Edição 411 | 10 Dezembro 2012

Um transbordamento impossível de aprisionar

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Márcia Junges e Thamiris Magalhães

Em vez de se falar em rompimento com movimentos anteriores, Pedro Rogério pontua que o tropicalismo deve ser compreendido como um transbordamento, quando aconteceu uma reinvenção, uma mescla que resultou em riqueza cultural única

Para Pedro Rogério, o artista é uma espécie de sociólogo que faz leituras da sociedade e a reinventa. Isso se deu com o movimento tropicalista que, em diálogo com diferentes matrizes culturais brasileiras, se reapropriou delas, em claro estilo antropofágico, e as devolveu em forma de arte. Um dos maiores legados do tropicalismo foi manter uma postura política esclarecida. “Outras lições são deixar de lado o preconceito, estar aberto e permitir que as misturas aconteçam”, disse em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Ele tece aproximações entre esse movimento e o mangue beat, de Recife, sinalizando que a busca por um diálogo entre a cultura local, considerando-a relevante, além de lançar um olhar com interesse artístico e estético, misturando e fazendo com que ganhe notoriedade, são traços comuns. Pedro acentua a impossibilidade de se aprisionar a arte, a imaginação e a intuição: “Podem até prender as pessoas, mas suas ideias e sentimentos não podem ser controlados. As pessoas continuam fazendo sua arte. São perseguidas quando publicizam o que criam, e mesmo assim prosseguem fazendo”.

Graduado em Música pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, Pedro Rogério é mestre e doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará – UFC, onde leciona no Instituto de Cultura e Arte – ICA. É autor de Pessoal do Ceará: habitus e campo musical na década de 1970 (Fortaleza: Edições UFC, 2008) e um dos organizadores de Educação Musical: campos de pesquisa, formação e experiências (Fortaleza: Edições UFC, 2012).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como você define o tropicalismo?

Pedro Rogério –
O tropicalismo é a tradução musical de um momento de efervescência política e cultural do Brasil que ganhou notoriedade em todo o país. Ele foi muito difundido e influenciou toda uma geração. Para falar a verdade, até hoje vivemos influências benéficas desse movimento, assim como outros movimentos foram fomentados nesse mesmo período junto de intelectuais, porque se tratava não somente de um grupo de músicos, mas também de intelectuais que repensaram o valor estético, o significado da música, a maneira de ser e estar no mundo perante as coisas dadas naquele período.


IHU On-Line – Em que sentido o tropicalismo ainda exerce influência hoje?

Pedro Rogério –
Alguns temas tabus, a forma como ler o mundo e reinventá-lo são, ainda, algo que alimenta as reflexões dos intelectuais e artistas. Isso foi potencializado pela tropicália, mas remonta ao Movimento Modernista de 1922 , com a ideia de antropofagia, e de não negar e excluir nada, bebendo em todas as fontes. Há, assim, um transbordamento cultural. Não há rompimentos. Quando se estuda história da arte, normalmente se fala em movimentos que romperam com o movimento anterior. No tropicalismo, assim como no Clube da Esquina, há uma caracterização pelo transbordamento muito mais do que por ruptura. A ideia de cultura híbrida, de pensamento complexo, transdisciplinaridade, de poder dialogar e transitar nas diversas áreas é algo que os tropicalistas haviam se apropriado, quebrando barreiras para avançar na maneira de se relacionar com as coisas e o mundo, não tendo preconceito. Mas não se trata só de não ter preconceito, mas de ter uma postura aberta para reinventar a cultura brasileira, do ser brasileiro.


IHU On-Line – Qual foi o papel de Maria Bethânia na tropicália?

Pedro Rogério –
A força interpretativa de Maria Bethânia é algo muito característico, e ela faz isso cantando desde Fernando Pessoa até João do Vale, compositor do Maranhão. Assim como ela canta Pessoa e do Vale, ela canta Chico Buarque. Trata-se de uma intérprete, mas não no sentido técnico, com uma voz tecnicamente bem trabalhada. Seu forte, na verdade, é interpretar, trazer o sentimento e deixar transbordar as emoções. Quando Bethânia canta, a música ganha nova vida, é como se ela fosse uma coautora, compondo junto com a obra, e não simplesmente a reproduzindo. Nesse sentido, ela passou por vários estilos, gêneros e traz para dentro de sua obra um diálogo com vários cenários. Ela não se fecha em apenas um, e isso é tropicália.


IHU On-Line – Quando e como se deu o ápice da tropicália?

Pedro Rogério –
Penso que podemos nomear vários momentos para isso, mas menciono o lançamento do disco Panis et circenses, um verdadeiro marco do movimento. Contudo, é preciso pensar em outros momentos fundantes do tropicalismo. No processo histórico não dá para dizer exatamente a data de começo e fim de um movimento. Não há um começo e fim, e sim um processo que ocorre junto à redefinição do homem frente às novas tecnologias, como o fato de trazer as guitarras para dentro da música. Nos festivais universitários, por exemplo, não se tocava guitarra. Então, naquele momento usar uma guitarra já significava inovação. Isso tem um sentido novo: a maneira de se relacionar com o significado da música e o que ela representa simbolicamente. Então, não há um marco ou momento apenas.


