Edição 417 | 06 Mai 2013

Autonomia como ideologia?

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Márcia Junges

Para Kant, a autonomia não se basta a si mesma, observa Vinicius Berlendis Figueiredo. Ao descontrole da razão, complementa o filósofo, contrapõe o “ideal da autorregulação”. Nexo entre democracia e autonomia não é evidente
Vinicius Figueiredo: “Esclarecer-se, assim como tornar-se autônomo, é um processo sem desfecho certo”

 

“Kant insistiu em nos precaver contra a subordinação da moral à felicidade, contra a tendência, muito em voga hoje, de que temos de atingir a felicidade, custe o que custar”, pontua o filósofo Vinicius Berlendis Figueiredo na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. “Só no horizonte do sumo bem, aberto pelos postulados práticos da alma e de Deus, torna-se concebível (pela razão) a reunião entre moralidade e felicidade. Sem dúvida, e para utilizar um termo de Goethe, trata-se de um ‘além-mundo’”, acrescenta. Ele alerta que “a autonomia também se tornou uma ideologia, representada pela autoproclamada exigência de se fornecer um fundamento racional-normativo para a moralidade a todo custo”. E questiona: “não seria estranho que uma filosofia da autonomia não ensejasse nossa autonomia diante de suas conclusões?” O pesquisador examina o estudo de J. B. Schneewind sobre a autonomia em Kant, afirmando que este “fornece muitos subsídios para rastrearmos os antecedentes da autonomia kantiana, a começar por nos levar para muito além de Rousseau, que, embora muito importante, não figura sozinho como antecessor de Kant”.

Vinicius Berlendis Figueiredo é graduado, mestre, doutor e pós-doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP com a tese 1762-1772: Estudo sobre a relação entre método, teoria e prática na gênese da crítica kantiana. Leciona na Universidade Federal do Paraná – UFPR e é autor de, entre outros, Quatro figuras da aparência (Londrina: Lido, 1995) e Kant & a Crítica da razão pura (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a importância do conceito de autonomia ao longo da obra kantiana?

Vinicius Berlendis Figueiredo – A noção de autonomia representa um elemento central da filosofia kantiana em mais de um aspecto. Sua importância não se limita apenas a seu consagrado significado prático-moral. Recorde-se, em primeiro lugar, que a ideia de uma razão capaz de criticar a si mesma traz consigo, de modo implícito, mas nem por isso menos fundamental, a ideia de que esta razão possa receber de si mesma sua legalidade, nada havendo de casual no fato de que o empreendimento crítico se apoie substancialmente em metáforas jurídicas. A autocrítica da razão supõe que a razão já seja autônoma. A operação por meio da qual a razão institui e reconhece os limites do uso legítimo de suas faculdades não procede de uma instância exterior à razão; é a própria razão que institui a crítica do dogmatismo, cujo excesso especulativo revela, dessa forma, uma performance destituída de autonomia. 

Esta acepção de autonomia define, como que por oposição, o que seja a heteronomia da razão. As duas modalidades do uso da razão podem figurar sob o modo de uma alternativa e de uma transição: o dogmatismo é um uso heterônomo da razão, a qual a crítica pode reconduzir ao seu próprio limite. Ao descontrole da razão, Kant contrapõe o ideal da autorregulação. A dificuldade está em que a instituição da fronteira entre heteronomia e autonomia depende, salvo melhor juízo, da mesma instância que, tendo se aventurado na heteronomia e se cindido nela, passa a desejar a autonomia – a razão. Kant supõe isso sem maiores explicações, no fundo amparando-se na teleologia do uso de nossas faculdades.

