Edição 415 | 22 Abril 2013

Modernidade política e ilusão de sociedade

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Márcia Junges | Tradução de Cláudio Souza

O pensamento político de Rousseau se organiza em torno de três grandes proposições fundamentais, e a conjunção entre elas estrutura a modernidade política, frisa Florent Guénard. Esse pensador modernizou a definição de democracia, ultrapassando seu sentido clássico

Somos coletivamente responsáveis por nossa liberdade e por “aquilo que nos acontece em nossa história e é necessário que abandonemos certos refúgios que nos alienam de nossas responsabilidades”. A afirmação é do filósofo francês Florent Guénard na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. E acrescenta: “Rousseau também nos mostra que a existência do corpo político se assenta sobre efeitos sociais que não são naturais. A modernidade de Rousseau se situa em grande parte dentro de sua concepção do que é uma sociedade. Se ele critica a sociedade de seu tempo, é porque a seus olhos ela não é mais do que uma ilusão de sociedade”. O que nós classificamos hoje como democracia, Rousseau apontava como república. “Para ser livre, o povo deve, portanto, ser autor das leis”, acentua Guénard. “Para que a democracia continue a existir, é preciso haver uma paixão pelo interesse público, isso quer dizer mais precisamente uma vinculação constante naquilo que nos dá as condições para a nossa liberdade”. O entrevistado fala também sobre o “adversário privilegiado de Rousseau”, Thomas Hobbes, e retoma o que ocorreu por ocasião do refúgio de Rousseau na casa de David Hume, na Inglaterra.

Florent Guénard é professor do Centro Atlântico de Filosofia da Universidade de Nantes, na França, e diretor da revista La vie des idées, que pode ser acessada em http://www.laviedesidees.fr/. É autor de Le ressentiment, passion sociale (Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2012), La religion, la liberté, la justice. Un commentaire des Lettres écrites de la montagne de Jean-Jacques Rousseau (Vrin: Paris, 2005). Rousseau et le travail de la convenance (Paris: Honoré Champion, 2004) e Jean-Jacques Rousseau, Anthologie de textes présentés et commentés (Paris: Hachette, 2001).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que medida Rousseau ajudou a construir a base intelectual da sociedade em que vivemos, sobretudo em termos políticos?

Florent Guénard – Podemos considerar que o pensamento político de Rousseau se organiza em torno de três grandes proposições fundamentais e que é a conjunção entre essas proposições que estrutura a nossa modernidade política. Primeiramente, Rousseau aponta que somos coletivamente responsáveis por nossa liberdade . Nós somos, com efeito, responsáveis por aquilo que nos acontece em nossa história e é necessário que abandonemos certos refúgios que nos alienam de nossas responsabilidades. Segundo Rousseau, não podemos, de fato, imputar o mal nem a Deus nem a natureza. Para aqueles que, como Voltaire, consideram que o mundo é mau porque as catástrofes são numerosas, Rousseau responde que nós vivemos bem no melhor dos mundos possíveis e que o mal é obra nossa. Um tremor de terra, como aquele que aconteceu em Lisboa no ano de 1755, não é propriamente uma catástrofe, já que ele aconteceu em uma cidade, produto da atividade humana, em que os imóveis que lá estavam desabaram sobre a população, mas não podemos culpar a natureza por isso.

Para aqueles que consideram que nós somos naturalmente maus, Rousseau responde que as nossas paixões naturais não nos inclinam para a agressão, que o desejo de conservação não é a raiz da maldade e que essa não seria natural; muito pelo contrário, ela é proveniente das relações sociais e do orgulho que força as comparações entre os seres humanos. Mesmo que na idade moderna tenhamos assistido o triunfo do despotismo, a nossa história não está de forma alguma inscrita dentro de nossas tendências naturais, mas ela é contingente e circunstancial sendo, portanto, passível de correção.

