Edição 402 | 10 Setembro 2012

Um apelo ao eterno perguntar

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges / Tradução: Vanise Dresch

Jean Louis Le Moigne analisa a importância das obras de Edgar Morin em conexão com as ciências dos sistemas, a engenharia e a inteligência artificial. Todos somos responsáveis pela aventura do conhecimento humano e de suas sociedades, avalia

De acordo com o engenheiro francês Jean Louis Le Moigne, “a complexidade está vinculada tanto ao global como ao local. Não devemos reduzi-la à globalidade. Na mecânica celeste, já se considera o problema da gravitação atrativa de três corpos (três somente!) como muito complexo, no sentido de potencialmente imprevisível na prática. Ele discute, também, a auto-organização e a Teoria Geral dos Sistemas, de Bertallanfy: “para adquirir autonomia e, portanto, auto-organizar-se, um sistema deve ser aberto, estar em interação efetiva com seus ambientes, que ele transforma e que o transformam”. Analisando o legado de Morin, Le Moigne pontua que as disciplinas científicas não podem mais definir-se por um único “objeto de conhecimento”, estritamente delimitado e tido como um dado da Natureza: “elas devem ser entendidas também e primeiramente por seu ‘projeto de conhecimento’, conscientemente formulado pelo espírito humano, através do qual interligam-se a experiência do corpo e a compreensão do mundo”. E ressalta: “a contribuição mais decisiva da obra de Edgar Morin nesse sentido foi o apelo permanente dirigido a todos os cientistas para que nunca deixassem de fazer essas perguntas e praticassem esse trabalho epistemológico exigente. Fazendo isso, Morin esforçou-se, junto com outros obviamente, para documentar, argumentar e ilustrar essas questões”.

Jean Louis Le Moigne nasceu em 1931, em Casablanca, formou-se em Engenharia na Universidade de Harvard (EUA), trabalhou entre 1956 e 1971, no grupo Shell francês e lecciona, desde 1971, na Universidade Aix-Marseille (França) onde é atualmente professor emérito. É presidente do Programa Europeu de Modelização da Complexidade e vice-presidente da Associação Para o Pensamento Complexo – APC. Publicou mais de uma centena de artigos e cerca de duas dezenas de livros, alguns dos quais, escritos em colaboração com autores tão importantes como Edgar Morin ou Herbert Simon, entre os quais Les systèmes d'information dans les organisations (1973), Les systèmes de décision dans les organisations, (1973) La théorie du système général, théorie de la modélisation (1977); La modélisation des systèmes complexes (1990), Sciences de l'intelligence, sciences de l’artificiel (1986) – com Edgar Morin; Science et conscience de la complexité (1984); L’intelligence de la complexité (1999).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – A partir da teoria da complexidade de Edgar Morin, qual é o nexo que une as ciências dos sistemas, a engenharia e a inteligência artificial?

Jean Louis Le Moigne –
Em primeiro lugar, precisamos estar atentos à escolha das palavras: a complexidade não é uma teoria no sentido da teoria da gravitação ou da evolução. Edgar Morin fala mais precisamente do paradigma da complexidade: “O paradigma não explica, ele permite a compreensão”. Do mesmo modo, a expressão “ciência de sistemas” é inadequada, no sentido de que todas as disciplinas científicas podem também ser consideradas ciências dos sistemas, de modo que a expressão não designa nenhuma delas. Por certo, a expressão ciência dos sistemas complexos surge, em nossas universidades, a partir de 1985, reunindo subdisciplinas da ciência da regulação (cibernética de primeira ordem), da informática, da inteligência artificial e da matemática dos sistemas dinâmicos lineares e não lineares. porém, como ciência autônoma, “ela se esqueceu de alicerçar – ou arraigar – seus próprios fundamentos... O trabalho preliminar ainda está por ser feito: conceber os objetos como sistemas”.
Foi a esta empreitada que se dedicou Edgar Morin a partir de 1970, a partir de sua experiência como sociólogo e antropólogo, mas principalmente desde o seu encontro com a obra de H. Von Foerster  e, em particular, o artigo seminal deste autor, de 1959, intitulado “Os sistemas auto-organizadores e seu ambiente”. Para adquirir autonomia e, portanto, auto-organizar-se, um sistema deve ser aberto, estar em interação efetiva com seus ambientes, que ele transforma e que o transformam.

