no país. Ideológica e politicamente, não era pouca coisa a contribuição de autores do próprio país reforçando a idéia de uma fundamentação antiimperialista para uma política que fundamentalmente era imperialista. Penso que vale a pena estudar o ISEB segundo essa hipótese como um caso exemplar de uma das formas mais importantes de uma dominação ideológica operar.

Pautar a discussão à esquerda pelo desenvolvimento autônomo teve como conseqüência talvez principal dificultar o questionamento crítico radical da idéia e das propostas desenvolvimentistas. No Brasil, esta é uma lacuna que ainda emperra, e muito, a discussão política no campo da esquerda, o que facilita a persistência da dominação ideológica calcada no desenvolvimento / modernização como objetivo maior a ser alcançado, o que acaba se constituindo num reforço de peso aos encaminhamentos do capital hegemônico.

IHU On-Line - O que é mais importante na hora de discutir o projeto ideal para o Brasil hoje? Que tipo de modelo pode ser adotado e o que não poderia faltar nele?

Miriam Limoeiro Cardoso
- Penso que o mais importante não é discutir “o projeto ideal para o Brasil”. O mais importante é retomar o embate político e o embate ideológico, elevando política e ideologicamente a discussão. O mais importante é fazer política, enfrentar política e ideologicamente o projeto dominante. Desde o desenvolvimentismo, o projeto dominante tem sido a inserção capitalista dependente no processo global, mundial, de expansão do capitalismo. Como resistência e reação a essa dominação, o mais importante não é discutir o projeto, é abrir e ampliar na prática o campo da política, alimentando o campo político com lutas e discussões pertinentes à condição de cada setor, de cada grupo social e em geral da população submetida, explorada, dominada. O importante são as lutas concretas com discussão político-ideológica pertinente e que faça sentido àqueles que sofrem alguma exploração, ou dominação, preconceito, exclusão, e que de alguma maneira se opõem na prática a essas situações. Por exemplo, lutas contra a degradação da saúde pública, o que equivale a lutas contra a política de privatização da saúde via “planos de saúde” (empresas de seguro saúde); ou lutas contra a degradação da educação pública, portanto contra as políticas de privatização da educação; lutas que vão desde alguma forma de pressão popular e de pressão parlamentar e que envolvem o questionamento e a cobrança das responsabilidades das autoridades públicas constituídas, até mesmo via judiciário; e principalmente lutas conduzidas por movimentos sociais e variadas formas de organização e de associação em defesa de interesses específicos ou de princípios políticos mais gerais.

Um projeto ou um modelo?

Há quem considere que o que falta é um projeto ou um modelo. Pergunto: quem formularia esse projeto ou esse modelo? Sobre que base social ele se assentaria? Penso que o projeto capaz de guiar eficazmente lutas coletivas por transformação da sociedade precisa ser construído coletivamente, na prática das lutas por transformação. Uma tal construção coletiva tende a colocar em disputa projetos diferenciados dos setores e grupos diferenciados que fazem estas lutas. Mas o projeto não é anterior às lutas. As lutas capazes de produzir transformações efetivas ou relevantes numa realidade social são concretas contra condições concretas de vida, de trabalho etc. Essa prática transformadora, sua condução radicalmente democrática e a produção de discussão política sobre as condições que se pretende transformar e sobre as formas de organização e de condução das lutas – essas são as questões cruciais, não um projeto ou um modelo ideal.
 
IHU On-Line - A senhora considera as idéias defendidas atualmente para os rumos do Brasil são ultrapassadas?