Rousseau também nos mostra que a existência do corpo político se assenta sobre efeitos sociais que não são naturais . A modernidade de Rousseau se situa em grande parte dentro de sua concepção do que é uma sociedade. Se ele critica a sociedade de seu tempo, é porque a seus olhos ela não é mais do que uma ilusão de sociedade. Os indivíduos se reúnem apenas pela força daqueles que lhes privam da liberdade, ou seja, os déspotas: essas sociedades não são para Rousseau mais do que manadas, agregações, e não associações. Para que haja uma sociedade, é preciso haver um ato de vontade, e não um constrangimento exercido pela força. Mas isso não é suficiente: não podemos fazer uma sociedade simplesmente a partir de um ato de vontade. Ou, mais precisamente, este ato de vontade não pode surgir apenas de um cálculo de interesses. Uma sociedade não é um conjunto de seres que decidem viver juntos porque têm necessidade uns dos outros. Uma sociedade não pode ser exclusivamente uma esfera de trocas. É preciso que ela tenha, para ser realmente uma sociedade, impactos sociais e paixões comuns que lhe outorguem a sua unidade.

Virtude pública

Enfim, Rousseau afirma que a democracia é uma paixão tanto quanto uma organização institucional . Rousseau modernizou a definição de democracia indo além de seu sentido clássico (o governo do povo para o povo). O regime da liberdade é a república, conhecida como regime da soberania popular. E o que nós chamamos hoje democracia é o que Rousseau chamava república em seu tempo. Para ser livre, o povo deve, portanto, ser autor das leis. Mas isso não é suficiente para garantir a liberdade e Rousseau sabe que esta não existe, ainda mais quando os interesses particulares se sobrepõem ao interesse geral. Essa ameaça afeta todos os cidadãos (notadamente quando estes preferem os negócios privados e o comércio mais do que os interesses públicos). Ela atinge mais especificamente os membros do governo que são constantemente tentados, já que ocupam uma posição de poder e podem desviar, para interesses próprios, as forças do Estado. Para lutar contra essas tendências, Rousseau apela à virtude pública: é preciso nos sentir ligados ao corpo político e que nós compreendamos que somos ligados a ele pela nossa existência e o nosso bem estar, e que, em consequência, o interesse geral não se oporia ao nosso interesse particular. Para que a democracia continue a existir, é preciso haver uma paixão pelo interesse público, isso quer dizer mais precisamente uma vinculação constante naquilo que nos dá as condições para a nossa liberdade.

IHU On-Line – Qual a concepção de “estado de natureza” contido dentro do Discurso sobre as origens e fundamentos da desigualdade entre os homens?

Florent Guénard – Em relação ao estado de natureza, tal como ele é teorizado no Discurso, Rousseau afirma que ele não existe, que ele jamais existiu e que, sem dúvida, ele não existirá jamais. Trata-se, segundo ele, de uma hipótese teórica que tem duas grandes funções. De uma parte, ela permite que ele se afaste da filosofia política de seu tempo, mais precisamente a filosofia jusnaturalista que, aos olhos de Rousseau, construiu um discurso político justificando a ordem estabelecida a partir de uma falsa concepção do “estado de natureza”. De outra parte, ela permite a Rousseau afirmar dois grandes princípios a partir dos quais é preciso compreender a nossa existência política. O primeiro é que nós somos naturalmente bons. Isso não significa que tenhamos um senso natural da justiça, ou do bem, mas que as nossas tendências naturais não nos predispõem à agressão. Voltaremos a isso mais adiante. O segundo é que a nossa sociabilidade não é natural. Rousseau mostra que nós não temos, em um estado de natureza, nem a necessidade de uma sociedade (nossas necessidades podem ser providas sem que haja necessariamente uma relação uns com os outros), nem o desejo de uma sociedade (os sentimentos apenas vêm do hábito de vivermos juntos, eles não resultam de uma espécie de inclinação geral que nós poderíamos ter a respeito daqueles a qual reconhecemos como semelhantes).

Desses dois princípios, é preciso concluir de que nada predispunha o homem a sair do “estado de natureza”. Esse é estável em si mesmo e não é ultrapassável sob o pretexto de que a vida natural é ameaçadora e miserável (é o que pensa Pufendorf ), nem sob o pretexto de que os indivíduos nesse estado vivem em uma situação de guerra (essa é a concepção de Hobbes). É preciso, portanto, para concluir minimamente, que o estado civil é contingente, e que a forma pela qual nós formamos nossas instituições resulta tão somente de nossas decisões.

