Edição 415 | 22 Abril 2013

O povo como soberano: Rousseau, um pensador democrático?

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Márcia Junges | Tradução de Cláudio Souza

Denúncias do mau uso da razão podem levar a crer que há irracionalismo moral de Rousseau, frisa Gabrielle Radica. O pensador iluminista se inscreve na linha política “realista” de Maquiavel, Spinoza e Montesquieu

 

Pensador das luzes, crítico dos poderes estabelecidos e das superstições, Rousseau considera a propriedade “como a instituição mais importante da sociedade” e não prevê qualquer mecanismo redistributivo. “Desse fato, ele tolera a possibilidade que as desigualdades econômicas e sociais se desenvolvam a despeito da igualdade de direito”, assinala a filósofa francesa Gabrielle Radica em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Contudo, Rousseau chegou a ser taxado como pequeno burguês pelos marxistas, “embora alguns o considerem como um ancestral do pensamento revolucionário leninista”. De acordo com a entrevistada, há dois domínios não excludentes em sua obra: “a instauração da propriedade privada garantida pelo Estado deve prevenir os conflitos, mas o desenvolvimento excessivo das riquezas e de sua má distribuição não cessa de fazê-los renascer. O risco envolvido é que comecemos a auferir um preço aos homens como se fossem mercadorias, em vez de lembrar sempre que a propriedade privada está ao serviço da subsistência do indivíduo, e não das relações de força dentro da sociedade”. E acrescenta: “Rousseau pode ser considerado como um pensador da democracia devido ao seu pensamento original e corajoso acerca do tema da soberania popular. O governo é encarregado da execução das leis, isso é correto, mas o soberano se encarrega de sua confecção e validação”.

Gabrielle Radica leciona no departamento de Filosofia da Universidade Picardie Jules Verne, na França. Suas pesquisas se centram na história da filosofia moral e política dos séculos XVII e XVIII. Sua tese intitulou-se Les domaines de la rationalité pratique chez Rousseau. É autora de L’histoire de la raison. Anthropologie, morale et politique chez Rousseau (Paris: Champion, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os campos da racionalidade prática em Rousseau?

Gabrielle Radica – As formas da racionalidade que interessam a Rousseau concernem ao mundo prático. E a verdade que ele busca esteve sempre à frente de toda a moral. Se nos determos às ocorrências do termo “razão”, encontraremos em seus textos toda uma série de condenações da razão, esta faculdade que nos desvia, que se corrompe, que serve ao amor próprio. Essas denúncias do mau uso da razão podem levar à crença de que há um irracionalismo moral de Rousseau. Na realidade, ele só condena o uso moral da razão quando a separamos dos sentimentos e das paixões e quando cremos poder fazê-la funcionar sozinha. Assim, alargando o questionamento para além dos únicos textos que falam da razão como de uma faculdade, devemos mais precisamente nos outorgar, como um objeto de estudo pertinente, à razão prática em geral. Essa é constituída de todos os esforços empreendidos pelo homem, sozinho ou socializado, para ser mais prudente e eficaz, para se tornar melhor ou ainda para encontrar uma regra justa. Então, serão compreendidos o domínio político (a vontade geral, longe de ser arbitraria, é racional, pois ela põe em questão todos os interesses particulares), o domínio moral (a bondade, a virtude não se concebem sem o auxílio da razão e a consciência é certamente um sentimento, mas um sentimento iluminado pelo desenvolvimento da razão, algo que podemos ler na Profissão de fé do vigário Savoyard), ou ainda a vida religiosa (a Profissão de fé propõe uma forma de religião natural, que significa uma religião que se desenvolveu graças à ajuda da razão). Em todos esses domínios, a razão não age sozinha, mas ela trabalha os interesses, ela transforma as paixões e os sentimentos naturais.

IHU On-Line – Qual é o nexo entre antropologia, moral e política em Rousseau?