Autonomia, heteronomia e liberdade

Isso não reverte em conceder demais à razão? Leitores nossos contemporâneos viram aí ingenuidade e, contra esta suposição de neutralidade da razão, apontaram no conceito kantiano de autonomia o pretexto do controle exercido pela razão sobre si mesma, sobre a sociedade e a natureza. Em todo caso, para Kant a autonomia não se basta a si mesma, o que já deveria nos precaver de assimilá-la integralmente ao conceito de autocontrole. Afinal, o incondicionado suprassensível perseguido pelos dogmatismos anteriores e contemporâneos à revolução copernicana em filosofia termina sendo reconhecido pela crítica como fim legítimo e inevitável da razão humana. Este reconhecimento transcorre exatamente porque a razão se tornou autônoma. Assim, no kantismo dar a si mesmo a lei equivale a reconhecer um inteligível normativo que se articula com os temas da metafísica especial. Este nexo interno entre autonomia e validade do suprassensível teve seu alcance no interior da reflexão kantiana negligenciada por diversas leituras de Kant.

Para além deste significado geral, deparamo-nos, na obra de Kant, com a noção de “autonomia” compreendida como lei moral que a razão humana outorga a si mesma. Este é o significado canônico do conceito de autonomia, que aparece na segunda e terceira seções da Fundamentação e que é retomado na “Analítica” da Crítica da razão prática, além de figurar noutros textos nos quais Kant se ocupa da moralidade. Autonomia, nesta acepção específica, qualifica a ação moral como aquela na qual o sujeito extrai de sua própria razão o princípio de sua conduta. Há, aqui, uma dificuldade: ser autônomo é dar a si mesmo a lei moral ou, antes, estar apto a fazê-lo sem necessariamente fazê-lo? São coisas distintas. Tudo faz crer também haver uma decisão subjacente à conduta heterônoma – como se, portanto, devêssemos dizer, no que concerne à heteronomia, não que sou conduzido pelas paixões, mas que me deixo conduzir por elas. Fosse de outro modo, a conduta do agente não poderia ser qualificada como moral ou imoral.

Ao evitar naturalizar a autonomia, isto é, insistir que ela é uma exigência do agente em relação a si mesmo, Kant aponta que o agente precisa responder pelo que faz também quando é heterônomo. Mas esta instância que decide pela liberdade de dar a lei a si mesma também tem de ser livre para destituir-se da liberdade. A equivalência entre autonomia e liberdade tem por contrapartida o fato de que, no limite, também sou livre para ser heterônomo.

Esclarecimento

Há, por fim, um terceiro significado da “autonomia” no corpus kantiano. Trata-se de uma acepção muito próxima do significado moral propriamente dito, mas que é mais amplo que ele. Corresponde ao ideal prático-político do esclarecimento. Kant define este último como saída da menoridade no opúsculo de 1784. É esclarecido o indivíduo que decide servir-se de seu entendimento, que se propõe a pensar por si mesmo, a refletir por própria conta e risco. Ocorre que, como afirma Kant, nem sempre isso depende apenas da decisão individual do agente, mas de condições inerentes ao contexto no qual ele se encontra inscrito. É nesta medida que Kant identifica o Esclarecimento com um processo sociopolítico específico, que, a seu ver, teve início em sua época. Daí por que a autonomia implicada pela Aufklärung seja um conceito de época. Mas de uma época que se singulariza diante do passado, na medida em que, como irá exprimir J. Habermas  em 1985 por referência ao kantismo, retira seus parâmetros normativos, não da tradição e dos costumes vigentes, mas de si mesma, do seu presente.

Através deste último significado de autonomia, Kant confere cidadania filosófica à ideia de atualidade. O atual resulta da autonomia, assim como a autonomia se torna condição necessária da atualidade. Ser autônomo é tornar a própria época contemporânea a si mesmo. Pode-se então dizer que, embora tendo abordado a autonomia como categoria situada na história (um conjunto de discursos, práticas e instituições que se consagra no século XVIII na Europa ocidental), Kant, para além disso, nos convida a pensá-la como ideal a ser efetuado por cada geração, por cada época, cada indivíduo. Seria duvidoso, diante disso, dizer que o Esclarecimento tenha sido definitivamente desmentido pelas barbáries do século XX, como vez por outra escutamos por aí. Seria mais prudente concluir que sua atualização depende de nossa relação com as formas de barbárie de ontem, de hoje e de amanhã. Esclarecer-se, assim como tornar-se autônomo, é um processo sem desfecho certo.