IHU On-Line – Em que sentido a concepção de “estado de natureza” se opõe ao pensamento de Hobbes?

Florent Guénard – Sem dúvida, Hobbes é o adversário privilegiado de Rousseau. Existem, ao menos, duas razões para isso. Em primeiro lugar, porque Hobbes justificou o absolutismo contra o qual o sistema de pensamento rousseauniano se desviou inteiramente. Em seguida, porque, paradoxalmente, Rousseau tem bastante em comum com Hobbes. Eles partilham notadamente a ideia de que a sociabilidade não é natural, que o homem não é como pensa Grotius , Pufendorf ou Locke , predisposto à sociedade. Concluindo, eles se opunham ao aristotelismo político moderno. É o que leva Rousseau a um julgamento contrastante a Hobbes: esse, segundo Rousseau, viu muito bem as falhas das definições do direito natural moderno, mas não extraiu bons resultados de suas próprias definições. Ele viu muito bem, com efeito, que a lei natural não devia ser compreendida como imposição ao homem de deveres tão complexos que não se sabe bem como esse “homem da natureza” conseguiria lidar. Ele viu muito bem, igualmente, que o homem dentro do estado de natureza era conduzido pela necessidade de conservação de si mesmo. Apenas ele caiu no mesmo erro de todos aqueles que se interrogaram, dentro do jusnaturalismo moderno, sobre o estado de natureza: ele confundiu o que é natural e o que são derivações, o que é primitivo e o que é produto do estado civil. 

Sentimentos de compaixão

Hobbes não soube distinguir o amor de si (uma paixão natural e primitiva que visa a nossa conservação) e o amor-próprio (uma paixão derivada que nasce das relações intersubjetivas e que nos empurra sem cessar à comparação uns com os outros). Hobbes fez do estado de natureza um estado de guerra porque ele acreditava que, quando o poder político não regula as relações entre os indivíduos, esses são inclinados à agressão; porque eles cobiçam os mesmo bens, porque eles são inquietos pelo futuro e porque eles gozam de uma imagem, um espelho que lhes reflete a sua superioridade perante os outros indivíduos. Porém, isso não existe dentro do estado de natureza, segundo Rousseau: as relações naturais entre os homens são plausíveis porque não há nenhuma razão em pensar que a satisfação das necessidades os pressione em direção a uma rivalidade, nem que nós sejamos inclinados para essa situação em torno da satisfação de paixões puramente sociais. E acrescenta que, mesmo que haja rivalidade dentro do estado de natureza, essa será largamente ponderada por sentimentos naturais de compaixão que todo o ser humano sensível experimenta.

IHU On-Line – A partir das ideias rousseaunianas, como se dá a passagem do estado natural para o estado civil, e o que move essa mudança?

Florent Guénard – A saída do estado de natureza apresenta duas questões, as quais é preciso destacar: ela é contingente e também progressiva. Rousseau, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens se propõe a apresentar os princípios de uma história conjuntural da humanidade. É uma história, precisamente, porque atenta para as mudanças sucessivas que alteraram a natureza humana a fim de não confundir, como o conjunto de pensadores do direito natural moderno, o que é primitivo e o que é artificial. Dessa história, Rousseau vai dizer que ela é contingente: nós poderíamos permanecer no estado de natureza, já que esse não possui nenhuma contradição interna. O que nos levou, então, a sair disso? A resposta de Rousseau é porque somos passíveis de aperfeiçoamento. Dito de outra forma, temos em nós a possibilidade de desenvolver as nossas faculdades se as circunstâncias assim exigirem. Disso podemos deduzir que, se o estado de natureza cessou, é porque as circunstâncias naturais mudaram. É o que Rousseau explica no começo da segunda parte do Discurso: que é preciso pensar que o desenvolvimento demográfico, juntamente com as mudanças climáticas, modificaram as condições naturais, e que foi preciso, em resumo, que os homens se reagrupassem e evoluíssem.

