Edição 417 | 06 Mai 2013

Cenas de um tabu (im) praticável

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Ricardo Machado

Meu namorado ficou esperando no carro, enquanto eu entrava um pouco assustada na insuspeita casa de um bairro residencial da minha cidade. Fui lá por indicação de uma comadre e menos de sete dias depois de eu saber que estava grávida. No local fui levada a uma pequena sala de paredes quase nuas, maculadas apenas por um quadro que me causou certo desconforto, mas disso falo mais adiante. Antes de agendar minha “visita”, certifiquei-me que o procedimento seria realizado com material esterilizado e que correria menos riscos. Retirei a parte debaixo da roupa, sentei na cadeira e pus os pés por sobre os suportes, exatamente como manda o ritual do exame de papanicolau. Não lembro se fui anestesiada, mas a adrenalina foi tanta que praticamente não senti dores durante o procedimento. Enquanto a senhora, que já era de idade, fazia seu trabalho eu olhava para a única coisa da parede que não era a pura e simples parede, mas sim um quadro de uma criança. A foto era linda, e posso me lembrar disso exatamente como se fosse ontem. O bebê era gordo, tinha um sorriso como uma criança de propaganda e no fundo da imagem uma cortina de latas de leite Ninho. A cena era marcante, porque foi muito paradoxal. O procedimento não foi tão demorado e quando acabou estava meio zonza. Acho até que aquela senhora me deu algum sedativo na veia ou no músculo, não lembro. Fui para o carro, meu namorado estava muito nervoso, afinal era policial e era cúmplice de um “crime”. Repousei todo o resto daquele dia e tive muitas cólicas. No outro dia as dores haviam passado, estava trabalhando.

Contradições

A cena descrita acima ocorreu há mais de 18 anos. Embora tenha havido inúmeras mudanças no contexto social nessas quase duas décadas, falar sobre aborto continua sendo um tabu. Juridicamente falando houve uma pequena mudança, já que o Supremo Tribunal Federal descriminalizou o aborto de anencéfalos com menos de 12 semanas, em abril do ano passado. Entretanto, o aborto em qualquer caso fora o de anencefalia continua sendo crime.

Ainda que os órgãos competentes tivessem condições de punir, conforme manda a legislação, todas as mulheres que fizeram aborto, provavelmente não haveria cárcere suficiente, pois a prática é muito mais comum do que se imagina. Conforme dados da Pesquisa Nacional de Aborto, uma a cada cinco mulheres com até 40 anos já cometeu aborto. O estudo foi realizado pelo Departamento de Serviço Social da Universidade Nacional de Brasília – UnB, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero da UnB e pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas – Ipea. Ao todo foram ouvidas 2.002 mulheres de regiões urbanas do Brasil, alfabetizadas e com idades entre 18 e 39 anos. Cruzando os dados desta pesquisa com a população feminina brasileira, que é de mais de 100 milhões de mulheres, seriam necessárias cerca de 20 milhões de vagas nos presídios somente para mulheres que já realizaram aborto.

Decisão complexa

Para Fernanda , a decisão de abortar não foi nada simples, embora ressalte que não nunca se arrependeu. “O aborto é uma questão complexa e particular. Faço parte de instituições que defendem a vida e cuido muito da vida, mas no momento era uma situação diferente”, explica. Para tentar compreender o que significa abortar é preciso estabelecer relações entre o que acontece dentro e fora da sala escura onde ocorre o procedimento. O contexto social em que ser bem sucedido profissionalmente se tornou quase uma tirania é a moldura em que cenas como a que viveu Fernanda acontecem. “Achei melhor não levar adiante a gravidez porque não queria filho naquele momento e até hoje não quero. Porém, naquela época ia estragar o plano de ações que tínhamos, pois meu namorado estava estudando para ser oficial da polícia militar e um filho ia bagunçar os planos profissionais dele e os meus”, conta.