IHU On-Line – Como pode ser compreendido corretamente o conceito de autonomia nesse pensador?

Vinicius Berlendis Figueiredo – Creio que a primeira condição para isso é aceitar que este conceito admite certa polissemia na obra kantiana. O fato de que ele possua um significado amplo, que preside a própria noção de crítica, ao lado de seu significado canônico, conforme o qual a autonomia equivale à liberdade moral; o fato de que este último sentido se desdobra em um significado cultural e político, ligado à abordagem que Kant dispensa ao Esclarecimento e à história – tudo isso, a meu ver, requer ser levado em conta pelo leitor interessado em compreender mais de perto o conceito kantiano de autonomia. Não fazê-lo é arriscar-se a produzir uma interpretação unilateral, arriscar-se a tomar a parte pelo todo, o que, a meu ver, implica descaracterizar o espírito da formulação original de Kant.

IHU On-Line – De que forma a autonomia era compreendida antes do esforço kantiano de conceitualizá-la em oposição à heteronomia em termos morais?

Vinicius Berlendis Figueiredo – Em um livro muito interessante, The invention of Autonomy (Cambridge, 1998), J. B. Schneewind  levanta os antecedentes da noção de autonomia, tal como aparecerá em Kant, no fim do século XVIII. Seu ponto de partida são as filosofias do século XVII, especialmente aquelas de aporte político (Grotius , Hobbes , Pufendorf, Locke ). Esta escolha não vai sem implicações. Schneewind rastreia a origem da noção de autonomia na reflexão política, porque concebe a autonomia como a resposta moderna para a questão geral da autoridade política: passaríamos, com ela, da “obediência” ao “autogoverno”. Schneewind fornece muitos subsídios para rastrearmos os antecedentes da autonomia kantiana, a começar por nos levar para muito além de Rousseau, que, embora muito importante, não figura sozinho como antecessor de Kant. De outro lado, ao enfatizar o aspecto político na investigação da origem da autonomia (o que o aproxima de Rawls), a ponto de atrelar sua aparição à trajetória das formas modernas de autogoverno, Schneewind corre o risco de perder de vista que a construção da noção de autonomia, cuja formulação canônica encontraremos em Kant, significou, independentemente de sua conotação política, uma ruptura com modelos de virtude clássicos, vigentes até o fim do século XVII europeu.

O esquema de Schneewind é teleológico: a invenção da autonomia, de sua ótica, é o desfecho de um processo de racionalização e moralização da política europeia, que corresponderia, em grandes linhas, à passagem dos despotismos para a forma incipiente das democracias liberais modernas. O problema disso, a meu ver, é que nos induz a perder de vista a ruptura que a moral da autonomia promoveu com discursos morais enunciados em proximidade ou no interior do campo do absolutismo político, como é o caso, para ficarmos com um exemplo conhecido, da moral cartesiana. A opção por politizar a origem da autonomia não deve nos incapacitar de compreender que houve e pode haver modelos de virtude associados a formas de poder político que, hoje, consideramos como sendo arbitrárias.

IHU On-Line – Como a tríade existência de Deus, imortalidade e liberdade se relacionam com a autonomia em Kant?