A partir desse apelo a um pensamento aberto (e não mais fechado, como implicavam os quatro preceitos fundadores do Discurso do método, de René Descartes, 1637), Morin mobiliza todos os recursos oferecidos pelas novas disciplinas que se desenvolveram desde a institucionalização da cibernética (ciência da regulação interativa e da comunicação entre ordem desejada e desordem percebida), das ciências da informação, da computação, da cognição etc. O conceito rígido de estrutura não permitia considerar nem dar conta da miríade de interações entre ordem e desordem que cada um de nós observa nas atividades humanas. Fazia-se necessário restaurar o conceito de organização, entendendo-o em sua complexidade: Unitas multiplex.


Crítica epistemológica interna

A partir dessa base paradigmática, a complexidade de base, o conceito de sistema, ou unidade complexa organizada, surge como um conceito-piloto resultante das interações entre um observador/conceptor e o universo fenomenal; ele permite representar e conceber unidades complexas, constituídas por inter-relações organizacionais entre elementos, ações ou outras unidades complexas. A ciência dos sistemas torna-se, por assim dizer, a ciência da modelização e da concepção sistêmica (como e por um sistema em geral). Antes organizado e fechado, o conceito de sistema passa então a organizar e a organizar-se. Em vez de ser a palavra-mestra da totalidade (holismo), ele se torna a raiz da complexidade.

Assim sendo, as novas ciências da engenharia, ciências de concepção ou do artificial, como dirá H. Simon (1969), podem ser entendidas como ciências fundamentais, e não mais como disciplinas de aplicação, servas das ciências de análise, ditas exatas (reducionistas, causalistas, fechadas em torno de um objeto passivo). Tornam-se também, sobretudo elas, responsáveis por sua própria crítica epistemológica interna.
A inteligência artificial torna-se uma dessas novas ciências da engenharia, fontes de heurísticas exploratórias nos campos das ciências da computação, que se revelarão muitas vezes poderosas para orientar inferências nas ciências da cognição, da biologia computacional, da linguística computacional, etc.


IHU On-Line – O desenvolvimento da inteligência artificial foi notável nos últimos anos. De que modo esta área do conhecimento humano pode contribuir para o avanço da compreensão interligada do conhecimento, da própria vida e de suas possibilidades?

Jean Louis Le Moigne –
Talvez eu possa responder com uma observação de Paul Valéry  em seus Cahiers, a qual é bem anterior ao surgimento da expressão inteligência artificial (MIT, 1956): “Nós compreendemos melhor os viventes à medida que inventamos e construímos máquinas” (Cahiers XIII, 617, 1929).

Foi este argumento que H. Simon enfatizou, já em 1969, para definir a inteligência artificial, a qual ele preferia ter denominado simulação funcional dos processos cognitivos. Uma simulação computacional (por programação de heurísticas que dispõem de sistemas de memorização) pode muitas vezes possibilitar uma interpretação plausível de comportamentos observáveis de um sujeito dotado de um projeto e exposto a variações de seu “ambiente externo”. Nesse sentido, a inteligência artificial torna-se uma ferramenta de exploração de situações possíveis e de elaborações de estratégias de ações próximas concebíveis, sem, contudo, impor a escolha da “decisão certa”. Os possíveis nem sempre são os desejáveis nas decisões de comportamento humano, que, na prática, são muitas vezes multicritérios, critérios raramente hierarquizados de maneira uniforme.


Perspectiva transhumanista

Essas considerações metodológicas requerem, evidentemente, um exercício permanente de crítica epistemológica. Devemos nos interrogar aqui sobre a leviandade desses questionamentos ético-epistêmicos quando se observam desvios cientificistas tais como aqueles desenvolvidos na perspectiva transumanista (ou pós-humanista) de uma humanidade transformada pelas técnicas computacionais, que deveriam permitir melhorar as características físicas e mentais dos seres humanos (a partir de trabalhos contemporâneos sobre as técnicas informáticas da vida artificial, da concepção artificial, da engenharia artificial, trabalhos raramente atentos às questões ideológicas). Será que podemos estabelecer definitivamente os critérios de uma melhora certa e universal da espécie humana?