Felicidade sobre a desgraça alheia

Entretanto, a passagem entre o estado de natureza e o estado civil não se fez de uma forma bruta. O estado civil se constrói sobre a propriedade da terra e Rousseau nos mostra que é possível a concepção de um estado selvagem, no qual os homens se reúnam em cabanas, formem família e uma sociedade, sem que existam instituições políticas que regulem as relações intersubjetivas – e para isso ele se valeu de confirmações empíricas, baseadas no relato dos viajantes que descreveram os habitantes da África e da América meridional.

Rousseau também vai dizer que esse estado se inscreve como a melhor idade que o homem já conheceu, visto que é intermediária entre um estado de natureza puro, onde o homem ainda não se constituiu inteiramente e o estado civil, onde as desigualdades são tais que nós construímos a nossa felicidade em cima da desgraça alheia.

IHU On-Line – Por que o Contrato social é conhecido como “A Bíblia da Revolução Francesa?”

Florent Guénard – Esta questão é mais complexa do que parece. É verdade que os jacobinos  disseram que foram inspirados em Rousseau e que a Revolução Francesa celebrou largamente esse filósofo. Robespierre , particularmente, se fez defensor da obra de Rousseau, o único segundo ele, entre os pensadores iluministas a ter dado os princípios favoráveis à liberdade. Entretanto, nada nos prova que a obra de Rousseau seja um pensamento revolucionário dentro de um senso estrito. Numerosos pensadores que, durante e depois da Revolução Francesa, criticam a doutrina dos jacobinos tiveram muito cuidado em atribuir isso a Rousseau. Burke, por exemplo, denuncia a influência de Rousseau sobre a Revolução, mas mostra que os jacobinos tomaram a sua vida como modelo de perfeição, dedicando-lhe um culto pessoal bem mais do que se inspirando em sua obra. Constant  opõe a clarividência de Montesquieu, sensível às diferenças históricas, à sistematicidade metafísica de Rousseau, mas pondera largamente a influência desse último sobre o pensamento dos jacobinos: a confusão entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos é menos imputável à Rousseau que a seus sucessores, Mably principalmente.

Pensador republicano

Tocqueville , enfim, concentra seus ataques sobre os fisiocratas, responsáveis, a seus olhos, do que foi feito na França em termos de administração pública e menciona Rousseau apenas de passagem em uma observação anedótica sobre o estilo da filosofia iluminista. Esses julgamentos contrastantes são indícios que há, dentro da obra política de Rousseau, uma complexidade que dificilmente se permite a certos reducionismos. Assim, é incontestável que Rousseau, defensor da soberania popular, mais ainda, da igualdade política, social e econômica, é aquele que irá teorizar mais radicalmente o fim do antigo regime, e a necessidade de acabar com a realeza. Rousseau é, nesse sentido, um pensador republicano, pertencente a esta tradição de pensamento redescoberta por Maquiavel e que moderniza o republicanismo renascido, adaptando-o ao seu tempo e anexando uma crítica social de grande envergadura. 

Mas Rousseau não é um pensador do ato revolucionário, que é algo do qual ele diverge fortemente. A razão principal disso é que ele julga que nós não podemos instaurar instituições novas que façam uma abstração da história de uma nação, de seus costumes, de suas tradições e da sua moral. Rousseau não defende o legalismo radical, que considera que podemos edificar instituições que serão idênticas, seja lá quais forem as situações. Ele defende a necessidade conveniente de leis e maneiras, sem as quais as leis não se conservam e a moral não pode ter nenhuma correção. Dito de outra forma, para Rousseau, um ato revolucionário não é político, convencionando que a política consiste justamente na forma como é descrita nos livros II e III do Contrato social, compreendendo a adequação entre as instituições e as situações.

IHU On-Line – Aconteceu, quando Rousseau se refugiou na Inglaterra na casa de David Hume, alguma troca intelectual entre eles?