Gabrielle Radica – A moral não saberia se pensar, de acordo com Rousseau, fora da antropologia e, mais precisamente, fora de uma teoria das paixões humanas, ou fora de um estudo sobre a maneira pela qual o homem se transforma dentro da história e nas diferentes situações locais em que ele encontra. A antropologia designa, com efeito, primeiramente aquilo que ela designa em Locke e Pufendorf, a saber, uma teoria geral do homem, de suas faculdades, de suas tendências: uma teoria da natureza humana. Mais ela vai designar doravante com Rousseau e notadamente desde o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, uma teoria sobre a maneira na qual a natureza humana se transforma em sociedade e dentro da história: uma teoria da natureza histórica do homem. O primeiro ponto de vista permite insistir sobre a permanência do amor de si e do desejo de se conservar; o segundo permite ver que uma mesma paixão natural, por exemplo, a piedade, pode dar o melhor (uma forma inconsciente de virtude dentro do estado de natureza puro) ou o pior (uma crueza voyeurística dentro dos “templos da aparência” que são os teatros, denunciados por Rousseau nas Cartas a d’Allembert) se ela se mistura ao desenvolvimento do amor-próprio. E é desses dois sentidos da antropologia que depende a moral.

Cidade de indivíduos

Com efeito, a bondade e a virtude moral são indissociáveis da paixão fundamental do amor de si, assim como a piedade, e elas são ameaçadas pela corrupção do amor de si em amor próprio. Se o homem do estado de natureza é bom, é sempre a unidade do amor de si e sua ausência de nocividade que nós buscamos reencontrar dentro da educação moral de Emílio, esse “selvagem feito para habitar as cidades”, malgrado os riscos que ele corre se socializando. A política não mais pode ser dissociada da antropologia, pois é do homem “tal como ele é” que se refere Rousseau dentro do Contrato social. Nós não construímos nem uma cidade de demônios, nem uma cidade de anjos, mas uma cidade de indivíduos perseguindo igualitariamente os seus interesses. Nisso Rousseau se inscreve dentro da linha política “realista” de Maquiavel, de Spinoza  e Montesquieu.

Fundamento moral da política

Quanto às relações entre a moral e a política, elas são mais complexas. Esse dois domínios são distintos e o contrato social define uma linha de engajamento e obrigações entre os homens que serão capazes de dispensar a moralidade se detendo tão apenas no interesse decorrente de cada um. Entretanto, observa-se uma interdependência desses dois domínios: de uma parte, a moralidade, apesar de distinta da relação política e jurídica a outrem, não pode verdadeiramente se desenvolver sem um quadro civil mínimo, pois se a moralidade designa a nossa relação com o outro como tal, somente um quadro social permite o desenvolvimento de certos conhecimentos e ideias necessárias à moral (a ideia do outro, de seu interesse, de sua felicidade e de seu sofrimento), mas, de outro lado, poderíamos nos perguntar, de acordo com Robert Derathé que é um importante comentador de Rousseau (Rousseau e a ciência política de seu tempo, Paris, Vrin, 1995) se o pacto social poderia ocorrer sem uma concepção moral mínima, notadamente aquela que nos exige a manutenção de certas promessas nossas. Há, portanto, uma circularidade entre a moral e a política.

Penso, entretanto, que a existência política não repousa sobre um fundamento moral, mas somente sobre o interesse particular que é suficiente para engendrar o contrato social. Mais do que uma continuidade entre os fundamentos da política e os fundamentos da moral, nós poderíamos falar de uma analogia: Rousseau desenvolveu, como também o fez Montesquieu, o tema da virtude política, ou virtude cívica, como equivalentes no território da atitude moral. Essa consiste em saber colocar o nosso interesse particular depois do interesse geral e é por esta analogia com a virtude moral que essa disposição cívica é chamada de virtude (a virtude moral consiste ultrapassar o nosso interesse individual em prol do interesse do outro, ou da ideia de justiça, de caridade, etc.).

Porém, na medida onde o interesse geral espelha na política uma expressão de nosso próprio interesse que se materializa na cidade, eu creio que não se trata, para Rousseau, de dizer que uma virtude sacrificial será necessária para que uma cidade perdure, isso não será mesmo desejável para ele. E tanto a tentativa de Dearthé em dar um fundamento moral à política quanto a sua insistência sobre o individualismo de Rousseau se constituem em um ponto que não pode ser seriamente refutado. Em resumo, a moral e a política são domínios que se apoiam sobre a consideração do que é o homem. Mas esses são domínios de normatizações distintas, reenviando o primeiro às ligações intersubjetivas e o segundo bem mais às ligações do indivíduo ao todo-coletivo do estado.

IHU On-Line – Em Contrato social, a ideia de propriedade é o que sustenta a desigualdade de direitos entre os cidadãos. A discrepância econômica na sociedade, como origem dos conflitos e paradoxos sociais, pode, de certa forma, ser comparadas às concepções marxistas?