Inteligência artificial

Resta que as técnicas da inteligência artificial são técnicas de simulação informática. Enquanto tais, elas levam ao exame fenomenológico de comportamentos observáveis, sugerindo hipóteses heurísticas programáveis a fim de propor inferências que autorizam compreensões funcionais plausíveis dos fenômenos considerados. Se algumas dessas simulações paramétricas levam a comportamentos tidos como desejáveis em contextos predefinidos, elas permitirão então a realização efetiva de robôs e próteses que podem cumprir essas mesmas funções no mesmo contexto, prestando atenção nos efeitos ditos “pleiotrópicos”. O processador concebido para cumprir essa função pode revelar-se a posteriori capaz de exercer outras funções não antecipadas no caso de modificações às vezes mínimas do contexto, sejam elas exógenas ou endógenas, provocadas por efeitos de autoaprendizagem.

Lembremo-nos aqui do princípio de Jean Piaget : “Um sistema inteligente pode e deve construir e memorizar os traços de seu próprio comportamento”. Este princípio nos lembra que a inteligência não é primeiramente um processador, mas um processo que só pode ser compreendido e desenvolvido em interações, que, por sua vez, são auto-eco-organizadoras. Podemos concluir com uma famosa expressão de desse pensador: “A inteligência não inicia nem pelo autoconhecimento, nem pelo conhecimento das coisas como tais, e sim pelo conhecimento de sua interação, e, orientando-se simultaneamente para os dois polos dessa interação, ela organiza o mundo organizando-se a si mesma” (Piaget, 1937). Sem dar atenção a essa recursividade constitutiva da inteligência, será que podemos falar apropriadamente de inteligência artificial?


IHU On-Line – Nesse sentido, como o desenvolvimento transdisciplinar das ciências pode fornecer outra compreensão sobre a irredutibilidade dos modelos analíticos, causalistas, deterministas e simples?

Jean Louis Le Moigne –
A questão nos convida expressamente a voltar ao enunciado dos quatro preceitos cartesianos do Discurso do método (1637): independência do objeto e do sujeito, fundamento do postulado fundador de objetividade dita científica; modelização analítica por redução a elementos tidos como simples e evidentes; determinismo universal por cadeias causais lineares; fechamento absoluto dos modelos que implicam contagens exaustivas. Esses preceitos, essencialmente derivados dos três axiomas formais do silogismo perfeito segundo Aristóteles , não apresentam um caráter de evidência universal.
Não é surpreendente que eles não tenham sido considerados a única garantia de todas as verdades científicas nos séculos anteriores. Já em 1708, G. B. Vico  publicou, na Universidade de Nápoles, um discurso explicitamente alternativo, O discurso do método dos estudos de nosso tempo, destacando as deficiências do reducionismo analítico e insistindo na riqueza dessa faculdade da mente humana de “relacionar, sempre relacionar” em vez de separar primeiro.

Sem dúvida, foi o desenvolvimento do positivismo segundo Auguste Comte  que garantiu a longa sobrevivência do paradigma da epistemologia cartesiana que observamos ainda hoje. E. Morin (1991) o nomeia “o grande paradigma do Ocidente” ou o paradigma da ciência clássica. No entanto, devemos lembrar que, já em 1934, G. Bachelard  conclui Le nouvel esprit scientifique  com um apelo a uma “epistemologia não cartesiana”, que ia desenvolver-se e organizar-se nos desenvolvimentos das novas ciências, dentro do paradigma da complexidade que E. Morin nos apresenta nos seis tomos de O método.


Pensamento aberto

Doravante, o desafio deixa de ser defensivo, contra um pensamento fechado, o reducionismo e o determinismo integrista. Torna-se construtivo, a favor de um pensamento aberto: “O pensamento complexo é um pensamento que interliga”, escreveu E. Morin em 1976: “O único método que adotei foi tentar captar as ligações móveis. Interligar, sempre interligar, era um método mais rico, mesmo no nível teórico, do que as teorias blindadas, sob invólucro epistemológico e lógico, metodologicamente aptas a enfrentar tudo, exceto, é claro, a complexidade do real”.