Enquanto a sociedade discute as ideias a favor e contra o aborto, um número incalculável de mulheres sem recursos financeiros morrem em decorrência de abortos precários. Outro número incalculável de mulheres, estas com mais recursos financeiros, saem de clínicas estéticas onde a prática é acima de qualquer suspeita. “Minha ginecologista comentou que tem uma clínica em Porto Alegre que faz aborto com todo o cuidado e discrição porque é uma ‘clínica de estética’, onde tem enfermeiras e médicas, que fazem isso mediante anestesia”, descreve.

Preconceitos

Hoje Fernanda trabalha junto de jovens em situação de vulnerabilidade social. Ela conta que há tabus relacionados à sexualidade mesmo entre profissionais da área da saúde e que isso em nada contribui para uma cultura de diminuição da prática do aborto. “Não sou a favor do aborto de maneira indiscriminada. Talvez estamos pecando quanto a políticas públicas no sentido anterior ao aborto. Os profissionais da saúde são muito preconceituosos em termos de sexualidade, pois há meninas de 12 e 13 anos que têm vida sexual ativa e eles fazem de conta que não veem”, provoca. 

Em contrapartida, na avaliação dela vivemos um momento de mudança de paradigmas, onde há um desejo de minimização destes preconceitos sociais, já que temas controversos são discutidos. “Hoje a gente fala muito de coisas que não se falava, como homossexualismo, mas isso sobre aborto é uma coisa que pouco se fala”, considera.

Autonomia e independência

Pensar a independência de optar pelo aborto sob uma perspectiva autônoma significa reduzir à superfície algo que é profundo e complexo. Não se trata, portanto, de pensar o gesto como uma manifestação pura de autonomia, como explica o teólogo, filósofo e professor de bioética da Unisinos José Roque Junges. “Se ‘autonomia’ significa simplesmente independência, isto é, não depender e não responder a ninguém senão a si mesmo por seus atos, então o aborto é uma decisão unicamente individual que responde a direitos e interesses pessoais. Mas se partirmos de uma visão relacional da autonomia, que é a compreensão de Kant, então na tomada de decisões é necessário colocar-se no lugar dos outros implicados para ver como as relações já estabelecidas incidem nessa decisão. Isso leva a compreender que o aborto não pode ser reduzido a questões de estatística sociológica nem a soluções jurídicas tampouco simplificado como resposta a um problema, mas entendido em toda sua complexidade relacional na tomada de decisão. A autonomia é um princípio fundamental da ética moderna e especificamente da bioética, mas a sua compreensão não é unívoca e, por isso, é necessário perguntar-se o que se está entendendo ao falar de autonomia de decisão”, sustenta Junges.

Fernanda diz que não se arrependeu de ter feito o aborto e que a maternidade nunca foi um sonho. Também não acha que seja prerrogativa única do Estado de decidir se uma mulher fará aborto ou não, mas se diz radicalmente contrária à prática abusiva. “Penso que a mulher tem que ter a capacidade de gerenciar o próprio corpo, mas não devemos chegar ao banalismo de fazer isso a cada seis meses, pois é desproporcional e criminoso”, avalia.

A controversa questão do aborto tem como eixo uma delicada disputa política que foi pauta da última eleição presidencial, colocando a presidente eleita, Dilma Rousseff, em uma saia justa, que ora se manifestava a favor da prática, ora contra. As estatísticas não dão a ver o que acontece dentro do palco teatral de nossa sociedade que condena o aborto e mesmo assim o faz, mas revelam a existência dos bastidores, que nesta reportagem ocorreu em um quarto escuro com o quadro de um bebê na parede.

Leia mais

Confira outras publicações da IHU On-Line voltadas à temática do aborto.

- O aborto: algumas opiniões. Edição 219 da Revista IHU On-Line. Link http://bit.ly/137q4tS 

- Aborto volta à pauta após defesa de legalização pelo CFM. Link http://bit.ly/zI1mC7

- Evangélicos cobram de Dilma posição sobre aborto. Link http://bit.ly/zI1mC7 

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