Gabrielle Radica – O contrato social criou primeiramente uma igualdade de direito entre os cidadãos que aboliu a desigualdade natural, como é dito no capítulo 9 do livro I do Contrato social: “Em vez de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui, ao contrário, uma igualdade moral e legítima ao que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens e [...] podendo ser desigual em força ou em inteligência, eles se tornam todos iguais por convenção e por direito”.

Mas é verdade que Rousseau considera a propriedade como a instituição mais importante da sociedade e que ele não prevê qualquer mecanismo redistributivo. Desse fato, ele tolera a possibilidade que as desigualdades econômicas e sociais se desenvolvam a despeito da igualdade de direito. Entretanto, ele é consciente do risco que o excesso de desigualdades de posses, de riqueza ou de poder representa, para a liberdade política. Também isso está muito claro dentro do texto seguinte (Contrato social, 2,11): “Se se procura saber em que consiste precisamente o maior dos bens, que deve ser o objetivo de todo sistema de legislação, achar-se-á que se reduzem a estes dois objetos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque toda independência particular é outra tanta força subtraída ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela. Já tive ocasião de dizer em que consiste a liberdade civil; a respeito da igualdade, não se deve entender por essa palavra que os graus de poder e riqueza sejam absolutamente os mesmos, mas que, quanto ao poder, esteja acima de toda violência e não se exerça jamais senão em virtude da classe e das leis; e, quanto à riqueza, que nenhum cidadão seja assaz opulento para poder comprar um outro, e nem tão pobre para ser constrangido a vender-se (14): o que supõe, por parte dos grandes, moderação de bens e de crédito, e, do lado dos pequenos, moderação de avareza e ambição.”

Rousseau, um pequeno burguês?

A igualdade social, ou mais ainda: uma desigualdade moderada, deve ser seguida pelo estado como um meio de defesa da liberdade política: com efeito, desde que alguém tenha poder ou influência suficientes para me impetrar a violência, ou que ele tenha dinheiro o suficiente para poder me comprar [como escravo, NdT], eu não posso mais considerar que eu sou um cidadão livre, logo as condições do pacto social não são mais respeitadas. Igualmente, na medida em que Rousseau combinou as considerações contratualistas formais com uma consideração real, nova e original da desigualdade social, ele foi bem mais criticado do que aplaudido pelos marxistas. Marx acusa o Contrato social de buscar uma solução unicamente política e não econômica para o problema social, mas Engels , mesmo que condene o formalismo do contrato social, reconhece um lugar privilegiado para o segundo discurso que anunciará, de acordo com este, o método do materialismo dialético. 

Rousseau irá ser rotulado pelos marxistas posteriores como um “pequeno burguês”, embora alguns o considerem como um ancestral do pensamento revolucionário leninista. E preciso recordar, para evitar certos anacronismos, que Rousseau foi com certeza consciente dos danos da desigualdade social e econômica, porém ele foi bem mais um leitor pessimista de Maquiavel e Montesquieu, que refletiu sobre a deterioração indefinida das relações sociais através das oposições entre a riqueza e a pobreza, do que um antecipador de Marx ou Engels e que refletiria sobre a superação da alienação social humana através da via do conflito e da revolução.

IHU On-Line – Qual é a relação entre a emergência do conceito de propriedade privada e a restrição da liberdade dentro da teoria do contrato social em Rousseau? 

Gabrielle Radica – A propriedade é, por sua vez, o fundamento da liberdade civil (se eu não tenho do que me sustentar, eu não posso ser um cidadão livre, já que tenho uma dívida com aquele que me compra) e a razão pela qual devemos limitar a liberdade natural de cada um através do controle a posse de seus bens particulares. Mas, em realidade, não é questão, para Rousseau, de dizer que a liberdade seja realmente restringida, já que os futuros associados que preparam o contrato social buscam “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum à pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um unindo-se a todos não obedeça, portanto senão a si próprio e permaneça tão livre quanto dantes”. Este é o problema fundamental ao qual o contrato social remete a uma solução (eu cito Contrato social, 1,6). Cada um permanece tão livre quanto antes porque a liberdade natural é restringida, mas ela instaura uma nova liberdade, a liberdade civil. Vejamos o capítulo 8 do livro I do Contrato social: “Reduzamos todo este balanço a termos fáceis de comparar. O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e pode alcançar; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Para que não haja engano em suas compensações, é necessário distinguir a liberdade natural, limitada pelas forças do indivíduo, da liberdade civil que é limitada pela liberdade geral, e a posse, que não é senão o efeito da força ou do direito do primeiro ocupante, da propriedade, que só pode ser baseada num título positivo”.

