Edição 411 | 10 Dezembro 2012

Tropicália, marginália e a erosão das fronteiras culturais

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Márcia Junges, Thamiris Magalhães e Pedro Bustamante Teixeira

Influência tropicalista pode ser sentida até hoje, mas o movimento não deve ser confundido com “mero ecletismo cultural”, frisa André Monteiro. Por vezes, velhos tropicalistas se dobram à “máfia do dendê”

Espécie de “neoantropofagismo” oswaldiano, o tropicalismo devorava a tradição cultural brasileira e realizava “uma incorporação crítica, tanto da cultura pop internacional e da comunicação de massas como de referências do alto modernismo literário e da vanguarda concretista dos anos 1950”. A afirmação é de André Monteiro, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Um dos grandes êxitos do movimento foi “ter conseguido entrar na indústria cultural, normalmente conduzida por mecanismos duros de homogeneização estético-comportamental, sem se deixar tragar pela redundância de suas órbitas viciadas”. Para Monteiro, a principal característica do tropicalismo é distender as fronteiras entre alta cultura, cultura de massa e cultura popular. Houve, ainda, uma ampliação dessa postura marginal nos anos 1970 naquilo que se define como “desbunde contracultural”. E provoca: “Antropofagia nada tem a ver com a frouxidão do ecletismo, com a indistinção do gosto alimentar. Dentro da lógica antropofágica, não é eticamente viável comer, por exemplo, Ivete Sangalo e arrotar Novos Baianos. O problema é que essa confusão, às vezes, é promovida pelos próprios velhos tropicalistas, quando se deixam dobrar pela “máfia do dendê” e pelos fascismos da indústria cultural”.

Graduado em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, é mestre e doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, com a dissertação A ruptura do escorpião – ensaio sobre Torquato Neto e o mito da marginalidade (São Paulo: Cone Sul, 2001) e a tese Incômodo e Movimento – um plano pirata. Nessa mesma instituição cursou pós-doutorado. Leciona na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e é autor de Ossos do ócio (São Paulo: Cone Sul, 2001).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira o senhor definiria o tropicalismo? Qual foi o grande êxito deste movimento? 

André Monteiro – A distensão entre as fronteiras das chamadas alta cultura, cultura de massa e cultura popular é o que define, a meu ver, de forma mais contundente, o movimento tropicalista brasileiro do final dos anos 1960. Como declarou Caetano Veloso, em entrevista a Augusto de Campos, incluída em Balanço da bossa e outras bossas, “O tropicalismo é um neoantropofagismo”. Rearticulando o discurso antropofágico modernista de Oswald de Andrade, o tropicalismo, ao mesmo tempo em que devorava a tradição cultural brasileira (do samba ao baião, de Carmem Miranda a Vicente Celestino), realizou uma incorporação crítica, tanto da cultura pop internacional e da comunicação de massas como de referências do alto modernismo literário e da vanguarda concretista dos anos 1950. Basta ver/ouvir, por exemplo, a letra da canção “Batmacumba”, de Gil e Caetano, gravado no antológico Panis et circencis (disco-manifesto gravado em 1968) para se ter uma ideia da síntese antropofágica tropicalista. Nela encontramos uma mescla de “macumba”, “Batman”, “iê- iê-iê” e “Obá” (orixá nagô feminino). A mise en page da letra da canção, por sua vez, é estruturada à maneira concretista, fundindo fundo e forma, já que se assemelha à asa de um morcego. 

Navegando entre o luxo e o lixo, para evocar o famoso poema concreto de Augusto de Campos, e rompendo com a dicotomia “integrados” versus “apocalípticos”, como diria Umberto Eco, o grande êxito do movimento tropicalista foi ter conseguido entrar na indústria cultural, normalmente conduzida por mecanismos duros de homogeneização estético-comportamental, sem se deixar tragar pela redundância de suas órbitas viciadas. De algum modo, tal como sonhara Oswald de Andrade, os tropicalistas conseguiram fabricar e oferecer à massa seu “biscoito fino”. 

