Edição 415 | 22 Abril 2013

Uma construção conceitual inovadora

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Márcia Junges

Acusado de moralizar a política, Rousseau insistia que os governantes são funcionários do povo e devem primar pela execução da vontade geral expressa em lei, observa Ricardo Monteagudo. Autodidata, o filósofo genebrino é exemplar em sua “fabricação de conceitos”

“Rousseau não frequentou escolas e era autodidata, assim a leitura que fazia dos grandes autores era necessariamente inovadora porque rompia com a leitura normal ou paradigmática de sua época. É justamente esta estrutura conceitual inovadora que ele criou que o torna um dos maiores filósofos de seu tempo, pois se, como afirma Deleuze, o que caracteriza a filosofia é a fabricação de conceitos. Então, Rousseau é exemplar”. A reflexão é do filósofo Ricardo Monteagudo na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ao contrário de Hobbes, para Rousseau o povo não deveria “admitir nenhum abuso do governo, sob pena de tornar-se servil e perder a liberdade política”. E completa: “Rousseau insiste que os governantes são funcionários do povo, devem executar a vontade geral expressa em lei”. A proximidade rousseauniana com o pensamento de Espinosa se dá pela preferência da “democracia como forma de governo ou como modelo de compartilhamento de decisão”. O que os afasta é o cristianismo e a noção de culpa ou dívida, pondera Monteagudo.

Ricardo Monteagudo é graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP com a tese Retórica e política em Rousseau. Cursou pós-doutorado na Universidade Paris I – Pantheon-Sorbonne. Leciona na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, campus de Marília. É autor de Entre o direito e a história: a concepção de legislador em Rousseau (São Paulo: Editora Unesp, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as ideias centrais que norteiam a concepção de legislador em Rousseau?

Ricardo Monteagudo - Basicamente, a noção de legislador surge em Rousseau para evitar que o governo mande no povo, ou melhor, para garantir que o governo obedeça ao povo e siga a vontade geral. Rousseau insiste que os governantes são funcionários do povo, devem executar a vontade geral expressa em lei. Assim, a mediação entre o governo e o povo se dá por meio da lei, donde o papel do legislador de propor um sistema legislativo que impeça o abuso do governo e garanta a vigilância do povo, ou seja, um sistema legislativo legítimo. O principal objetivo é neutralizar a solução de Hobbes que identifica o governante e o legislador, torna a lei uma ordem do governo à qual o povo deve obediência e submissão. Para Rousseau, ao contrário, o povo não deve admitir nenhum abuso do governo, sob pena de tornar-se servil e perder a liberdade política.

IHU On-Line - Qual é a importância dessa concepção no pensamento político desse autor?

Ricardo Monteagudo - A importância é, de um lado, mostrar que o homem é dono de sua história, e de outro, defender uma profissão de fé democrática e libertária. Em outras palavras, se o homem renuncia à sua liberdade e autonomia, ele o faz voluntariamente. A liberdade para o homem é tão essencial que mesmo os homens condicionados (e educados) para e escravidão se rebelam de alguma forma. Quanto à liberdade política, o fundamental é basicamente o compartilhamento de decisões e o respeito à vontade geral. Rousseau é um anti-Carl Schmitt. Alguns o acusam de moralizar a política, de identificar moral e política, mas suas análises de Montesquieu mostram que se trata de estabelecer canais de diálogo entre as instituições que compõem o Corpo Político, já que toda instituição é internamente dotada de vontade geral.

IHU On-Line - Para Rousseau, o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Como essas ideias se refletem em seu pensamento político e qual é a sua pertinência hoje?

Ricardo Monteagudo - Rousseau considera que foi a invenção da propriedade e o controle das "coisas" que colocou os homens e os Estados uns contra os outros, em estado de guerra. Estes desenvolvimentos históricos, contudo, se inserem na perfectibilidade, ou seja, aperfeiçoam o artifício e degeneram a natureza. Lamentavelmente esta ambiguidade de avanço-recuo está sempre presente. Precisamos assim pensar sempre nos malefícios que os benefícios trazem e, com isso, tentar inutilmente conter os males que necessariamente aparecerão. É a inevitável decadência: o homem melhora, a humanidade piora. Politicamente, o governo sempre abusará do poder e o povo sempre se rebelará - é uma lei histórica, uma espiral entre a legitimidade e a tirania. Filosoficamente a dedução é inquestionável (desde que aceitemos seus princípios, aliás é isto que nos permite caracterizar Rousseau como um grande filósofo). Hoje, penso que precisamos defender a legitimidade e combater a tirania, defender a liberdade e combater a servidão. Eticamente, penso que os cidadãos de bem na defesa da legitimidade precisam da ousadia que têm os calhordas no egoísmo de seus interesses mesquinhos.

