Edição 405 | 22 Outubro 2012

O Bóson-H

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Mario Novello

Oferecer uma compreensão detalhada sobre o que é o Bóson-H, ou o Bóson de Higgs, é o fio condutor do artigo a seguir, escrito por Mario Novello e cedido à IHU On-Line. Parte do texto foi publicado na revista American Scientific Brazil de setembro de 2012. Questões como o motivo pelo qual o Universo teria iniciado em fase de colapso gravitacional e por que essa fase teria terminado e se transformado na atual fase de expansão são aspectos abordados. “Essas são as questões que os cientistas estão examinando nos dias atuais e que exibe uma vez mais a inesgotabilidade da investigação racional da natureza”, pontua.

Mario Novello é professor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas – CBPF, no Rio de Janeiro, onde é coordenador do Laboratório de Cosmologia e Física Experimental de Altas Energias. É graduado em Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e pela Universidade de Brasília – UnB, mestre em Física pelo CBPF e doutor na mesma área pela Université de Genève (Suíça), com a tese Algebre de l’espace-temps, pós-doutor pela University of Oxford (Inglaterra) e doutor honoris causa pela Universidade de Lyon (França). Conquistou prêmios internacionais, destacando-se a Menção Honrosa por Teses em Cosmologia e Teoria da Gravitação, concedida pela Gravity Research Foundation, dos Estados Unidos. É autor de mais de 150 artigos e de inúmeros livros, dos quais destacamos: Cosmos e contexto (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989), O círculo do tempo: Um olhar científico sobre viagens não convencionais no tempo (Rio de Janeiro: Campus, 1997), Os jogos da natureza (Rio de Janeiro: Campus, 2004), Máquina do tempo – Um olhar científico (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005) e Do big bang ao Universo eterno (Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2010). Foi o responsável pela condução da oficina A relatividade, a física das partículas e as origens do Universo, ministrada em 17-05-2006 no Simpósio Internacional Terra Habitável: um desafio para a humanidade, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos –IHU.

Confira o artigo.

I. O Bóson-H e a massa de todos os corpos
Nas últimas décadas os físicos de altas energias persuadiram-se de que a origem da massa de todos os corpos está associada à existência de uma partícula especial cuja função no Universo seria precisamente essa: dar massa às demais partículas fundamentais. Essa quase unanimidade não foi alcançada sem méritos: através de um mecanismo de quebra de simetria elaborou-se um modelo teórico cuja função formal permite assimilar o aparecimento da massa a um modo dinâmico pelo qual uma partícula sem massa (em geral descrita como um campo que se espalha continuamente no espaço) adquire massa através de um processo de interação.

A ideia de que a massa é um processo dinâmico, consequência do resultado da interação de um campo sem massa com um agente externo, não é recente. Em verdade ela tem mais de cem anos. Com efeito, atribui-se ao cientista e filósofo Ernst Mach  a primeira tentativa de produzir um modelo da origem da massa dos corpos como um processo dinâmico envolvendo somente a interação gravitacional. Um forte argumento que serviu de base a Mach para considerar essa sugestão está ligado à universalidade dessa interação. Com efeito, sabemos que tudo que existe interage com a gravitação. Assim, argumentou ele, seria natural esperar que a gravitação estivesse na origem da massa. Uma tal hipótese parecia então natural e, para muitos, impositiva. Ademais, como a física newtoniana dominante no século XIX afirmava que é a massa a origem da força gravitacional, isso deu origem a um interessante processo circular, autorreferente, conduzindo a afirmar que a gravitação gera a massa, que por sua vez gera a gravitação.

A partir da revolução feita nas primeiras décadas do século XX graças em parte à teoria da relatividade especial e, posteriormente, a relatividade geral, os físicos reconheceram que não é somente a massa que produz um campo de gravitação. Em verdade, toda e qualquer forma de energia, ponderável ou não, produz gravitação. É por isso que o processo gravitacional é não linear, pois a gravitação também possui energia e como toda e qualquer forma de energia produz gravitação, segue-se que a gravitação produz gravitação. Ou seja, com a moderna teoria da gravitação de Einstein, entrou-se no território formal controlado por processos não lineares.

Entretanto, a incapacidade de transformar a conjectura de Mach em uma proposta objetiva, podendo gerar uma análise quantitativa a partir de uma formulação coerente, satisfazendo os cânones tradicionais da física, impediu durante todo o século XX que essa origem gravitacional da massa fosse considerada como algo mais do que uma simples sugestão elegante, mas vaga. Seu caráter somente qualitativo teve como consequência seu esquecimento até muito recentemente.