Miriam Limoeiro Cardoso
- Considero que atualmente há pouca discussão política e ideológica de idéias sobre o Brasil. Falta política à política. Fatos importantes ocorrem sem que sejam tomados como objeto de reflexão e de discussão política e ideológica continuada. A discussão vem se esgotando ou na técnica dos índices e números, ou no moralismo das condutas. Por exemplo, a mídia: não se discute a relação entre a mídia e o poder. Não se discute o papel fundamental que ela desempenha nos processos de dominação e de inculcação ideológica. A omissão de informação, bem como o desvirtuamento da informação, cumprem papel da maior relevância na formação de opinião e na condução dos processos políticos. Sob a aparência de transmissores desinteressados de informação estão empresas capitalistas que têm interesses específicos e vínculos profundos com o poder real, interesses e vínculos que essas empresas defendem ao manipularem a informação.

Exceções

Certamente e felizmente há exceções. Mas são exceções. Neste momento, cabe citar exemplarmente os jornalistas Raimundo Rodrigues Pereira , com Os fatos ocultos, em Carta Capital; ou Paulo Henrique Amorim , com O 1º golpe de Estado; ou Luís Nassif , com Réquiem para o jornalismo. Essa é uma questão que nos faz ver claramente que a discussão de idéias sobre o Brasil não pode prescindir de um aprofundamento e de uma ampliação do debate sobre o direito à informação, sobre a necessidade imperiosa de democratização dos meios de comunicação. Esse é um campo importantíssimo para ampliar o espaço e elevar a qualidade do debate propriamente político e ideológico. Indica a necessidade de um acompanhamento qualificado da imprensa, por grupos de pesquisadores aptos a fornecer material analítico capaz de mostrar e demonstrar o viés desinformativo da imprensa no Brasil. Conseqüentemente, indica a necessidade de meios e mecanismos de informação alternativos no Brasil, desde a internet às rádios comunitárias etc.
 
IHU On-Line - Entre os atuais candidatos à presidência, na sua opinião, há debate entre projetos de país? Qual seria o projeto de país de Alckmin e Lula? Quais as principais diferenças? Qual seria o rumo ideal para o Brasil na América Latina? Seria o caso de se forjar um outro modelo?

Miriam Limoeiro Cardoso
- Na atual campanha política, não há propriamente debate entre projetos para o País. Nenhum dos dois candidatos tem a coragem política de explicitar o projeto que seu eventual governo tentaria viabilizar, até para não inviabilizar sua eleição. Mas há diferenças importantes entre Lula e Alckmin.

PSDB

O PSDB quer retomar o controle do aparelho de Estado para prosseguir na linha de submissão plena às diretrizes do capital hegemônico em processo de mundialização: dilapidando até o limite o patrimônio público por meio das privatizações (provavelmente continuando com os mesmos procedimentos que marcaram o governo Fernando Henrique), reduzindo drasticamente os direitos sociais, mesmo os mais reconhecidos, perseguindo e criminalizando os movimentos sociais etc., e retomando uma política externa alinhada ao governo dos Estados Unidos. Os resultados que se podem esperar dessas políticas indicam um forte retrocesso econômico, político, social e ideológico. As dificuldades para fazer avançar a democracia efetiva e para conter a destruição do público e dos direitos sociais seriam ainda maiores do que no governo Fernando Henrique.

PT

Por sua vez, o PT no governo central mostrou as enormes limitações de uma visão social-democrata de um certo tipo de base operário-sindical, além dos desmandos e desatinos de uma burocracia partidária que congelou para si o controle do partido, partido que foi cada vez mais descaracterizado na sua política e na sua democracia interna pela sucessiva exclusão das correntes e dos quadros mais críticos e mais à esquerda, enfraquecendo, assim, mais a capacidade de questionamento interno dos procedimentos e das práticas partidárias. E as políticas adotadas pelo governo Lula seguiram em grande medida as principais diretrizes do capital hegemônico em processo de mundialização, favorecendo o setor financeiro e o setor exportador e adotando mesmo as políticas de focalização preconizadas pelo Banco Mundial. Quanto à política externa, no entanto, claramente não há submissão total aos interesses e às determinações do governo dos Estados Unidos e, como questão particularmente relevante, há uma aproximação significativa com expressões políticas mais à esquerda, principalmente na América Latina. Sabemos bem que uma das principais alternativas à avassaladora marcha rumo à mundialização do capital hoje hegemônico é a formação de blocos que permitam aumentar a capacidade de resistência às diretrizes e imposições dessa mundialização. A aproximação do Brasil com outros países da América Latina, especialmente se pautada em dimensões político-ideológicas de centro-esquerda, é um dado relevante a considerar.