Vinicius Berlendis Figueiredo – Acho esta questão muito oportuna, pois vejo uma tendência, muito forte no curso do século XX, nos EUA, sobretudo, e com ecos importantes no Brasil até hoje, em interpretar a noção de autonomia isoladamente. Negligenciam-se, assim, os vínculos textuais que a ligam aos temas da metafisica especial (alma, Deus). Embora na Crítica da razão prática Kant separe, para efeitos de análise, o exame da autonomia do dos postulados práticos (imortalidade da alma e existência de Deus), ambos os momentos se articulam no que, utilizando um termo extemporâneo, poder-se-ia chamar de “experiência moral” do agente. Isso significa que, embora concebendo o dar a lei a si mesmo como condição suprema da moralidade, Kant não se detém aí. Ele afirma com todas as letras que os homens não têm como não buscar a felicidade, pela qual a liberdade e o dever, compreendidos como autonomia, não podem responder sozinhos. Só no horizonte do sumo bem, aberto pelos postulados práticos da alma e de Deus, torna-se concebível (pela razão) a reunião entre moralidade e felicidade. Sem dúvida, e para utilizar um termo de Goethe , trata-se de um “além-mundo”.

Subordinação da moral à felicidade

Mas o essencial é que esta interpretação, se for pertinente, nos mostra que o agente moral kantiano não é um indivíduo massacrado por aquela lei moral que aplica a si mesmo, muitas vezes contra suas inclinações sensíveis; ao contrário, ele dispõe da crença prática de que poderá gozar da felicidade, caso se torne digno de ser feliz. Você dirá: mas isso não é o mesmo que subordinar a felicidade à performance moral, ao engajamento com o dever? Muito provavelmente. Mas isso condiz bem com a valorização da disciplina do espírito em curso na formação da sensibilidade burguesa. De fato, Kant insistiu em nos precaver contra a subordinação da moral à felicidade, contra a tendência, muito em voga, de que temos de atingir a felicidade, custe o que custar. 

Seja como for, do ponto de vista da doutrina, a articulação entre autonomia e sumo bem é não apenas irreparável, é também desejada por Kant. É importante ter isso em conta, pois nos ajuda a compreender que Kant não elaborou uma moral do dever, como se é inclinado a concluir, toda vez que se toma isoladamente a autonomia. Antes, ele concebeu uma moral do sentido do dever, sentido este possibilitado pela recuperação que a crítica efetua dos temas da metafísica especial, assimilados na doutrina do sumo bem da Dialética da Crítica da razão prática.

IHU On-Line – Qual é a atualidade de Kant para a discussão sobre a autonomia no século XXI? Em que aspectos a Fundamentação da metafísica dos costumes e as três Críticas oferecem subsídios para pensarmos ética e autonomia em nosso tempo?

Vinicius Berlendis Figueiredo – Creio que o prestígio crescente de que goza Kant na filosofia universitária atual deve-se, para além de seu extraordinário interesse filosófico, a razões ideológicas que é bom não perder de vista. Kant presta-se a uma apropriação liberal, para a qual fornece, de resto, o suplemento decisivo representado pela identificação de um fundamento racional normativo para a compreensão da ação moral e política. Esta forma de apropriação do texto kantiano tornou-se tanto mais atraente na medida em que, da segunda metade do século XX para cá, assistiu-se ao recuo das filosofias inspiradas pelo marxismo, por conta da débâcle do comunismo. Não ignoro que haja uma via que conduz de Kant ao marxismo. Marx laborou sobre o legado especulativo hegeliano, ele mesmo em grande parte resultante de um aprofundamento da dialética transcendental kantiana, da subordinação de toda condição ao incondicionado pensado pela razão. Digo apenas que, por razões ligadas à história recente, esta via foi preterida, em prol daquela outra, de aprofundar, em sentido contrário, o momento analítico da doutrina elementar de Kant, negligenciando o dialético. De minha parte, não vejo como isso não produza curto-circuitos, quer do ponto de vista exegético (há passos e passos da obra que desautorizam esta insularização da obra no seu momento analítico), quer do ponto de vista filosófico. 