IHU On-Line - Em que aspectos a ideia de um “bom selvagem” se conecta com as ideias de liberdade e felicidade rousseaunianas?

Ricardo Monteagudo - A expressão "bom selvagem" não foi utilizada por Rousseau, mas por seus intérpretes. O fundamental é que o homem não é naturalmente sociável, ou seja, é amoral. A moralidade se estabelece junto com a vontade geral, quando o homem se sociabiliza. Assim a liberdade natural é substituída pela liberdade moral, a felicidade física de um homem solitário e absoluto é substituída pela felicidade moral de um novo homem social e dependente da sociedade que ele cria e que o criou.

IHU On-Line - Qual é a particularidade da abordagem rousseauniana da democracia?

Ricardo Monteagudo - O fundamento teórico da sociabilidade se dá por democracia direta, no momento em que a vontade geral é estabelecida. Entretanto, à medida que o homem se aperfeiçoa e a humanidade se degrada, a sociedade se sofistica e um homem não pode mais ter controle sobre tudo aquilo que ele precisa para viver, o artifício da democracia deixa de ser condição social. A partir daí, a liberdade política ou legitimidade passam a ser a ideia reguladora do Estado (ou Corpo Político) e garantia de coesão social e política, aquilo que Rousseau chama de república, res publicae, coisa pública. Cada sociedade considerará uma forma de organização diferente, cada povo manifestará uma vontade geral diferente. O modelo original de compartilhamento total e democracia direta permanece parâmetro de justiça, porém a dimensão, o clima, a quantidade de habitantes, os Estados vizinhos, etc, tudo isso interfere na forma de governo a ser adotada.

IHU On-Line - Que conexões entre política e religião são perceptíveis em seu legado filosófico?

Ricardo Monteagudo - Rousseau tinha o mesmo ideal de muitos pensadores do direito natural moderno de reunir novamente a cristandade e interromper as guerras religiosas fratricidas comuns em seu tempo. Propunha assim a submissão da instituição religiosa ao Corpo Político e defendeu uma profissão de fé abstrata de tolerância e amor ao próximo. De certa forma, as alegorias cristãs estão preservadas em seu sistema de pensamento: o Paraíso seria o estado de natureza em todas as necessidades naturais do homem estão satisfeitas, e a Queda seria a sociabilização, quando o homem precisou se esforçar para sobreviver.

IHU On-Line - Que intersecções e aproximações podemos estabelecer entre a filosofia política de Rousseau e a da Spinoza?

Ricardo Monteagudo - O que aproxima Rousseau e Espinosa é a preferência pela democracia como forma de governo ou como modelo de compartilhamento de decisão, ambos são republicanos e libertários. O que afasta é o cristianismo e a noção de culpa ou dívida: para o genebrino o homem enquanto criatura deve sua vida e consciência ao Criador, ao passo que para o holandês Deus e a natureza se identificam, o homem é uma pequenina parte de Deus, ou seja, da natureza. Rousseau considera o homem dualista e a vida eterna, o homem perverso que abusa de sua liberdade será punido após a morte. Espinosa é materialista e pensa que a alma morre com o corpo, o homem mau é um ser infeliz e desequilibrado que interfere negativamente na harmonia da natureza.

IHU On-Line - "Maquiavel fingindo dar lições aos Príncipes, deu grandes lições ao povo", disse Rousseau. Como esse filósofo dialoga com outros pensadores para construir suas concepções políticas?

Ricardo Monteagudo - Rousseau não frequentou escolas e era autodidata, assim a leitura que fazia dos grandes autores era necessariamente inovadora porque rompia com a leitura normal ou paradigmática de sua época. É justamente esta estrutura conceitual inovadora que ele criou que o torna um dos maiores filósofos de seu tempo, pois se, como afirma Deleuze, o que caracteriza a filosofia é a fabricação de conceitos. Então, Rousseau é exemplar.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Ricardo Monteagudo - Rousseau afirma que a lei é expressão da vontade geral, assim a questão da linguagem é fundamental para sua filosofia política, a retórica é o principal componente da política. As pessoas deixam-se convencer facilmente, e todo poder implica em consentimento previamente obtido. Precisamos afastar Rousseau de Aristóteles e Platão (e Sócrates) e aproximá-lo de Protágoras  e Isócrates  (e quiçá Cícero ) para bem compreendê-lo.

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