IHU On-Line – Qual a diferença entre tropicália e a marginália? 

André Monteiro – Pode haver uma diferença, mas não uma oposição, entre tropicália e marginália. A própria expressão marginália foi cunhada no contexto do tropicalismo, já que é o título uma letra de Torquato Neto  musicada por Gilberto Gil. Nela encontramos, além de uma desconstrução explícita do discurso ufanista brasileiro, algo típico das canções tropicalistas, a imagem do poeta como aquele que, em sua “negra solidão”, assume um “comportamento desviante” na “tropical melancolia” da vida ordinária. A postura marginal, que nos anos 1970 vai se tornar um rótulo comum para se referir a muitas manifestações culturais, tais como “cinema marginal” e “poesia marginal”, já era uma bandeira que circulava no contexto do tropicalismo dos anos 1960. Basta lembrar a famosa frase “Seja marginal, seja herói”, criada por Hélio Oiticica e estampada em uma bandeira no antológico e “agressivo” show tropicalista que Gil, Caetano e os Mutantes realizaram na boate Sucata em outubro de 1968 (o show foi interrompido pela censura, que teria usado como pretexto justamente a frase da bandeira). A frase nos remete diretamente ao contexto simbólico do “Bólide Caixa 18 – homenagem a Cara de Cavalo”, obra criada por Oiticica em 1966 e que encarna o “mito da revolta”. Trata-se de uma caixa (sem tampa e com a parede anterior estendida ao solo) cujas faces internas apresentam, cada uma delas, uma fotografia de jornal do bandido carioca Cara de Cavalo morto pelos “homens de ouro” da Scuderie Le Cocq (a mesma fotografia, aliás, foi estampada na bandeira utilizada no já referido show tropicalista). Na foto, Cara de Cavalo aparece morto, estirado no chão e com os braços pendidos para os lados, causando uma impressão de crucificação. No fundo da caixa, há um saco plástico contendo pigmentos vermelhos, instalado sobre grades de ferro que compõem o fundo da caixa. Sobre o saco plástico, lê-se: “Aqui está, e ficará! Contemplai o seu silêncio heróico.” Como já disse o Waly Salomão, essa homenagem a Cara de Cavalo é autorreferente, sendo uma fala da resistência heróica do artista frente ao mundinho cooptador dos marchands, curadores, galerias e museus. A postura marginal será, de muitos modos, ampliada e, por vezes, radicalizada, nos anos 1970, com o advento do chamado desbunde contracultural.

IHU On-Line – O senhor acredita que ainda há raízes na contemporaneidade do tropicalismo na música e cultura brasileiras? Em que sentido? 

André Monteiro – Parafraseando Mário de Andrade, o tropicalismo instituiu, de vez, no contexto da música pop, o direito permanente à pesquisa estética. Tudo que se fez de experimental e inusitado na música popular brasileira, dos anos 1970 até hoje, de uma forma ou de outra, tem relação com os tropicalistas. Quando penso num Clube da Esquina, num Walter Franco, num Arrigo Barnabé, num Chico Science, num Fernando Catatau, penso que, por mais singulares que sejam esses personagens e seus contextos, há uma relação deles com as portas que foram abertas por Caetano, Gil, Tom Zé, Torquato, Capinam e os Mutantes. Nesse sentido, a existência do tropicalismo foi, e é, extremamente benéfica para a música brasileira de invenção produzida nos últimos 40 anos. 

Por outro lado, o tropicalismo se torna uma herança fraca quando sua mistura antropofágica passa a ser confundida, o que não é raro, com mero ecletismo cultural. Antropofagia nada tem a ver com a frouxidão do ecletismo, com a indistinção do gosto alimentar. Dentro da lógica antropofágica, não é eticamente viável comer, por exemplo, Ivete Sangalo e arrotar Novos Baianos. O problema é que essa confusão, às vezes, é promovida pelos próprios velhos tropicalistas, quando se deixam dobrar pela “máfia do dendê” e pelos fascismos da indústria cultural.