Florent Guénard – Rousseau lia pouco e mal a língua inglesa. O seu conhecimento dos pensadores ingleses, de maneira geral, era mediado pelas traduções francesas que estavam disponíveis no século XVIII. A isso é preciso acrescentar que Rousseau conheceu Hume em circunstâncias particulares. Em 1766 ele decide ir para a Inglaterra, aceitando o convite de Hume, a fim de escapar das perseguições contra ele desde a publicação de Emílio, ou da Educação. O episódio, como sabemos, foi bem turbulento. Rousseau e Hume não se entenderam e Rousseau o acusa de lhe aprisionar mais do que protegê-lo. A controvérsia se estendeu por algum tempo e, de um lado a outro do canal da mancha, pessoas escreviam ora defendendo Rousseau, ora Hume. Tais indisposições pessoais prevaleceram manifestadamente sobre uma possível confrontação de sistemas filosóficos. A isso, é preciso acrescentar que em 1766, Rousseau já tinha firmemente lançado as bases de seu sistema de pensamento através do Discurso e de Emílio. O que sabemos é que esse episódio reforça, em Rousseau, a ideia de um complô existente contra ele, na França, em Genebra e na Inglaterra. Ele já havia sustentado em Rousseau, juiz de Jean Jaques, escrito a partir de 1772, essa teoria a qual ele chama de “complô”. Essa, longe de ser somente uma projeção paranoica, tem, em Rousseau, uma importante conceituação maior. Ela é a representação mais adequada das contradições internas da sociedade, já que estabelece laços mais indissolúveis (os conspiradores se unem dentro do complô por medo uns dos outros) que aqueles que podem ser percebidos pelos sentimentos. Então, temos o medo de sermos denunciados se o complô falha; temos o medo também de nos retirarmos porque os nossos companheiros se tornariam, então, nossos inimigos.

IHU On-Line – No fim da vida, Rousseau se consagrou à botânica, colocando-se à parte do mundo que o havia rejeitado. Hoje o autor é festejado pelos 300 anos de seu nascimento. O que a idade contemporânea pode aprender com esse “filósofo andarilho?”

Florent Guénard – Rousseau se dedicou à botânica mais por diversão, como ele escreveu em sua obra Os devaneios do caminhante solitário, mas também ele foi um dedicado estudioso de história natural, algo fartamente documentado na nomenclatura de sua obra. Podemos mesmo considerar que Rousseau via na botânica não apenas algo que o fazia se distanciar dos homens, mas um modelo de ciência que escapava das críticas que ele formulou contra as ciências no Discurso sobre as ciências e as artes. Ele sublinha, nesse discurso, que nós sempre abusamos das ciências e que elas têm efeitos sociais indesejáveis (elas aumentam o amor-próprio e incitam a ociosidade). Com a botânica, Rousseau deseja reconciliar a virtude (moral) com a ciência: a botânica, considerada cientificamente como observação da ordem da natureza, é uma atividade que se propõe a ser lúdica em seus Devaneios. Nessa obra, a posição de Rousseau é paradoxal: ele se retira do mundo, mas sem deixar de aspirar à sociabilidade. É, sem dúvida, isso que é preciso reter atualmente: somos o que as nossas relações fazem de nós, e Rousseau, buscando se colocar a par dos homens, nos mostra o esforço espiritual que é preciso ser feito para esse objetivo e ele nos ensina isso de forma bastante radical.

IHU On-Line – Quais as relações entre religião e política na obra de Rousseau?

Florent Guénard – Dentro da obra de Rousseau, política e religião possuem relações complexas que engendram certo número de tensões. Entre elas, três são particularmente importantes. Em primeiro lugar, Rousseau, um pensador contratualista, se dispõe a mostrar que a realeza não possui um fundamento divino, mas que ela é de origem humana. Em matéria de poder político, os deuses não têm palavra. Portanto, quando estão em questão as fundações de um povo, Rousseau recomenda ao legislador de fazer falar os deuses que devem aparecer como os autores das leis. Em segundo lugar, a religião natural do Vigário Savoyard se acomoda com as leis dos governantes, postas em prática, que prescrevem de cultos em função das convenções locais. Portanto, o contrato social, no capítulo consagrado à religião civil, condena o teísmo puro, o cristianismo do evangelho e a religião natural, estimando que ela apenas corrompe o espírito social, já que a pátria do cristão não é desse mundo. Enfim, se a religião natural conduz à prática dos deveres do homem, como é estabelecido na Profissão de fé, também deve conduzir aos deveres de cidadão, como é mostrado na primeira parte das Cartas escritas da montanha e o mesmo vale para o ateísmo: com efeito, Wolmar, o chefe de família descrito em A nova Heloísa é ao mesmo tempo virtuoso e bom cidadão.