Garantia de propriedade

Cada um sabe, dentro de um estado civil, que o fato de reduzir a sua própria liberdade de atentar contra a propriedade alheia contribui para que a sua propriedade seja também respeitada. Ora, ver a sua propriedade garantida, sob a condição de que ela seja suficiente para garantir a sua subsistência, é ver as condições de sua liberdade igualmente garantidas. Não é mais uma liberdade que permite tudo fazer contra o outro, mas uma liberdade que consiste em estar protegido de possíveis ataques desse outro.

IHU On-Line – Quais são as consequências da emergência da vida comunitária quando do surgimento do conceito de propriedade privada? 

Gabrielle Radica – A propriedade privada é sempre pensada por Rousseau com um conceito jurídico (um título positivo que não existia no estado de natureza e que somente o Estado é finalmente capaz de garantir), que engaja a relação do indivíduo com o Estado e lhe protege dos outros. É como uma realidade social que engaja, sobretudo, relações intersubjetivas de vontades, distinções, reconhecimentos, rivalidades e de exploração. Ou, por outro lado, também nos torna felizes e autossuficientes (como dentro do núcleo familiar de Clarens em A nova Heloísa). Contrariamente à Locke, que se interessou tão somente pelo primeiro aspecto sem querer prever o que as riquezas e as desigualdades excessivas poderiam causar de dano aos meios sociais, Rousseau sempre considerou a existência social da propriedade. Esse dois domínios não são excludentes em sua obra: a instauração da propriedade privada garantida pelo Estado deve prevenir os conflitos, mas o desenvolvimento excessivo das riquezas e de sua má distribuição não cessa de fazê-los renascer. O risco envolvido é que comecemos a auferir um preço aos homens como se fossem mercadorias, em vez de lembrar sempre que a propriedade privada está ao serviço da subsistência do indivíduo, e não das relações de força dentro da sociedade.

IHU On-Line – Como essas ideias são consideradas dentro do quadro jurídico atual?

Gabrielle Radica – O direito à propriedade tardou a ser integrado entre os demais direitos do homem (dignidade, liberdade, etc.). Não é somente em nível do reconhecimento jurídico da propriedade que Rousseau antecipa certas questões atuais, mas também em termos do que chamamos de políticas redistributivas. Ele exigia que cada homem tivesse um pedaço de terra para subsistir. Isso não significa que ele pensasse propriamente em um Estado-providência, mas em um Estado igualitário com o compromisso da subsistência de todos. Em sequência a isso, cada um deve trabalhar por si a fim de garantir essa subsistência. Porém, as condições econômicas mudaram. Sabendo que aquele que procura trabalho e boa vontade nos dias de hoje nem sempre encontra isso; existem alguns sistemas de subvenção sociais como a RMI, (Revenu Minimum d’Insertion), na França, que impede as pessoas de caírem em uma condição de miserabilidade inaceitável e que ainda as ajuda a se manter integradas dentro de uma rede mínima de relações sociais necessárias à sua existência. Nesse sentido nós fomos bem mais além do que Rousseau pensava. Entretanto, se as intenções são de proteger os indivíduos contra uma dessocialização extrema a fim de que não percam a sua humanidade, nesse ponto podemos considerar que a inspiração para programas desse tipo é bastante roussoniana.

IHU On-Line – Quais sãos as contribuições de Rousseau para a instauração da democracia?

Gabrielle Radica – Rousseau não é um defensor da forma governamental da democracia: quando o povo é, por sua vez, legislador e executor das leis, como era o caso na antiga Atenas. Existe um risco de confusão entre os poderes, e as advertências de Montesquieu no Espírito das leis (XI) não são esquecidas por Rousseau. Vejamos agora o capítulo 4 do livro 3 do Contrato social: “Quem faz a lei sabe melhor que ninguém como deve ser ela executada e interpretada. Parece, pois, que não se poderia ter melhor constituição que essa em que o poder executivo está unido ao legislativo; mas é justamente isso que torna esse governo sob certos aspectos insuficiente, uma vez que as coisas que deveriam ser diferenciadas não o são, e o príncipe e o soberano, sendo a mesma pessoa, não formam, por assim dizer, senão um governo sem governo. Não é conveniente que quem redija as leis as execute, nem que o corpo do povo desvie a atenção dos alvos gerais para concentrá-la nos objetos particulares. Nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados nos negócios públicos; e o abuso das leis por parte do governo constitui um mal menor que a corrupção por parte do legislador, continuação infalível dos alvos particulares. Então, alterado o Estado em sua substância, toda reforma se torna impossível. Um povo que jamais abusaria do governo também jamais abusaria da independência; um povo que sempre governasse bem não teria necessidade de ser governado.”

