Edição 417 | 06 Mai 2013

Os impasses do indivíduo como fundamento do direito

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Márcia Junges

Relações sociais deveriam determinar os direitos, observa Daniel Tourinho Peres ao examinar o conceito kantiano de autonomia. Sem dúvida, há um nexo confuso entre autonomia e individualismo, pondera
Daniel: “O mais comum é justamente reduzir a política, os conflitos políticos, a questões éticas, ou, o que é ainda mais grave, pensarmos que resolveremos os nossos problemas políticos simplesmente apelando para princípios éticos”

 

“Com a modernidade, vivemos em uma sociedade de indivíduos. O que isso quer dizer? Que a relação entre indivíduo e sociedade não conhece as mediações tradicionais”. A análise é do filósofo Daniel Tourinho Peres na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, “quando Kant considera que o direito está fundado na noção de autonomia, isso não significa que o fundamento do direito é o indivíduo autônomo. Ao proteger o indivíduo a sociedade não está senão protegendo a si mesma”. E completa: “O que me parece mais complicado é considerar que o indivíduo está no fundamento do direito, que todos os direitos são individuais e que, portanto, não são determinados por relações sociais, não são determinações que derivam de uma prática intersubjetiva”.

Daniel Tourinho Peres é graduado em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP com a tese Lógica, metafísica e política em Kant – um estudo sobre a faculdade de julgar prática. Leciona na UFBA e é o autor de Kant: metafísica e política (Salvador: Edufba, 2004), além de organizador de Justiça, virtude e democracia (Salvador: Quarteto, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que conexões há entre a filosofia moral e a filosofia política kantiana? São concepções complementares? Por quê?

Daniel Tourinho Peres – Em Kant, encontramos dois sentidos para o termo moral. Primeiramente, moral tem o sentido de ética, isto é, daquele conjunto de leis internas da liberdade que determinam o modo como conduzimos nossas vidas como sujeitos autônomos que somos. Ainda que tais leis ou regras comportem uma dimensão intersubjetiva, elas dizem respeito, antes de tudo, a uma relação do sujeito para consigo mesmo. Já moral, em sentido amplo, incluiu o conjunto de todas as leis da liberdade, internas e externas, ou seja, tanto éticas quanto jurídico-políticas. Assim, em sentido amplo as leis morais não apenas determinam o modo como determino minha vida; determina igualmente como vivemos em conjunto, ou como devemos viver em conjunto. Desse modo, se tomo moral na primeira acepção, posso considerar a relação entre moral e direito como de complementariedade; se tomo na segunda acepção, devo considerar como uma relação de subordinação.

Nessa segunda acepção, em que pensamos o direito e a política como subordinadas à moral é que se encontra uma série de problemas e equívocos. O mais comum é justamente reduzir a política, os conflitos políticos, a questões éticas, ou, o que é ainda mais grave, pensarmos que resolveremos os nossos problemas políticos simplesmente apelando para princípios éticos. Há uma subordinação do direito e da política em relação à moral, mas há também certa independência. E para que isso fique um pouco mais claro, temos de prestar atenção ao modo como Kant pensava também a relação entre direito e política. 

Dimensão ideal

Kant define a política com a seguinte fórmula: “doutrina do direito aplicada”. Ou seja, a política não é a aplicação do direito, a aplicação da legislação positiva. Na verdade, a política é a ação que tem por objetivo traduzir, na forma do direito, uma pretensão jurídica, isto é, uma pretensão que ainda não é reconhecida como direito. Daí ela ter uma dimensão ideal, própria da moral, e que se traduz, por exemplo, na ideia de direitos humanos. Mas essa dimensão ideal vai de par com um brutal realismo da parte de Kant, pois devemos a um só tempo reconhecer que estamos longe do ideal, mas também quais os passos que nos aproximam e nos distanciam dele, por menor que sejam aproximação ou distanciamento.

IHU On-Line – É nessa medida que sua filosofia da história, cujo fio condutor é a ideia de direito, tem na autonomia uma de suas bases?

Daniel Tourinho Peres – Sim. A filosofia da história é o modo como Kant enfrenta a tensão entre o ideal e o real. A ideia de progresso, de uma realização progressiva do ideal de autonomia, permite que nosso juízo seja calibrado quanto a suas determinações, isto é, não julgamos mais de modo absoluto, mais circunstanciado, distinguindo aquilo que deve ser considerado como conquista permanente e aquilo que é transitório. O direito, a ideia do direito, deve ser considerada como uma conquista permanente da humanidade. Em que sentido? No sentido de que os diversos agentes devem se reconhecer na lei, devem reconhecer que a sua vontade em alguma medida está representada na legislação. A questão está, então, em que a filosofia da história deve ser crítica das instituições e do direito positivo, mas não pode se perder em um universalismo abstrato e vazio.