Por outro lado, ao longo da década de 1970, por razões de ordem formal e depois de um longo período de abandono da sugestão de Mach, o interesse em identificar a origem da massa reapareceu. Os físicos começaram a aceitar a hipótese básica de Mach de que a massa não deveria ser um conceito elementar, mas sim deveria ter uma origem dinâmica, deveria ser o resultado de um processo de interação. No entanto, não se retornou à proposta do mecanismo gravitacional. Há duas razões para isso:

1. Ausência de um modelo qualitativo completo capaz de permitir análises quantitativas e de mostrar como um processo de interação gravitacional pode efetivamente dar massa a um campo sem massa.

2. A crença generalizada de que esse processo gravitacional deveria satisfazer as exigências da teoria moderna da gravitação – isto é, a teoria da relatividade geral. Como consequência, ele deveria depender da intensidade da curvatura do espaço-tempo, que, nessa teoria, é o que caracteriza a presença de um campo gravitacional. Se isso fosse verdade, como então entender que a massa de um corpo independe das propriedades locais onde esse corpo se encontra?

Talvez fosse necessário lembrar ao leitor que estamos nos referindo à massa de repouso do corpo, pois só nesse caso pode a massa ter um valor único, independente de eventuais características circunstanciais, como seu estado de movimento.



Constante cosmológica

A questão que se colocou então aos físicos que procuravam um novo mecanismo de geração de massa é: quem seria então o responsável no mundo da microfísica por esse papel? Seria ele desempenhado por alguma das interações conhecidas ou se deveria considerar uma hipótese nova, associada à existência de um novo processo universal? Os físicos passaram a procurar no interior do regime das partículas elementares por esse processo. Desde logo, descartaram a gravitação, por sua fraca intensidade, bem como as forças eletromagnéticas, pois essas não são universais. Restariam assim as forças nucleares, de curto alcance. A questão então se colocou: sob que forma essa força nuclear poderia gerar condições para o aparecimento da massa. E, antes de qualquer coisa, quem seria o condutor de tal processo?

Optou-se então por um novo agente, possuindo características simples e que se consubstanciou sob a forma de um novo campo escalar, que acabou ganhando o apelido de um dos seus criadores, o doutor Higgs. Aparece assim a construção teórica do Bóson-H. O mecanismo pelo qual o Bóson-H concede massa é um pouco técnico para ser desenvolvido aqui, mas podemos dizer duas ou três coisas sobre ele que servem para que tenhamos ao menos uma ideia, mesmo que bastante simplificada, desse processo. Começa-se por supor que o campo que descreve o Bóson-H possui massa. Por razões subsequentes e para permitir a esse mecanismo compatibilidade formal com outros aspectos, essa massa deveria ser bastante elevada. Aproximadamente, algumas centenas de milhares de vezes a massa do elétron, por exemplo. A segunda hipótese é de que esse campo-H deveria interagir consigo mesmo. Enquanto a primeira hipótese poderia ser testada por experiências, essa segunda resta para sempre inobservável, a não ser por algum de seus possíveis efeitos. Como consequência dessa hipótese de autointeração o Bóson-H admite entre suas configurações possíveis, um estado especial de vácuo, no qual sua energia seria mínima.
Curiosamente, nesse estado fundamental, sua distribuição de energia seria constante em todo lugar e tal que se interpretada como um fluido perfeito, a relação entre sua pressão e sua densidade de energia satisfaria a mesma equação de estado que aquela típica de uma constante cosmológica.

Esse fato deveria chamar a atenção dos físicos para o papel que a gravitação desempenha nesse mecanismo de construção de massa, posto que a presença de uma constante cosmológica é típica da formulação de Einstein para essa forma de fluido perfeito. Embora alguns comentários tenham aparecido aqui e ali, como no curso de M Veltman no CERN em 1996, foi somente em 2011 que um cenário completo, elaborado a partir da ideia original de Mach, foi elaborado. Como resultado descobriu-se que – contrariamente ao que se aceitara até então – a intensidade do campo gravitacional não desempenha nenhum papel importante no mecanismo gravitacional de geração de massa. Descobriu-se que a força gravitacional funciona como um catalisador nesse processo, servindo de ponte entre um estado de energia fundamental – representado por uma constante cosmológica – e o campo sem massa ao qual ele dará massa.