Parece-me importante destacar que a recusa do elemento especulativo (que, de Kant a Marx, passando pelo idealismo alemão, operou como ancoragem de sentido para as determinações da razão) às vezes estimula a sublimação da norma, tudo se passando como se o sentido das condutas pudesse surgir da aplicação reiterada do procedimento moral, como se a ausência de conteúdo requerida pelo formalismo da razão pudesse ser compensada pelo valor intrínseco do operar racional, abandonado a si mesmo… Não surpreende que, por vezes e de modo um tanto paradoxal, isso conduza a uma sobrevalorização dos costumes, da educação, dos prejuízos inculcados pela tradição, que passam a funcionar como esteio de última instância para a aplicação irrefletida do dever. De Laranja mecânica a Beleza americana, o cinema contemporâneo visitou este tópico, no qual a regra moral, que Kant pensara como autonomia ancorada em um incondicionado inteligível, se torna controle social, repressão, angústia. Não que se deva ser kantiano, longe disso. Ler Kant é importante para abandoná-lo sem cair em mistificações – e a mistificação do procedimento é muito comum…

Ideologia da autonomia

Para investigar de que modo Kant ajuda a pensar a autonomia hoje, acho importante, de partida, diversificar os níveis de análise. No nível exegético, o texto de Kant nos revela o preço de enraizar o sentido do dever no suprassensível da metafísica especial. O argumento kantiano é coerente sob a condição de aceitarmos como válidos os temas da metafísica clássica, reabilitados criticamente. Passando para o nível polêmico, a questão passa a ser, então, se é lícito recorrer a este incondicionado, mesmo se apenas no âmbito do pensar, para fundar o sentido da liberdade. É importante responder com clareza a esta questão. Afinal, a autonomia também se tornou uma ideologia, representada pela autoproclamada exigência de se fornecer um fundamento racional-normativo para a moralidade a todo custo. Entendo a preocupação que anima tais leituras. Creio, porém, que fazê-lo requer responder a problemas que questionam o núcleo deste projeto, hoje que o recurso ao incondicionado da metafísica clássica se tornou problemático.

Por exemplo, de que tipo de unidade dispõe o sujeito ao qual se atribui autonomia? Não é preciso nem mesmo ser leitor assíduo de Nietzsche para inquirir sobre isso. Mais próxima de nossa experiência comum, a psicanálise faz o mesmo questionamento. Freud , a certa altura de O eu e o id (1923), afirma não ter dúvidas de que uma parte significativa do Eu é inconsciente, a questão sendo determinar sua magnitude, tarefa da qual teriam passado longe “os filósofos”. Se a questão freudiana é pertinente, se, enfim, ela nos apela, neste caso é preciso também reexaminar o horizonte sobre o qual a vontade autônoma tem seu sentido projetado: este horizonte admitiria ser concebido e encerrado em uma “simples ideia” da razão, como afirma Kant? Mais: admitidos esses indicadores contemporâneos, de que tipo de universalidade e necessidade pode dar testemunho a liberdade moral?

Levanto estas questões apenas para sugerir que o maior benefício de voltar a Kant talvez resida em medir o que significa não ser mais seu contemporâneo, compreender o desafio representado por pensar a autonomia após sua contribuição para a autonomia. Ler um grande autor é ocasião para situar-se no horizonte de problemas aberto por ele, o que nem sempre conduz a alinhar-se a seus resultados. Como já observaram seus melhores intérpretes (G. Lehmann , G. Lebrun , N. Hinske), o discurso kantiano não se deixa apreender de um só golpe, numa doutrina. Ao contrário, trata-se de um discurso atravessado por um vai e vem recorrente entre digressão e método, aporia e sistema, crítica e doutrina. A rigor, não seria estranho que uma filosofia da autonomia não ensejasse nossa autonomia diante de suas conclusões?

IHU On-Line – Quais são as principais conexões entre autonomia e democracia?