IHU On-Line – Como era vista, naquela época, a questão do desbunde, e a reação da esquerda a esse posicionamento? 

André Monteiro – Desde os anos 1960, havia uma divergência entre a esquerda tradicional e os tropicalistas que, de muitas maneiras, já praticavam o que, mais tarde, nos anos 1970, seria chamado de desbunde contracultural. Assumindo uma postura neoantropofágica, o tropicalismo se tornou uma voz muito singular no âmbito das discussões promovidas pelos principais grupos artísticos dos anos 1960 (CPCs, Teatro de Arena, Opinião, entre ouros), marcados por um discurso de “coesão nacionalista” e, ao mesmo tempo, de utopia revolucionária filiada ao marxismo ortodoxo. O tropicalismo se afastou do desejo, típico de certas posturas da esquerda moderna, de fazer do intelectual um guia das massas e/ou aquele que compreende a verdade do povo em sua totalidade. Ao mesmo tempo em que assumiam o Brasil como uma alegoria fragmentária e múltipla, os tropicalistas rejeitavam projetos macropolíticos interessados em “colonizar o futuro”, como diria Octavio Paz , e assumem atitudes micropolíticas interessadas em pensar o corpo, a sexualidade e transgredir os tabus comportamentais da cultura ocidental. Essa postura contracultural tropicalista será radicalizada no chamado desbunde contracultural dos anos 1970. O rock, o hippismo, as experiências com drogas, a “curtição” e a fruição do corpo serão vividos, nos anos 1970, como um “comportamento desviante” às normas do mercado, do estado e da moral familiar patriarcal.

É nesse ambiente pós-tropicalista de desbunde que surge, por exemplo, a chamada poesia marginal dos anos 1970, marcada por um ceticismo em relação aos projetos, tanto das vanguardas políticas como das vanguardas estéticas do alto modernismo. Ao mesmo tempo, essa poesia era sustentada por um apego ao corpo e à subjetividade. Interessava à poesia marginal desconstruir as fronteiras ente arte e vida e fazer da poesia uma vivência corporal do lúdico e do acaso cotidianos. Grande parte da sensibilidade poética contracultural dos anos 1970 esteve empenhada em criticar e dessacralizar o “caráter elevado” do artista e do próprio poema. Os poetas marginais desejavam “viver poesia”, e não apenas “escrever poesia”. Um “poemão” vivido a muitas mãos, como diria Cacaso. 

IHU On-Line – Qual o papel do jornalista, poeta e compositor Torquato Neto no movimento? 

André Monteiro – Torquato Neto foi importantíssimo para construir a medula e o osso do tropicalismo. Sua importância não se deu apenas porque foi um dos principais letristas do movimento, como também porque foi um de seus principais estrategistas. A letra da canção Geleia geral, escrita por ele, e musicada por Gilberto Gil, talvez represente o grande manifesto, o grande texto publicitário do tropicalismo. Além disso, Torquato, o anjo desafinado e torto do tropicalismo, fez a ponte entre a tropicália dos anos 1960 e a marginália dos 1970. Encarnou com intensidade o espírito da contracultura, participando, através de polêmicas jornalísticas, do chamado cinema marginal, influenciando grande parte dos chamados poetas marginais e, principalmente, concebendo um novo conceito de “poetar”. Para Torquato, ser poeta não era apenas sinônimo de uma experimentação verbal, e sim de uma ousadia vital, pronta a “ocupar espaço” e, perigosamente, fazer diferença no mundo. 

IHU On-Line – Qual foi o papel de Gal Costa no desbunde? 

André Monteiro – Gal representou uma das figuras mais emblemáticas do desbunde contracultural brasileiro, o que se deu, tanto no plano musical, surfando em praias psicodélicas, como no plano comportamental: sua maneira de se vestir, seu modo descontraído de expor o corpo e a sexualidade traduziam, em grande medida, a faceta feminina da contracultura. Não à toa, no Rio do início dos anos 1970, um dos principais pontos de encontro dos “desbundados” foi batizado com seu nome: “Dunas da Gal”.

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