É assumindo essa relação crítica fundadora da legitimação antropolítica dos conhecimentos a serem ensinados e acionados, que renovam constantemente a ciência, sempre engajada na aventura do conhecimento humano, que uma efetiva inter e transdisciplinaridade pode desenvolver-se. As disciplinas científicas não podem mais definir-se por um único objeto de conhecimento, estritamente delimitado e tido como um dado da natureza: elas devem ser entendidas também e primeiramente por seu projeto de conhecimento, conscientemente formulado pelo espírito humano, através do qual interligam-se a experiência do corpo e a compreensão do mundo (cf. O paradigma corpo, espírito, mundo, dirá P. Valéry).

Vivemos hoje a crise dessa renovação de nossos paradigmas de referência. Precisamos fazer do “ideal de complexidade da ciência contemporânea aquele da restauração da solidariedade entre todos os fenômenos”, lembrou G. Bachelard. Não mais separar o fazer e o compreender significa também entender que “o cientista torna-se cego sem os óculos do cidadão”. A aventura do conhecimento humano entrelaça-se constantemente com a aventura das sociedades humanas: todos nós somos responsáveis por ela.


IHU On-Line – O que é a auto-eco-organização dos fenômenos complexos? Em que aspectos o conhecimento dessa complexidade resulta numa outra compreensão tanto da forma como do funcionamento dos sistemas?

Jean Louis Le Moigne –
Acredito que a história do conceito de auto-eco-organização inicia em 1959 com a publicação do artigo de H. Von Foerster (que criou um laboratório de bioinformática) intitulado “On self organizing systems and their environment”. Até então, as ciências não conseguiam dar conta dos fenômenos imprevisíveis, de emergência aparentemente endógena, que se observavam principalmente nos sistemas vivos. O determinismo implicado pela teoria da degenerescência neguentrópica dos sistemas físicos tidos como fechados não permitia compreender a gênese dessas emergências que eram, no entanto, tão comuns quanto um broto nascendo de um galho.

Propondo simbolicamente a alternativa order from disorder para a tese order from order, de E. Schrödinger  (What is life, 1944), e a argumentando tanto de maneira figurada como formalmente admissível, H. von Foerster introduziu no pensamento científico uma ideia muito renovadora: para que um sistema possa evoluir aumentando sua “riqueza organizacional” (emergência de novos comportamentos não pré-programados), ele precisa ser ativo em seu ambiente, recebendo não só os inputs programados ou ordenados, mas também o ruído, a priori aleatório, não programado, desordenado, que seguidamente os acompanha. Potencialmente, em certas condições plausíveis (um mínimo de redundâncias na organização inicial), essa desordem imprevista pode, contudo, suscitar a emergência interna de novos comportamentos, imprevistos, que se manifestarão na atividade da organização dentro de seu ambiente. Desenvolve-se assim uma recursão dita morfodinâmica: agindo cinematicamente sobre seu ambiente que então ela transforma, a organização é transformada ela mesma. A regulação cibernética de primeira ordem engendra uma recursão cibernética de segunda ordem.


Paradigma da complexidade

Assim, para que um sistema seja autônomo (“auto”) e, portanto, capaz de transformar-se ele mesmo, é preciso que seja dependente e solidário (“eco”) de seu ambiente. Todo sistema é ecossistema. O modelizador poderá distingui-los, mas não poderá mais mantê-los separados. E. Morin e H. Atlan tomaram consciência da importância da “mudança de olhar” sobre os processos de dinâmica organizacional por volta de 1968-1970, ao mesmo tempo em que era publicada a obra de I. Prigogine  intitulada Introdução à termodinâmica  dos processos irreversíveis. A insistência no caráter irreversível dos processos de evolução organizacional corroborava aquela que H. von Foerster convidava a reconhecer para os processos de emergência autoeco-organizacional, o que levou E. Morin a desenvolver o paradigma da complexidade a partir do esquema de referência de O método, aquele da autoeco-reorganização. Tornava-se assim possível renovar a modelização dos sistemas complexos passando da modelização cibernética e holística inicial, fechada (autorregulação do processador caixa-preta), à modelização sistêmica aberta (funcionamento e evolução teleológica e contextualizada).