Vinicius Berlendis Figueiredo – De imediato, se autonomia equivale a criar para si mesmo uma legalidade, por que nós, contemporâneos do projeto da democracia universal, hesitaríamos em transpor a definição formulada por Kant no nível do indivíduo para a ordem política? Mas esta transposição, que institui de modo quase espontâneo uma conexão entre autonomia e democracia, não vai sem problemas. A começar porque, mesmo admitindo que a democracia seja o regime da autodeterminação do povo, opera aí um “como se” que possui implicações, que merece exame. As teorias democráticas modernas afirmam que a legitimidade do poder político depende da soberania popular. Isso requer admitir que a soberania se exprime por uma vontade unívoca, suposição que já em Rousseau se reporta a uma idealidade normativa: tudo examinado, a vontade geral não é diferenciada por Rousseau da vontade de todos? Ele não separa cuidadosamente a expressão normativa da soberania do povo dos consensos construídos empiricamente?

Se em Rousseau a transposição espontânea e imediata da autonomia moral para a democracia como forma política da autonomia já nos pede cautela, em Kant, então, esta cautela vira exigência metodológica. Diversamente do Rousseau de O contrato social, Kant não subscreve a ideia de soberania popular. A Doutrina do direito não exibe qualquer simpatia pela ideia do sufrágio universal. Em contrapartida, há elementos textuais que, embora sem afirmá-lo, apontam, ao menos, para um nexo possível entre autonomia e espírito democrático. A noção de liberdade moral, como mostrou Ricardo Terra (A política tensa, Iluminuras, 1995), exerce uma função importante para a definição da legitimidade do poder político por intermédio da ideia jurídica de vontade geral. Também na direção do estabelecimento de um vínculo entre autonomia e política, lê-se, no opúsculo de 1784 sobre o Esclarecimento, a afirmação de que o bom governante exerce seu poder legislativo “como se” este fosse a expressão dos súditos.

Autonomia e democracia

Tudo somado, eis-nos mais uma vez diante de um conjunto de questões de grande interesse e que, por isso mesmo, resiste a simplificações. Por um lado, há elementos para a defesa de um Kant, se não na letra, ao menos no espírito, partidário da democracia. É isto o que, se vejo bem, anima, por exemplo, a leitura robusta de Schneewind, que, como disse, liga a origem da ideia de autonomia à marcha da história política europeia, por ocasião da transição do absolutismo para as democracias modernas. Por outro lado, há boas razões para não aproximarmos sem mais autonomia moral e self-governance político. Mesmo Rousseau, a despeito de ter sido reivindicado pelos jacobinos como o grande mentor da soberania popular, efetua no texto uma diferenciação decisiva entre a expressão da vontade geral e a vontade da maioria. Em Kant, esta diferença de escala entre ideia e experiência é aprofundada pela recorrência incessante do “como se”, que atrás de si esconde, talvez, um abismo. 

Para não ficar em cima do muro, diria que, tudo somado, o nexo entre autonomia e democracia, visto mais de perto, não é nada evidente. Afora toda decisão exegética, a transposição da autonomia moral para o plano da autonomia política (seja ou não sob o horizonte ideal da soberania popular) é questionável por si mesma. Mencionei de passagem, em remissão à psicanálise, as dificuldades que cercam a suposição da univocidade da vontade do agente individual, pressuposto pela autonomia moral. Que dificuldades, então, não esperar da sua transposição para uma escala coletiva, política? Catherine Colliot-Thélène, em um livro muito instigante há pouco publicado (Democratie sans demos, PUF, 2010), mostra que, em sua origem, a ideia moderna de democracia foi pensada sem relação com a ideia de soberania popular. A assimilação entre elas, que se tornou espontânea para nós, talvez seja mais ideológica do que conceitual. Condiz com isso o fato de que, quer do ponto de vista do agente individual, quer do sujeito coletivo, a ideia de vontade unívoca, capaz de tornar clara a si mesma suas decisões, parece um tanto questionável. Psicanálise e política mundial fornecem muitos exemplos que frustram todo aquele que espera encontrar na unidade da vontade individual ou nacional a realização da liberdade.

 

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