IHU On-Line – Nesse sentido, como sua filosofia moral perpassa a ideia de paz perpétua e a democracia a partir do ponto de vista kantiano?

Daniel Tourinho Peres – A relação de Kant com a democracia é complicada, quer dizer, o que hoje chamamos de um governo democrático, Kant chamava de governo republicano. Isso nada tem a ver com estar fundado em valores e virtudes republicanas, mas sim um governo que é orientado pelo público, pela esfera pública. O governo não é o público – ou o povo, se vocês preferirem –, mas representa o público – ou o povo. A arte está justamente em dar unidade a uma multiplicidade sem que a multiplicidade perca esse seu caráter pluralidade. Ou seja, a multiplicidade pode se representar como unidade, mas sem ter que representar-se como totalidade, como univocidade. Em À paz perpétua, Kant afirma que a democracia é necessariamente um despotismo porque erra nessa mediação. Mas então ele está pensando no exercício direto do poder soberano, ou seja, em uma democracia não representativa. A ideia normativa de que o soberano pode tudo, de que a soberania é um poder absoluto, não é kantiana, mas hobbesiana ou rousseauista. Para Kant não há democracia sem uma defesa e garantia forte de direitos humanos capazes de proteger o indivíduo, e reconhecer igualmente a pluralidade de nossa vida em sociedade. Parece-me que esse é talvez o ponto mais importante da filosofia política de Kant: a resolução dos conflitos não passa por apagar as diferenças, muito pelo contrário. Daí que em certa medida toda solução seja provisória, isto é, pode ser revista e refeita – ou melhor: deve ser revista.

IHU On-Line – Acredita que haja uma confusão entre os conceitos de autonomia e individualismo? Até que ponto o agir na pós-modernidade tornou ambos sinônimos?

Daniel Tourinho Peres – Com relação à pós-modernidade, confesso que sempre tive enorme dificuldade em compreender do que se trata. Agora, você tem razão ao chamar a atenção para uma possível confusão entre autonomia e individualismo. Com a modernidade, vivemos em uma sociedade de indivíduos. O que isso quer dizer? Que a relação entre indivíduo e sociedade não conhece as mediações tradicionais. Num certo sentido, o indivíduo se apresenta mais autônomo, porque não mais deve obediência ao conjunto de regras que lhe era imposto pela tradição, como em uma sociedade marcada por um regime de castas ou de corporações. Quando a Revolução Francesa acaba com os privilégios, acaba com os três Estados, o que resulta daí é antes uma sociedade de indivíduos na qual a condição de cidadão francês se afirma antes do que qualquer condição. Quando Kant considera que o direito está fundado na noção de autonomia, isso não significa que o fundamento do direito é o indivíduo autônomo. Ao proteger o indivíduo a sociedade não está senão protegendo a si mesma. Além do mais, não dá para reconhecer a falibilidade da razão – que obviamente conhece figuras monstruosas – e não levar a sério a proteção de direitos individuais da pessoa. 

IHU On-Line – De todo modo, quais seriam as implicações políticas dessa igualdade entre autonomia e individualismo?

Daniel Tourinho Peres – O que me parece mais complicado é considerar que o indivíduo está no fundamento do direito, que todos os direitos são individuais e que, portanto, não são determinados por relações sociais, não são determinações que derivam de uma prática intersubjetiva. Aliás, essa dimensão intersubjetiva está na origem até mesmo da moral em sentido mais restrito, ou ética. É um engano acreditarmos que a experiência de pensamento que é representada pelo imperativo categórico é uma experiência solipsista, que o indivíduo, nessa experiência mesma, não esteja já aberto para o outro.

IHU On-Line – Em que sentido a concepção política de Kant nos ajuda a refletir e compreender as mudanças no cenário político em nosso tempo, quando fala-se em reinventar a democracia?

Daniel Tourinho Peres – O que significa reinventar a democracia? Meu temor é que muitas dessas reinvenções acabem justamente por se revelar muito pouco democráticas. Kant viveu uma das experiências políticas mais ricas da humanidade: a Revolução Francesa. Ele refletiu tanto sobre a “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, quanto sobre o Terror. Creio que suas reflexões sobre o Terror, que encontramos esparsas aqui e ali por sua obra, ainda têm muito que nos dizer. Em À paz perpétua, por exemplo, encontramos uma passagem em que Kant afirma que toda forma de governo que não seja representativa é uma não forma (de governo). O que isso me parece querer dizer é que a política deve se dar necessariamente por representação; que a representação não é um “segundo melhor”, por impossibilidade empírica de um exercício direito da política, mas que é por assim dizer condição transcendental da política. Ou seja, me parece que o problema da representação política deve concentrar boa parte de nossos esforços, sejam esforços teóricos, pensando a representação em todas as suas dimensões, sejam práticos, criando mecanismos para fortalecê-la. 

 

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