Caberia aqui completar a interpretação operatória do paradigma da autoeco-reorganização pelos desenvolvimentos importantes introduzidos por Morin acerca da interação recursiva dos processos organizacionais e dos processos informacionais que eles formam e que os transformam recursivamente. A concepção dos sistemas de informação encontra aí um plano diretor que permite evitar que as restrições próprias das tecnologias da informação e da comunicação prejudiquem a qualidade potencial das interações poiéticas entre os dois processos, organizacional e informacional.


IHU On-Line – Em que aspectos a obra de E. Morin pode ser considerada como um contraponto à clausura ideológica e paradigmática das ciências clássicas?

Jean Louis Le Moigne –
Considerando as devidas nuanças, proponho dois comentários para esclarecer sua pergunta. O primeiro provém da crítica epistemológica, que deveria ser própria de toda e qualquer atividade científica: um dos efeitos mais perversos da pregnância das ideologias positivistas há mais de um século tem sido a ausência de reflexão epistemológica livre do argumento do postulado dito da objetividade científica pura e rigorosa, objetividade que seria garantida pela estrita aplicação de métodos de observação e de raciocínio independentes tanto do contexto como dos observadores-descritores. Esses últimos não teriam de criticar o valor e a pertinência da “verdade científica” que produzem, uma vez que usam métodos impessoais, cientificamente objetivos. Isso os autoriza a ignorar as perguntas banais que Piaget lembrou em 1968 ao definir a epistemologia como “o estudo da constituição dos conhecimentos válidos”, perguntas que muitas vezes não são feitas: o que é o conhecimento (gnoseologia)? Qual é o critério de apreciação de seu valor (ética)? Como o conhecimento é constituído (metodologias)? Quem poderá então reconsiderar e argumentar as críticas que poderiam ser feitas às suas respostas a essas três perguntas interdependentes?
A contribuição mais decisiva da obra de Edgar Morin neste sentido foi o apelo permanente dirigido a todos os cientistas para que nunca deixassem de fazer essas perguntas e praticassem esse trabalho epistemológico exigente. Fazendo isso, Morin esforçou-se, junto de outros obviamente, para documentar, argumentar e ilustrar essas questões. Basta relermos, por exemplo, Os sete saberes e nos perguntarmos: será que me fiz seriamente essas sete perguntas antes? Ou então a reflexão de Bachelard em Le nouvel esprit scientifique, que nos convida a substituir a objetividade do objeto pela projetividade (a intencionalidade explícita) do sujeito: “A meditação do objeto pelo sujeito sempre toma a forma do projeto”.


Paradigma perdido

O segundo comentário diz respeito à compreensão do paradigma da complexidade. Se a ciência clássica ignorou ou rejeitou durante muito tempo a complexidade, isso ocorreu porque ela não conseguia abordá-la a partir do pensamento fechado que a epistemologia cartesiana impunha, tida como a garantia do postulado de objetividade científica. Quando foi progressivamente restaurado nas culturas científicas, a partir do Nouvel esprit scientifique, de Bachelard (1934) e, posteriormente, a partir da emergência das novas ciências em 1945-1950, o paradigma perdido (E. Morin, 1973) do pensamento aberto formulado e amplamente desenvolvido e argumentado por Morin em O método (que propôs então chamar de pensamento complexo aquilo que se entendia antes por pensamento aberto), os partidários da ciência clássica esforçaram-se para resgatar o conceito de sistema complexo. Pode-se datar simbolicamente a partir da criação do Instituto de Santa Fé (1985) essa empreitada que, na prática, não visava senão a recuar um pouco as fronteiras do campo apreensível pelo pensamento fechado, sem, contudo, abri-las e principalmente sem abandonar a primazia da modelização matemática formal. Esses partidários, ainda numerosos em 2012, preferem ignorar também a “existência de modelos formais que, embora rigorosos, não se assemelham aos modelos que usam a matemática tradicional” (de acordo com as palavras de H. Simon, em 1967, que já citava muitos exemplos).
Para dar ênfase a essa restrição sensível do alcance epistemológico e metodológico do paradigma da complexidade que sua redução ao simples estudo dos sistemas complexos formalmente fechados implicaria, Edgard Morin propôs identificar essas “ciências dos sistemas complexos” formalizados ou programáveis sob a denominação de complexidade restrita. Poder-se-ia então considerar que o paradigma da complexidade geral integra as contribuições metodológicas da complexidade restrita. Uma ampliação do modo de pensamento que passa da formalização de programas automatizáveis à concepção de estratégias autônomas (cf. seu artigo traduzido em português na obra Inteligência da complexidade epistemológica e sociedade (1999).