Diferenças

A grande diferença entre Lula e Alckmin, no entanto, é que numa retomada do poder central pelo PSDB com Alckmin o espaço de questionamento e pressão política à esquerda seria mínimo. Já num eventual segundo mandato de Lula, esse espaço existe atualmente e pode ser ampliado, caso seja ocupado desde o início do novo governo por mobilizações e discussões políticas e ideológicas de diferentes matizes. Esse espaço foi aberto menos por iniciativas da campanha de Lula e mais pela aglutinação e pela agressividade das forças mais conservadoras e mais reacionárias que têm dado o tom e o teor da campanha oposicionista. Diante dessa configuração mais clara do espectro político que resultou da própria campanha, a candidatura Lula passa a ser reforçada por setores sociais e políticos significativos à esquerda, e depende desse reforço, o que abre espaço à esquerda para cobrar reorientações de política no eventual segundo mandato. Essa é uma mudança política bastante significativa, que está levando muitos dos mais críticos ao governo Lula a optarem por votar em Lula no 2º turno.

IHU On-Line - A estrutura partidária e democrática ainda tem lugar em uma sociedade hiperindividualista como a brasileira?

Miriam Limoeiro Cardoso
- A luta por democracia é fundamental no Brasil. Aqui nós não conhecemos democracia efetiva. Como tão bem demonstrou Florestan Fernandes, sob o capitalismo dependente, a política no Brasil oscila entre ditadura aberta e autocracia burguesa. A grande maioria é na prática excluída da cidadania, os direitos são reconhecidos de fato apenas para a minoria privilegiada dominante. Assim, para a população a conquista da cidadania plena é uma luta que ainda precisa ser travada, e que precisa ser travada a cada passo, a cada oportunidade, por pequena que possa parecer. A sociedade brasileira é muito complexa, rica de diferenciações, de conflitos e de contradições. Embora seja submetida a uma dominação ideológica extremamente forte, intensa e abrangente, há sinais de inconformidade, há práticas alternativas de vida, há associações e movimentações de reivindicação, pequenas e grandes lutas. São movimentos que parecem desconexos, e num certo sentido eles começam e estruturam-se mesmo de maneira desconexa, mas podem ser percebidos como indícios de processos de transformação já em curso. No momento, tais processos não parecem tender para uma radicalização e para alguma conexão uns com os outros que mude sua qualidade política, mas a possibilidade para que isso aconteça existe e merece ser levada em conta na reflexão política preocupada com as potencialidades de transformação social mais profunda no Brasil.

IHU On-Line - Como deveria ser um programa social consistente para o Brasil? Criticam tanto o bolsa família, mas que projeto social ocuparia seu lugar?

Miriam Limoeiro Cardoso
- Defendo que a dimensão social deve se prioritária na política, junto com o fortalecimento das práticas democráticas e democratizantes.  Os direitos à saúde, à educação e à cultura de qualidade, à moradia digna, à alimentação, são direitos de cidadania, que uma política orientada para o social precisa respeitar. Embora haja casos e momentos em que esse respeito envolva um caráter assistencial no atendimento da necessidade, o que se postula é que esse atendimento seja feito regularmente em caráter institucional e permanente.

IHU On-Line - Professora Miriam, qual o Brasil que a senhora quer? Com qual Brasil a senhora sonha?

Miriam Limoeiro Cardoso
- Quero viver numa sociedade caracterizada pela liberdade, em que haja diferenças, mas não desigualdades, onde não haja relações de exploração, de dominação e de opressão, numa sociedade democrática, aberta e plural, numa sociedade que não seja regulada por relações mercantis. 

 

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