Curiosamente esses dois mecanismos – o do Bóson-H e o da gravitação – requerem igualmente a existência de um estado fundamental onde a energia a partir da qual se concederá massa às partículas se encontra homogeneamente distribuída no espaço. No caso do Bóson-H essa distribuição é entendida como consequência de autointeração do Bóson-H consigo mesmo. No caso gravitacional ela pode ser atribuída ao vácuo de todos os campos da física ou ter uma origem clássica – conforme Einstein a introduziu há quase 100 anos. Ao ser desenvolvido o novo mecanismo gravitacional percebeu-se que as antigas críticas a esse modelo não são realistas. Não podemos entrar nos detalhes aqui, mas somente para que o leitor tenha pelo menos uma ideia da solução àqueles comentários anteriores devemos enfatizar que, como o papel da gravitação é somente o de um catalisador, aquelas duas críticas apontadas acima contra a proposta dinâmica de Mach não podem ser mantidas. A gravitação penetra em todas as ações da matéria mas age sobre elas, gerando a massa, somente como intermediário entre o Universo e o corpo em questão. Tudo se passa, nessa função, como alguém que deixa atrás de si, em seu rastro, seu perfume característico. Contribuir com a fixação desse perfume, dessa fragrância, nessa analogia, é precisamente o papel da gravitação. Ou, dito simplesmente, ela é somente um catalisador.


Partículas Fundamentais ou em busca da Tabela de Mendeleief moderna

Há diferentes hierarquias na caracterização das partículas microscópicas, algumas vezes chamada de elementares. Recentemente, físicos de Altas Energias iniciaram um procedimento de classificação distinto do tradicional e que sintetizo abaixo de modo compacto.


Nucleons (próton e nêutron) e elétron

O próton e o elétron são partículas fundamentais estáveis. Acredita-se que o próton não deixa de ser próton nunca: isso é, ele não se desintegra em outras partículas. O mesmo ocorre com o elétron. O outro importante elemento do átomo, o nêutron, tem uma vida média baixa, da ordem de poucos minutos. Se ele aparece nesse esquema se deve à sua importância na construção dos elementos químicos existentes no Universo.


Meson-sigma e meson-Pi

São os responsáveis pelas interações da matéria hadrônica. O meson-Pi (ou pion) foi identificado por Cesar Lattes , Occhialini  e Powels. Os outros dois cientistas receberam por essa identificação o prêmio Nobel de física. Independentemente do interesse que tal prêmio possa ter, ainda hoje uma boa parte da comunidade científica internacional considera injusta a ausência de Lattes em Estocolmo. O meson-Sigma foi identificado recentemente por cientistas brasileiros.


Bósons vetoriais

São os intermediários das interações fraca e eletromagnética. Foram detectados quatro Bósons vetoriais que se identificam pelas letras W(+), W(-), Z e gamma. Os dois primeiros são massivos e possuem carga elétrica. O Bóson Z é neutro e sem massa e o gamma é o fóton. Os três primeiros são os responsáveis por intermediar a interação fraca (a desintegração ou decaimento da matéria) e o fóton é o intermediário da interação eletromagnética.


Neutrinos

Junto com o elétron constitui uma família à parte chamada lepton e que estão sempre envolvidos nas interações fracas de desintegração. Além do estável elétron, existem dois outros leptons chamados muon e tau. Cada um desses dois leptons, assim como o elétron, possui seu neutrino correspondente. Neutrinos podem ter tido um importante papel na história da evolução do Universo. Em 1972 o físico polonês B. Kuchowicz publicou uma importante resenha sobre o que ele chamou o papel cósmico dos neutrinos. Um capítulo especial desse trabalho foi dedicado ao exame de uma possível dependência cósmica das interações fracas. Essa relação do mundo microscópico com a evolução do Universo segue a linha idealizada por Dirac  e posteriormente defendida por Cesar Lattes e outros que propuseram uma dependência (espaço-)temporal de todas as interações. Enquanto no caso das forças eletromagnéticas, essa relação foi tentada somente através da caracterização da dependência da carga do elétron com sua posição no espaço-tempo – proposta que ainda hoje se investiga sem uma conclusão definitiva – no caso das interações fracas que regem a desintegração da matéria, essa dependência poderia ter outra forma. Sabe-se que a interação fraca viola paridade. Isso significa que aparece uma dependência nesses processos de decaimento que se distinguem pela reflexão especular. Isto é, a desintegração vista do lado de lá de um espelho, como diria Alice, não tem a mesma aparência que do lado de cá. Essa violação da paridade é uma característica fundamental desse tipo de decaimento. A dependência cósmica a que me referi acima significaria que esse processo de violação da paridade seria um processo acumulativo dependente da evolução do Universo. Tal hipótese poderia ter relevância cósmica nos momentos de alta condensação do Universo onde se deu o processo chamado núcleo-síntese de formação dos elementos químicos mais leves como o hidrogênio e o hélio. Essa questão poderia também lançar luz sobre outra que, ainda hoje, os cientistas não conseguiram resolver e que podemos simplesmente caracterizar pela pergunta: por que, no Universo, existe mais matéria do que antimatéria? Sabemos sim que se o Universo fosse simétrico e, por exemplo, contivesse o mesmo número de bárions e antibárinos, deveríamos explicar por que não se observa essa antimatéria. E, ademais, porque eles se separaram e não se aniquilaram ao longo da história do Universo. O cosmólogo brasileiro Ruben Aldrovandi examinou em sua tese de doutorado na década de 1970 a proposta defendida pelo físico francês R. Omnès sobre a teoria simétrica matéria/antimatéria no Universo, e desde então têm aparecido várias propostas para explicar a origem do excesso de matéria bariônica (basicamente, os prótons) sobre os antibárions. O cientista russo A. Sakharov – que recebeu o titulo de doutor honoris causa da Universidade de Lyon por seus trabalhos relacionando o micro e o macrocosmos –estabeleceu alguns critérios que deveriam servir de guia para entender-se esse desbalanceamento dos bárions. Passaram-se já mais de cinquenta anos e seu trabalho original ainda não foi implementado pelos físicos. Esse é um dos problemas que o cientista russo V. Ginzburg, em 1970 enumerou como uma das questões não resolvidas mais importantes da física e da astrofísica. Em 1980 ele repetiu essa tarefa e elaborou uma nova lista do que ele considerava ser os principais problemas da física e da astrofísica. A questão da matéria e antimatéria no Universo continuava na lista naquela data e, em verdade, ainda hoje constitui um problema em aberto.


Partículas quase elementares e hierarquia no microcosmos. Friedmons?

Como em um conto de ficção, o cientista russo M.A. Markov elaborou um cenário onde procurou unificar o mundo micro e macro através da descrição da microfísica como se o interior de uma partícula pudesse ser descrito como um Universo de Friedmann que se expande e colapsa. Markov conseguiu uma expressão formal capaz de descrever modelos cosmológicos do tipo Universos de Friedman possuindo uma extensão analítica para aquilo que poderíamos chamar de “seu exterior”, no qual esse Universo seria assimilado a uma estrutura elementar, um átomo ou uma partícula elementar, espraiando-se em um meio exterior, o seu environment.
O mundo quântico passaria assim a ser representado como uma estrutura contínua. Tal configuração não é tão exótica como parece à primeira vista. Em uma interpretação da mecânica quântica proposta pelo físico francês de Broglie e desenvolvida anos depois pelo inglês-brasileiro David Bohm, a estrutura básica do microcosmo pode ser interpretada como uma estrutura contínua no espaço-tempo. A proposta de Markov, construída há mais de trinta anos, não teve sequência maior e deixou somente uma lembrança: a de que não sabemos como representar, em termos cotidianos o que se passa no interior do que chamamos partícula elementar. A grande maioria dos cientistas consideram essa questão simplesmente como nonsense e mal formulada. Se Pauli estivesse vivo, seria possível ele repetir seu bordão arrogante e castrador dizendo que essa proposta de Markov “it is not even wrong”. Cientistas menos críticos consideraram essa proposta de Markov como um exercício formal digno de análise envolvendo a habilidade matemática de representar o que se poderia chamar “interior de uma partícula elementar” como sendo uma estrutura geométrica, solução cosmológica das equações de Einstein da relatividade geral. Isso nos leva à questão que estamos tratando aqui: o que podemos dizer sobre essas partículas no Universo?


O Bóson-H e o Universo

O Centro Europeu de Pesquisas Nucleares – CERN anunciou recentemente que experiências realizadas em sua máquina de acelerar partículas, chamada Large Hadron Collider, teriam revelado fortes indícios de que uma partícula de massa de 125 Gev poderia ser o procurado Bóson escalar chamado Bóson-H. Em várias reuniões com a imprensa divulgadas a partir daquele anúncio, apareceram diversas considerações relacionando a descoberta do Bóson-H à elucidação dos mistérios da origem do Universo. Essa afirmação é o que os americanos chamam de “whishful thinking”. Para ser mais claro: seja a partícula descoberta no CERN o bíson-H ou não; seja ela responsável pela determinação da massa de todos os outros corpos ou não; essa descoberta lança pouca luz (para ser otimista) sobre as origens do Universo. Para entendermos isso façamos uma breve incursão às raízes históricas da questão cosmológica.


Resumo da cosmologia (ou algumas certezas e crenças da comunidade científica sobre o Universo)

O Universo está em expansão. Isso é uma certeza. Estará ele sendo acelerado? A acreditar no Comitê Nobel, sim. No entanto, devemos ter cautela nessa afirmativa, pois alguns cientistas de grande relevo (como Volodia Belinski – o ganhador do prêmio Marcel Grossmann deste ano – Wolfgang Kundt, o famoso colaborador de Jordan – e David Wiltshire, para só citar uns poucos) não estão convencidos disso e apresentaram críticas que não são facilmente respondidas. Uma revisão completa dessa questão e argumentos pró e contra serão motivo de discussão na próxima Brazilian School of Cosmology and Gravitation – BSCG-14) que o Instituto de Cosmologia Relatividade e Astrofísica – ICRA realizará em agosto deste ano de 2012 em Mangaratiba.

Isso quanto ao presente. E quanto ao passado? É aqui que supostamente o Bóson-H teria alguma influência. O que sabemos sobre o passado do Universo? Sendo extremamente conservador, podemos dizer o seguinte:

1. O Universo foi muito concentrado em um passado que dista de nós (usando o tempo cósmico) da ordem de uns poucos bilhões de anos.

2. Havia nesse período uma sopa cósmica envolvendo a matéria em equilíbrio com diversas formas de energia.

3. Antes disso, as partículas estavam livres, como prótons e outras espécies que entrariam em cena de acordo com sua energia de repouso, como elétrons, além de neutrinos e quarks.


Para podermos afirmar com alguma certeza o que teria acontecido antes, é necessário conhecer quem controla a dinâmica do Universo naquele período. Três possibilidades têm sido preferencialmente examinadas:

1. Aceitar a validade ininterrupta da teoria clássica da relatividade geral ao longo de toda a história do Universo.

2. Aceitar que processos de natureza quântica da gravitação possam aparecer quando o volume total do espaço atinge valores tremendamente pequenos.

3. Alteração na dinâmica da gravitação.


Como consequência dessas possibilidades, podemos esperar dois tipos de cenário:

1. Aparecimento de uma singularidade clássica (na década de 1970 até o começo deste século, essa opção era preferida pela comunidade científica).

2. Aparecimento de um bouncing (isto é, de uma fase anterior onde o Universo sofreria um colapso e depois de atingir um valor mínimo para seu volume entrando na atual fase de expansão).
Ao aceitarmos a hipótese do Big Bang como começo de tudo que existe, somos levados a limitar nosso conhecimento do Universo, pois os primeiros momentos de sua história são impossíveis de serem descritos racionalmente. Com efeito, devemos aqui recordar minha argumentação que tratei em outro lugar e que repito de forma condensada, pois há um detalhe que tem faltado às análises que envolvem a questão do Big Bang e que vai além do simples exame deste modelo e seu poder explicativo. É verdade que, ao serem indagados “é o Universo singular?” ou “existiu um momento único de criação deste nosso Universo?”, um grande número de cosmólogos tenha respondido “sim” a estas perguntas, embora com ênfase maior nas duas últimas décadas do século passado. Mas essa indagação, embora explicite uma necessidade atávica do homem, estava mal-colocada.

Esta não era a pergunta adequada que deveria ser feita, pois para respondê-la é necessário empreender extrapolação impossível de ser controlada pela observação direta. A boa questão – esta sim, possuindo consequências científicas relevantes – que deve ser colocada é um pouco menos preciosa, menos exuberante, aparentemente menos abrangente, mas bem mais fundamental. A pergunta que deve ser feita é esta: pode a ciência produzir uma explicação racional para a evolução do Universo, se o Big Bang for identificado com o começo do Universo? Para entendermos completamente esta questão, precisamos esclarecer as propriedades deste modelo. No entanto, é possível antes disso dar uma primeira visão das dificuldades intransponíveis que um cenário explosivo provoca. Essa conclusão depende diretamente do modo pelo qual os cientistas constroem uma descrição racional do Universo.

De um modo geral, a física se organiza a partir do princípio de Cauchy que descreve o modo pelo qual se dá o concerto entre teoria e observação. Ao se realizar uma experiência, certo número de informações sobre um dado processo físico é obtido. Com a repetição desta ou de outras observações, alarga-se o conhecimento de diferentes propriedades associadas ao fenômeno em questão. Tal processo é descrito por uma teoria que permite conhecer sua evolução temporal e inferir previsões. Novas observações permitem então verificar a validade ou não destas previsões. Este procedimento é bastante geral e mesmo uma história do Universo pode ser estabelecida dentro deste modo convencional de organização. Assim, o cientista produz uma explicação dos fenômenos segundo o esquema observação/teoria/observação. Para que se possa efetivamente seguir este procedimento convencional na cosmologia, é indispensável obter observacionalmente informações sobre as características do Universo em um dado momento. Só assim poder-se-iam elaborar e testar teorias globais de sua evolução. Se, por alguma razão, em algum momento, não for possível medir quantidades físicas de natureza global associadas ao Universo como um todo, este modo de proceder não poderia ali ser empregado. Há várias condições para que esse procedimento possa ser efetivado. A mais simples e fundamental dentre elas requer que todas as grandezas envolvidas sejam descritas por quantidades finitas. Isso se deve ao caráter finito de toda observação, pois qualquer medida requer um número real e finito para caracterizá-la. Assim, ao identificar o começo de tudo com uma explosão inicial – como o faz a proposta do cenário Big Bang – onde quantidades que poderiam ser, em princípio, observáveis atingiriam, segundo este modelo, o valor infinito (como a densidade de energia total do Universo), esta condição básica não estaria sendo preenchida. Segue-se, como consequência inevitável, a impossibilidade de construção de uma ciência da natureza envolvendo a totalidade do que existe: não seria possível construir uma base teórica a partir da qual uma história completa do Universo se estabeleceria. A cosmologia não descreveria esta totalidade, ou seja, no modelo Big Bang strictu sensu, a cosmologia não poderia constituir-se como ciência.
Ao aceitarmos a solução de um Universo sem singularidade, possuindo um bouncing outras interessantes questões aparecem. Nesse caso, o Universo teria tido uma fase anterior colapsante, na qual seu volume total diminui com o passar dos tempos, passado por um valor mínimo e então iniciado a fase atual de expansão. Ou seja, o mistério inacessível da singularidade é transformado em duas novas questões da ciência:

1. Por que o Universo teria iniciado essa fase de colapso gravitacional?

2. Por que essa fase teria terminado e se transformada na atual fase de expansão?

Essas são as questões que os cientistas estão examinando nos dias atuais e que exibe uma vez mais a inesgotabilidade da investigação racional da natureza.



Referências bibliográficas

B. KUCHOWICZ: The Cosmic Neutrino (Nuclear Energy Information Center, Varsóvia, 1972).
I. BEDIAGA, A. REIS, Jussara M. de MIRANDA em um trabalho coletivo da Colaboração E791 publicado na Physical Review Letters 86, 2001, 770.
V. L. GINZBURG: Key problems of physics and astrophysics (Mir publications, Moscou, 1976)
F. WILCZEK: Origins of mass (arXiv 1206.7114v1) 2012.
M. VELTMAN: Reflections on the Higgs system (CERN, 1996)
A. D. DOLGOV: Cosmology and physics beyond the standard model (Brazilian School of Cosmology and Gravitation, Rio de Janeiro, 2006 (Ed. Novello e Perez Bergliaffa).
R. MUSIL: Pour une evaluation des doctrines de Mach (Presses Universitaires de France, Paris, 1980).
M.NOVELLO: The gravitational mechanism to generate mass in Classical and Quantum Gravity, 28 (2011) 035003.
A.D.SAKHAROV: Violation of CP invariance, C asymmetry and baryon asymmetry of the universe in Soviet Physics Uspekni 34 (1991) 392.
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Confira outras entrevistas concedida por Mario Novello à IHU On-Line.

* A cosmologia está mudando a forma humana de pensar. Edição 142 da Revista IHU On-Line, de 23-05-2005

* Nobel da Física 2006 auxilia a compreender a formação do Universo. Entrevista especial com Mario Novello, publicada nas Notícias do Dia 11-10-2006

* José Leite Lopes: um físico que não aceitava trivializar o conhecimento. Uma entrevista especial com o professor Mario Novello, publicada nas Notícias do Dia 15-06-2006

* “O Universo estava condenado a existir”. Edição 340 da revista IHU On-Line, de 23-08-2010

* Um pensamento que não recebe ordens. Edição 402 da revista IHU On-Line, 10-09-2012

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