IHU On-Line – Sob que aspectos podemos compreender o mundo atual como globalmente complexo?

Jean Louis Le Moigne –
“Quanto menor o grão da matéria, mais o descobrimos complexo”, escreveu Bachelard. A complexidade está vinculada tanto ao global quanto ao local. Não devemos reduzi-la à globalidade. Na mecânica celeste, já se considera o problema da gravitação atrativa de três corpos (três somente!) como muito complexo, no sentido de potencialmente imprevisível na prática (extrema sensibilidade às condições iniciais).

“A complexidade não está a priori na natureza das coisas, e sim na mente dos homens”. Associamos ao conceito de complexidade a imagem da imprevisibilidade possível dos comportamentos dos fenômenos que consideramos, a partir do momento em que nos propomos a prestar atenção nas interações internas e externas que relacionam os fenômenos com os contextos em que eles se desenvolvem.
Então, para responder à sua pergunta, digo que é sob todos esses aspectos que podemos entender o mundo atual em e por sua complexidade. Cada vez que tentamos simplificá-lo sob a alegação da eficácia, acabamos em catástrofes humanas e muitas vezes planetárias. Reduzir a política internacional à “luta do eixo do bem contra o eixo do mal”, como quis fazer G. W. Bush para conduzir a guerra do Iraque, é o trágico exemplo dos efeitos perversos dessas simplificações mutiladoras.


IHU On-Line – Em que consiste uma epistemologia construtivista e quais são suas relações com o paradigma da complexidade?

Jean Louis Le Moigne –
Define-se a epistemologia como e pelo “estudo da constituição dos conhecimentos válidos” (Piaget, 1967). Isso implica a conjunção explícita de três grupos de hipóteses gerais e genéricas:

• A hipótese gnoseológica versa sobre a gênese, a forma e a natureza do conhecimento; ela pode concernir:

– À essência atribuível às coisas ou ao Númeno (a hipótese ontológica, presumida independente do sujeito cognoscente que a descreve); ou à experiência gerada pela atividade de fenômenos (ou processos percebidos ou concebidos pelo sujeito cognoscente – “knowing system”, como dirá H. von Foerster).
– À origem da determinação das relações internas e externas que relacionam númenos e fenômenos; ela pode ser de tipo causal ou determinante, imposta pelas leis da natureza, independente, portanto, do observador-descritor; ou de tipo teleológico ou reflexivo, dependente, portanto, do ponto de vista do observador-descritor, privilegiando as relações endógenas de tipo “comportamento-finalidade”, em detrimento das relações exógenas de tipo causa-efeito.

• A hipótese metodológica versa sobre os critérios atribuídos à razão humana para deduzir ou inferir conhecimentos a partir de conhecimentos de que se dispõe anteriormente: aqueles da racionalidade silogística, formal, fechada e dedutiva (substantive rationality, dirá H. Simon), estabelecida sobre os três axiomas da dedução “perfeita” de Aristóteles; ou aqueles da racionalidade tópico-crítica, funcional e aberta (procedural rationality, dirá H. Simon), estabelecida com base nos princípios dialógico, recursivo, transdutivo e de irreversibilidade.