IHU On-Line – Qual foi o impacto do AI-5) para o movimento do tropicalismo?

Pedro Rogério –
Esse impacto se deu em toda a sociedade. Como o movimento tropicalista era composto em grande parte por intelectuais, que não vão obedecer regras sem postura crítica, houve grande reação. Assim, o AI-5 provoca na sociedade, especialmente no âmbito universitário, nascedouro desse movimento e fonte de seu principal público naquela época e até hoje, um verdadeiro choque. Então, há uma reação forte contra o AI-5, e a bandeira da liberdade passa a ser o pano de fundo de praticamente tudo que se faz em arte no Brasil. O que é interessante é que os tropicalistas não ficaram presos à situação política, eles extrapolam isso, continuando a falar de amor e valorizando até a jovem guarda, que era tão criticada pelos políticos como se fosse um movimento alienado. Gil e Caetano não percebem dessa maneira: eles dizem que as pessoas podem continuar a falar de amor, apesar do golpe militar. Isso é algo que os caracteriza bem. Evidentemente, não é impensável que os tropicalistas não tivessem tido uma reação esclarecida e definida politicamente contra o AI-5, mas eles não ficam reféns disso. Eles se permitem continuar passeando por outros tempos e temas.


IHU On-Line – Como os cantores e pioneiros do tropicalismo conseguiram escrever suas músicas num período de ditadura militar, com censuras, prisões, fechamento e proibições que vieram com o AI-5?

Pedro Rogério –
Por mais que se proíba, a arte, a imaginação e a intuição são invisíveis e não aprisionáveis. Podem até prender as pessoas, mas suas ideias e sentimentos não podem ser controlados. As pessoas continuam fazendo sua arte. São perseguidas quando publicizam o que criam, e mesmo assim prosseguem fazendo. Gilberto Gil e Caetano Veloso continuam a criar a partir de Londres, onde realizaram uma produção fantástica. Eles fizeram disso uma fonte de inspiração, inclusive. Claro que não queremos que o AI-5 se repita para que tenhamos fonte de inspiração. Longe disso. A fonte de inspiração não era o AI-5, mas a postura, os sentimentos, a maneira, a comunicação, que é vida. Quem é vivo se comunica. Não é comum um artista produzindo para ele mesmo dentro de um quarto. Um artista produz para que sua arte circule. Barrar isso é impossível.


IHU On-Line – Acredita que ainda hoje poderia haver um movimento parecido no Brasil? Por quê?

Pedro Rogério –
Algo parecido esteticamente creio que não. O que sempre surge é essa postura de querer um mundo melhor, que é o que todos almejam. Em relação às décadas de 1960 e 1970, vivemos uma configuração muito diferente do ponto de vista tecnológico, político e de interações humanas. O que podemos pensar como princípio de vida das pessoas é que elas se proponham a colaborar com um mundo que se reinventa. A reinvenção é fundamental. Lenine é exemplo disso. É um cara que se reinventa dentro da própria obra. É o caso do Pato Fu, com sua música de brinquedo. Caetano hoje é totalmente diferente do que era em seus começos, como é o caso de Gil e Tom Zé. É o caso, ainda, de Bethânia, Gal Costa, Os Mutantes e Rita Lee. Todos esses artistas se reinventaram, o que é muito saudável. Essa ideia de reinvenção no sentido de colaborar com uma leitura de um mundo real e dar uma colaboração para essa leitura é algo importante. O artista é uma espécie de sociólogo: ele faz leituras da sociedade e a reinventa.


IHU On-Line – Que lição o tropicalismo deixou para a contemporaneidade?

Pedro Rogério –
Penso que uma das grandes lições é essa reinvenção à qual acabo de me referir, mantendo uma postura esclarecida politicamente. Outras lições são deixar de lado o preconceito, estar aberto e permitir que as misturas aconteçam. A música mais brega que existe precisa ficar dentro daquele rótulo, ou existe algo ali do qual podemos nos reapropriar e fazer parte de um movimento de recriação da música, do cinema? É preciso deixar fluir o diálogo entre a música e a dança, o teatro e o cinema com as novas tecnologias. Isso os tropicalistas fizeram muito bem dentro do contexto em que viveram. Então, é preciso trazer a ideia da antropofagia, do transbordamento e, principalmente, de uma postura honesta no sentido de considerar o valor que as coisas têm dentro da sua obra, sem preconceito.


IHU On-Line – Que aproximações você faria entre o tropicalismo e o mangue beat, de Recife?

Pedro Rogério –
Acredito que buscar um diálogo entre a cultura local e considerá-la relevante, além de lançar um olhar com interesse artístico e estético, misturando e fazendo com que ganhe notoriedade é algo que é comum a ambos os movimentos. Por que o mangue beat reverberou no Brasil e em muitos lugares do mundo? Porque ele traz questões que são próprias do lugar e que traduzem os outros lugares também. O que fazemos aqui no Ceará tem muito a ver com o que o mangue beat pautou através da sua postura. Há, aí, uma relação muito próxima entre tropicalismo e o mangue beat, com uma valorização do local não para ficar preso a ele, mas para estabelecer um diálogo entre o regional e o universal. Os dramas humanos, as lutas, a valorização de si são coisas universais. O universal é algo que toca a todos.

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