Protagonismo do povo

Entretanto, Rousseau pode ser considerado como um pensador da democracia devido ao seu pensamento original e corajoso acerca do tema da soberania popular. O governo é encarregado da execução das leis, isso é correto, mas o soberano se encarrega de sua confecção e validação. Ora, o soberano não é outro que o povo. Quando Rousseau afirma que uma lei que o povo não tenha ratificado não é efetivamente uma lei, ele tende a dar a esse povo um poder político fundamental que ele supõe inalienável e, nesse sentido, ele pode ser considerado como um promotor da democracia. Não é, portanto, a redação das leis que cabe ao povo, mas sim a sua validação, a sua autorização e a sua aceitação: nisso o povo possui um papel-chave de legitimação do poder. Se a ele não cabe entrar nos detalhes técnicos das relações políticas, a ele cabe, sem dúvida, permanecer sempre como a preocupação primeira da política, ou seja, o sujeito político fundamental.

IHU On-Line – Qual é a importância de Rousseau dentro do contexto filosófico do Iluminismo? 

Gabrielle Radica – A sua importância é singular no século XVIII: como os seus contemporâneos, Montesquieu, Voltaire, Diderot, d’Alembert , etc., Rousseau usa de sua razão e não se curva perante argumentos de autoridade. Nesse sentido, ele é um pensador das luzes, que critica os poderes estabelecidos, as superstições (ver A profissão de fé do vigário Savoyard e as Cartas escritas da montanha). Igualmente o seu lugar é singular, pois ele vai mais longe que esses autores e, por vezes, os critica. De certa forma, Rousseau decepcionou os seus contemporâneos Voltaire e Diderot pelo fato de que ele não foi um combatente radical contra a Igreja. Desconfortável dentro da atmosfera ateísta que reinava nos salões parisienses que ele frequentava, ele preferiu romper com os “filósofos esclarecidos” para tentar achar uma posição religiosa mais próxima de suas convicções. Voltaire lhe repreenderá amargamente no sentido de que Rousseau teria utilizado uma magnífica argumentação contra as religiões positivas para finalmente se voltar à religião cristã, que está no texto que fecha a Profissão de fé: “Confesso-vos também que a santidade do Evangelho é um argumento que me fala ao coração, e que lamentaria mesmo ter alguma objeção a fazer-lhe. Olha para os livros dos filósofos com toda a sua pompa; como eles são pequenos ao lado deste! É possível que um livro tão sublime e tão simples seja obra dos homens? E que aquele, cuja história nos conta, seja apenas um homem?”

Rousseau se esforça para não tomar nenhum partido, seja o dos filósofos, da igreja ou dos antifilósofos. E se isso não o impede de vê-lo como um autor iluminista, explica por que ele teve problemas com os seus contemporâneos, que teriam preferido que ele escolhesse de forma mais acentuada o seu campo de inserção. Além disso, a posição de Rousseau é a de um pensador intransigente, que foi mais longe que Diderot ou Voltaire no domínio político e social. Se esses últimos protestam contra a ordem social e política do antigo regime e os privilégios da nobreza, é porque querem inserir outros critérios de mérito àqueles do sangue e do nascimento: é a recompensa dos talentos que eles reivindicam contra os privilégios imeritórios de sua sociedade. Ora, Rousseau sequer colocou em questão essas noções, ele disse, de forma mais simples e radical que seria a humanidade de cada um que ele desejaria colocar em valor e apresentar como um título suficiente para ser levado em consideração. Ele toma sempre o partido do povo e dos mais desfavorecidos, o partido de cada um, independente de seu talento. A sua reivindicação sobre a igualdade fundiária dos homens é o que mais certamente explica a sua incompatibilidade com Voltaire, que o chamaria de “mendigo”.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum outro aspecto não questionado?

Gabrielle Radica – É preciso um forte empenho para descobrir todos os aspectos da obra de Rousseau e não somente os aspectos jurídicos, sociais e políticos que foram tema das perguntas apresentadas. O Emílio e a Nova Heloísa, assim como as Confissões, são obras muito importantes para uma compreensão mais completa do seu pensamento e que complementam igualmente a parte política e jurídica, efetuando assim uma correspondência intertextual mais enriquecedora.

 

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