• As opções éticas (pelas quais são valorizados os conhecimentos produzidos) que podem ser tidas como consubstanciais à escolha do método, que, sendo postulado perfeito, deve incorporar uma opção ética subjacente, uma única, sendo, portanto, fechado. É o caso da opção cientificista: o conhecimento tido como cientificamente verdadeiro será tido como o único moralmente bom, quaisquer que sejam as preferências pessoais dos observadores (como o lema do positivismo segundo Auguste Comte: ordem e progresso). Ou as opções éticas podem ser consideradas como dependente da responsabilidade dos atores envolvidos (quer as elaborem, quer se refiram a elas para agir), que se obrigam então a explicitar os critérios aos quais se referem (como o lema tríplice da República [francesa]: liberdade, igualdade, fraternidade). Opção que é explicitamente aberta em seu contexto sociocultural.

As epistemologias construtivistas privilegiam as abordagens de constituições dos conhecimentos válidos pelo primado de que apresentam opções ditas “abertas”, como acabamos de apresentar. Desde a origem, o pensamento aberto é a matriz do pensamento complexo segundo as apresentações que faz deste Morin. Pode-se então considerar que o paradigma da complexidade tem seus enraizamentos epistemológicos no terreno fértil das epistemologias construtivistas. Morin, que fala mais em paradigmatologia do que em epistemologia – provavelmente, para fugir das querelas bizantinas de vocabulário que os epistemólogos de profissão apreciam –, defende às vezes uma epistemologia construtivista.


IHU On-Line – Qual é o nexo que une a transdisciplinaridade à complexidade proposta por Morin e à teoria geral dos sistemas, de Bertalanffy?

Jean Louis Le Moigne –
Já no primeiro capítulo do Tomo 1 de O método (1977), Edgar Morin assinala: “Embora comporte aspectos radicalmente inovadores, a teoria geral dos sistemas nunca tentou a teoria geral do sistema; ela esqueceu de preparar seu próprio alicerce, de refletir sobre o conceito de sistema. Por isso o trabalho preliminar do sistema ainda está por ser feito, interrogar a ideia de sistema”. Por isso – acrescenta Morin – é preciso “abrir a problemática sistêmica” (Morin, La Méthode, t. 1, 1977, p. 101). “Oponho à ideia de teoria geral ou específica dos sistemas a ideia de um paradigma sistêmico (irredutível à visão muito simplificadora do Todo, do holismo)” (ibid, cap. II-6).

Na verdade, nunca é demais assinalar que a teoria geral dos sistemas, segundo Bertalanffy, é uma teoria holística formada certamente em reação às teorias reducionistas, as quais comprometiam (e continuam comprometendo) a própria ideia de uma organização transdisciplinar da ciência. No entanto, a passagem do reducionismo ao holismo mantém o fechamento no todo (a soma das partes), considerando as partes como frações aritméticas do todo, partes que, por sua vez, são definidas como objetos, e não como sistemas (ou processos) sem dar maior atenção às interações permanentes entre elas.


Questão epistemológica

O paradigma da complexidade, que se expressa aqui sob o modo projetivo e reflexivo do paradigma da autoecorreorganização ativa em contextos que evoluem, permite desdobrar os conhecimentos entendidos como processos e de forma transversal. A questão é novamente epistemológica: a passagem de uma concepção dos conhecimentos-resultados, que se acumulam sem se relacionarem, a uma concepção dos conhecimentos-processos, que se enraízam no terreno fértil das experiências humanas. Permitam-me concluir com duas citações que esclarecem minha exposição.

“Considera-se cada vez mais atualmente o conhecimento mais como um processo do que como um estado” (Piaget, Psicologia e epistemologia [...], 1970).

“Todo conhecimento adquirido sobre o conhecimento torna-se um meio de conhecimento que esclarece o conhecimento que permitiu adquiri-lo. Podemos então acrescentar uma via de retorno ao sentido único epistemologia-ciência e efetuar passagens de um nível de conhecimento ao outro e vice-versa. Podemos, ao mesmo tempo, conceber um desenvolvimento transformador em que o conhecimento elaborador tente conhecer-se a partir do conhecimento que ele mesmo elabora e que torna assim colaborador” (Morim, La connaissance de la connaissance, 1986).

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição