Edição 415 | 22 Abril 2013

Occupy Palácio de Christiansborg

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Ricardo Machado

“Havia algo de podre no Reino da Dinamarca”, previu William Shakespeare mais de cem anos antes do episódio desta reportagem. O período era por volta de 1770 e 1772 e o local era a própria Dinamarca. Depois de o Rei Cristiano VII ficar aproximadamente um ano afastado de sua visibilidade monárquica, como previa o figurino da época, a população de Copenhague se insurgiu e ocupou o Palácio de Christiansborg , localizado atualmente na ilha de Slotsholmen, no centro da cidade. Ao melhor estilo Occupy Wall Street, a população tomou o pátio da residência Real e sentou-se a olhar a sacada do prédio, esperando Vossa Majestade, o Rei Cristiano VII. As chamas das tochas carregadas pelos súditos que ocuparam o palácio e o desejo de verem o Rei eram o princípio do fim de um período de escuridão. O Iluminismo havia acendido suas primeiras centelhas.

 

Esta história é contada no filme O amante da Rainha, do diretor Nikolaj Arcel, uma produção de três países – Dinamarca, Suécia e República Tcheca –, indicada ao Oscar 2013 na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Na trama, a rainha Caroline Matilde , ainda muito jovem, foi enviada da Inglaterra para a Dinamarca a fim de se casar com o rei Cristiano VII, que por sua vez tinha fama de ser bobo e, para muitos, louco. Da relação com sua esposa nasce o primogênito da família Frederico VI, que governou a Dinamarca na primeira metade de século XIX. Tempos depois a rainha deu à luz uma menina, Luísa Augusta, que seria fruto do relacionamento com o médico alemão Johann Friedrich Struensee .

O iluminista e a demência

A saúde da corte e de um rei dominado pela demência voltou ao palácio depois que o rei Cristiano VII resolveu ir para a cidade de Schleswig-Holstein, na antiga Prússia, atual Alemanha, nos meses de junho e julho de 1767. Lá conheceu o médico Johann Friedrich Struensee, que se tornou mais que um amigo: virou um conselheiro, um mentor. Além de um médico perspicaz, Struensee era um leitor entusiasta dos textos de Jean-Jacques Rousseau, Denis Diderot e Voltaire. Era, enfim, um iluminista.

Struensse havia convencido o rei de que sua fascinação por teatro, algo que era mal visto pelos conselheiros do reino, era algo positivo. De alguma maneira, o médico havia feito o rei compreender que, por trás dos bons costumes e das golas bordadas exibidas nos corredores do palácio, havia um verdadeiro teatro político e que a engrenagem do poder era lubrificada com sangue.

A amizade com Cristiano VII rendeu a Struensee poder, tanto que em maio de 1770 foi nomeado conselheiro real. Em dezembro deste mesmo ano o antigo conselho real foi destituído e o médico passou a não só apresentar os relatórios de vários departamentos do Estado para o rei, como também a redigir centenas de leis. A essa altura, a rainha Carolina Matilde e Struensee tinham um caso de amor sólido, e ela já estava grávida de sua filha Luísa Augusta. Vale lembrar que a rainha também era iluminista, o que fica claro na cena em que ela toma o livro de Rousseau nas mãos, na biblioteca de Struensee e o “caso” deles nasce deste interesse comum. Eis o importante papel dela nesta história toda.

Estado de bem-estar social

Sem o antigo conselho real e com a solidez da confiança do rei, Struensee passou a comandar de fato a Dinamarca, embora o governo soberano era do rei, e implantar políticas públicas fundadas nos ideais iluministas, subversivos demais para o período histórico. Sob a luz da razão, o médico instituiu muitas reformas no Estado, o que incluiu a construção de pediatrias, o fim da pena capital para os crimes de roubo e o fim da tortura em interrogatórios judiciais. As regalias para os homens de governo e para quem possuía cargos públicos cessaram. Atribuía-se ao médico alemão mais de mil leis escritas e sancionadas entre 1770 e 1771, o que resultava em uma média de mais de três normas por dia. 

A ampliação do bem-estar social à custa do corte de recursos aos aristocratas causou mal-estar nos nobres, e Struensee acabou sendo vítima de seus próprios ideais. Ele havia, com autorização do Rei, acabado com a censura e foi o próprio pensamento de liberdade que, literalmente, o aprisionou. 

Uma conspiração articulada pela rainha viúva Juliana Maria e pelo aristocrata Rantzau-Ascheburg, amigo antigo de Struensee, em que foram espalhados diversos cartazes por Copenhague insinuando um romance entre a rainha Carolina e o médico alemão, despertou a cólera no rei Cristiano VII, que destruiu um bordel do centro da cidade. Possuído de raiva, o rei acabou consolado pelo algoz e Struensee o levou de volta ao palácio. 

O princípio do fim

Após conversar com seu médico e confidente, Cristiano VII isolou-se no palácio iniciando seu inverno de aparições públicas. Com a ausência do monarca nas ruas da cidade e a propagação de boatos de que o rei estaria morto, sobretudo em função dos atos conspiratórios em relação ao romance de Struensee e a rainha Carolina, a população dinamarquesa ocupou o palácio de Christiansborg a fim de confirmar que o rei não estava morto.

Cristiano VII temia aparecer em público, ainda que fosse apenas na sacada do palácio, pois acreditava que seria assassinado pela população que ocupava o pátio da residência real. Os conservadores aproveitaram o momento de instabilidade, invadiram Christiansborg e pressionaram o rei para que assinasse um documento ordenando a prisão de Struensee.

O médico, confidente e amigo de Cristiano VII, foi jogado ao calabouço. Tempos depois suas leis foram revogadas e os conservadores voltaram a governar. Com a volta dos antigos conselheiros ao poder, a rainha Carolina Matilde foi enviada à Prussia e os filhos Frederico VI e sua filha Luísa Augusta ficaram na Dinamarca. Sob alegações e restrições médicas, o rei Cristiano VII parou de governar e seu meio-irmão Frederico passou a ser o regente.

O Iluminismo havia sido sufocado, as centelhas de um período de racionalidade e liberdade de pensamento haviam se apagado. A Dinamarca só escaparia da escuridão no século XIX, quando Frederico VI assumiu o reino, restituiu grande parte das leis de Struensee, torturado e decapitado dias após ter sido preso, e avançou, tornando os servos livres. Os dias de sol voltavam a brilhar em Copenhague.

A necessidade de um Iluminismo contemporâneo

Apesar dos 300 anos que separam o Iluminismo dinamarquês da contemporaneidade, os períodos guardam suas semelhanças, pois ambos são momentos de transição. As ideias iluministas de Rousseau, Diderot e Voltaire permitiram pensar a vida na Europa dos séculos XVIII e XIX em um sentido de transcendência, avançando na compreensão do ser humano em relação à Idade Média. A ocupação do Palácio de Christiansborg exigia a presença do rei Cristiano VII, pois os súditos acreditavam que suas vidas dependiam da ação dele e que seu papel era fundamental para o bem-estar social. A população atribuía a Cristiano VII as melhorias nas condições de vida do reino e suas leis de garantias sociais. Por isso marchou em direção ao palácio e de lá não arredou pé até que o monarca fosse apresentado.

O ano de 2011 foi marcado pelos manifestos que no Norte de África e Oriente Médio resultaram na Primavera Árabe, movimentos que derrubaram ditaduras de décadas. Nos Estados Unidos o Occupy Wall Street mobilizou centenas de jovens em torno dos efeitos colaterais da sociedade fundamentada no capital financeiro. O movimento 15M lutava pela retomada de direitos sociais na Espanha.

Mais recentemente no Brasil, diversas ações de protesto, que vão desde as marchas contra o racismo e a homofobia até a mobilização em torno do museu do Índio, no Rio de Janeiro, e contra o aumento das passagens de ônibus em Porto Alegre, apresentam um eclético panorama das lutas sociais na contemporaneidade. Nada poderia ser mais pós-moderno que a esquizofrenia das lutas sociais. 

O modelo atual de democracia está para a pós-modernidade como a monarquia estava para a Idade Média. As ideias e ideais iluministas foram um marco de transição à modernidade; os pensamentos que fundaram tal movimento permitiram aos indivíduos repensar a própria humanidade. A monarquia, com o tempo, perdeu a serventia. Talvez o combustível de um possível Iluminismo pós-moderno esteja nas redes sociais, na mobilização esquizofrênica, eclética e não menos política dos jovens e suas relações. Quem viver verá.

Ficha técnica: O amante da Rainha

Titulo original: Em kongelig affære

Gênero: Drama

Ano: 2012

Distribuidora: Europa / Mares Filmes

Duração: 137 min

Diretor: Nicolaj Arcel

Elenco: Alicia Vikander, Mads Mikkelsen, Mikel Boe Følsgaard, David Dencik

 

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