Autonomização da política

Rousseau defende a soberania popular; para isso acontecer, o povo deve consquistar a sua autonomia. Ele deve inevitavelmente o fazer contra tudo o que reduz a sua autonomia ou que a ameace. Essa conquista não é outra coisa senão separar a política (de onde pode vir a liberdade) e a religião (onde a crença se combina com formas mais ou menos rígidas de submissão). Para Rousseau, isso é autonomizar a política chamando pela decisão livre do povo de fazer as leis. Entretanto, essa autonomização não opera de forma alguma como um distanciamento radical da religião, como se a política pudesse se organizar sem ela, como se a religião pudesse não ter nenhuma consequência política. Ao contrário, podemos mesmo dizer que, se a constituição de um corpo político onde o povo é soberano exige certo afastamento do religioso, o religioso, por sua vez, parece ser necessário para a conservação do “corpus político”. É notadamente por esse fim que Rousseau, no último capítulo do Contrato social, pensa na possibilidade de uma religião civil.

IHU On-Line – Para Rousseau, como poderíamos pensar a questão da religião civil e suas múltiplas manifestações dentro dos Estados contemporâneos, como, por exemplo, os Estados Unidos?

Florent Guénard – É verdade que nos Estados Unidos, nós podemos considerar, de acordo com Robert N. Bellah, que existe uma religião civil, já que esperamos de uma pessoa pública que ela professe uma espécie de fé pública. Nós teremos também, nesse Estado, uma passagem da lei confessional para um credo político. Dentro dessa perspectiva, podemos, com efeito, pensar que tal exercício civil da religião está próximo do que Rousseau teorizou no último capítulo do Contrato social. Entretanto, é preciso compreender bem a intenção de Rousseau nesse capítulo. Ele parte de uma análise política das religiões históricas. Ora, desta análise ele vai concluir que as religiões pagãs servem para ligar as pessoas às instituições de seu país, já que todas as religiões eram particulares, próprias de um determinado povo. Porém, elas tinham por efeito alimentar o fanatismo e a intolerância; elas eram também, segundo Rousseau, fundadas largamente sobre a superstição. A religião cristã, concebida como direito divino natural, ou como um teísmo verdadeiro, não é aquela do cidadão, como são as religiões pagãs, mas aquela do homem. Ela é universal, não vinculada a um único país, mas a serviço, segundo Rousseau, dos puros deveres da moral.

Entretanto, ela apresenta um defeito político maior. Ela não vincula os indivíduos às instituições de Estado e ela não contribui a fazer cidadãos. Mais ainda, ela os tira do espírito social em direção aquilo que Rousseau chama de “as coisas do céu”. É preciso compreender a invenção da religião civil através dessa dupla crítica das religiões pagãs e da religião cristã, considerando que as primeiras pertencem ao passado, e que a segunda é a religião moderna.

Reconciliação entre política e religião

Dentro dessa perspectiva, a religião civil apresenta uma dupla vantagem para Rousseau; de uma parte, ela permite descartar as religiões históricas, e em particular o cristianismo, que não constrói bons cidadãos; de outra parte, ela permite vincular um povo às suas instituições. E ela faz ambas as coisas evitando a superstição das antigas religiões (pois ela não impõe nenhum cerimonial) e usando, como vantagem política, o desinteresse do cristão: a vida após a morte auxilia no sacrifício pelas leis, pois essas são santificadas. Para a religião civil, nós alcançamos assim a reconciliação entre a política e a religião de forma mais completa. Uma serve de instrumento para a outra sem contradições na busca de autonomia, que é o objetivo da política. Ela a serve, dando ao soberano uma relativa garantia que os deveres serão cumpridos por todos. O engajamento é solene em público e cada um afirmando religiosamente o seu amor pelas leis, todos serão mais propensos a fazer o mesmo.

IHU On-Line – “Maquiavel, fingindo dar lições aos oríncipes, deu grandes lições ao povo”, disse Rousseau sobre Maquiavel. Como podemos compreender o diálogo entre Rousseau e os pensadores que lhe permitiram construir os seus conceitos políticos?

Florent Guénard – Rousseau leu bastante os filósofos, como ele mesmo apontou em sua obra: os antigos e também os modernos, e não parou, uma vez que entrou na carreira das letras, de ler e fazer trocas com a filosofia de seu tempo. Rousseau teve também uma consciência histórica sobre aquilo que escreveu, sabendo muito bem da ruptura que introduziu no pensamento político. Quando ele retoma um ou outro desses conceitos é geralmente para modificar o seu uso corrente. Assim, se nós podemos legitimamente vê-lo como um pensador republicano, que defende como Maquiavel o fazia antes dele, a liberdade política, é preciso igualmente ver de que maneira ele modifica essa tradição de pensamento ligando-a com as teorias da soberania (Bodin , Hobbes). Da mesma forma, se ele se inspira em Montesquieu, na qual ele não cessa de celebrar o gênio, é imediatamente para dizer que a obra deste é inconclusa, que se contentou em estudar as legislações positivas, enquanto que seria preciso anexar a esse estudo uma compreensão do direito político. De maneira geral, é com os pensadores do jusnaturalismo moderno que o diálogo se fez mais constante. Rousseau teve marcadamente a consciência das insuficiências desse paradigma que estrutura o pensamento político desde o início do século XVII. Todos os seus conceitos maiores (soberania, contrato, povo, governo, associação, etc.) são forjados no sentido de ultrapassar os impasses teóricos que limitaram os pensadores jusnaturalistas. Mas não se trata a seus olhos de uma simples querela de filósofos. Ele acha que todos esses pensadores tendem a legitimar a ordem estabelecida e, por assim dizer, a desigualdade política. Para Rousseau, o discurso filosófico não é sem efeito em relação à organização das relações sociais. Ele legitima a dominação, enquanto ele se preocupa em mostrar que ela é ilegítima e que a sua reversão procede da justa compreensão do direito natural dos povos.

IHU On-Line – Em que sentido a concepção apriorística de Rousseau da bondade humana, que foi corrompida pela vida em sociedade, constitui o ponto de partida de seu sistema de pensamento político?

Florent Guénard – Rousseau sublinha muito bem que o primeiro princípio de seu sistema de pensamento, sobre o qual ele jamais modificou, é a bondade natural do homem. Mas nós não podemos dizer de tal princípio que ele é a priori, ao contrário, ele explica aos seus oponentes (notadamente ao arcebispo de Paris, Beaumont, que fez uma condenação de Emílio) que esse princípio é mais correto do que o seu oposto, aquele que preconiza o mal e o pecado original e que a Igreja transformou em dogmas. Esses dogmas não explicam a maldade, ou mais ainda, como observa Rousseau, eles se contentam em dizer que o homem é hoje mau porque ele assim o era em sua origem. A explicação é, portanto, estritamente tautológica. Ora, Rousseau não se contenta com tal explicação; ele faz a genealogia da maldade, mostrando como essa vem ao homem através das paixões do amor-próprio. A esta genealogia, Rousseau junta verificações empíricas oriundas da ciência de seu tempo (a história natural) ou descrições da vida selvagem. E também, em Emílio, a partir da observação da criança, que o princípio de bondade natural é plenamente validado. Esse princípio é o fundamento filosófico do sistema que é, por sua vez, metafísico : a bondade natural do homem participa da bondade natural do mundo. O “todo”, aos olhos de Rousseau, é perfeitamente ordenado. Não existe o “mal absoluto”, mas somente certos “maus particulares” que são devidos ao fato que nós somos mal governados. É igualmente um fundamento moral : ele autoriza uma moral dos sentimentos, da consciência, pois nossas tendências são retilíneas. Enfim, um fundamento político : se nós somos maus, é porque as nossas instituições não são adequadas, e cabe a nós reformá-las a fim de conquistar a nossa liberdade.

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