Edição 399 | 20 Agosto 2012

Imagens técnicas, instrumento de manipulação do homem

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Thamiris Magalhães

Flusser sempre se engajava em prol do homem, que, para ele, significava posicionar-se contra a máquina, avalia Eva Batličková

É exatamente o espírito profundamente filosófico e existencial dos trabalhos de Vilém Flusser que mostra a diferença ontológica entre o homem e a máquina. “O homem é um ser infinitamente complexo, enigmático, imprevisível e livre, enquanto a máquina, por mais rápida e eficaz que seja, não é mais que mera materialização dos textos científicos”, analisa uma das mais influentes pesquisadoras de Flusser na atualidade, Eva Batličková, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ela, apesar das ideologias que o tentam encobrir, é preciso saber que o objetivo dos aparelhos não é deixar o homem mais feliz, “porém manter vivos a si mesmos junto com o sistema que lhes alimenta”. E admite: “As imagens técnicas se tornaram, pelo contrário, um poderoso instrumento de manipulação do homem”.

Em relação aos trabalhos de Flusser, Eva deixa claro que seus textos eram, inúmeras vezes, criticados porque não mantinham as regras científicas e acadêmicas. “No entanto, o próprio autor pouco se importava com as críticas. Seu estilo era diferente, engajado, pois seu objetivo não era escrever para a academia, mas para homens vivos”.

Eva Batličková graduou-se em Língua Portuguesa, na Universidade de Brno, na República Tcheca, com um trabalho sobre a fase brasileira do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser. 

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Qual foi a maior contribuição de Flusser para o campo comunicacional? 

Eva Batličková – Sua grande contribuição para o campo comunicacional consiste, sem dúvida, em sua concepção de comunicação não como um imprescindível instrumento da vida social de seres vivos, porém como a essência de cada intelecto, o princípio de cada cultura e da realidade que nos cerca. Se certa comunidade fala inglês contemporâneo ou chinês do primeiro milênio a.C., se ela se comunica mediante textos lineares ou por imagens tradicionais ou técnicas, isso muda radicalmente a realidade em que esta comunidade vive. E aqui enraíza a grande preocupação de Flusser com as imagens técnicas, que são um meio de comunicação relativamente novo. E como elas são, em princípio, um produto de aparelhos programados, e não mais dos intelectos humanos, toda a nossa cultura como a conhecemos se transforma profundamente rumo a uma sociedade desumanizada.

IHU On-Line – Qual o legado deixado por Flusser para a contemporaneidade? 

Eva Batličková – Nós, vinte e um anos depois da morte de Vilém Flusser, convivemos muito mais com todo tipo de aparelhos do que ele. Por isso é cada vez mais atual sua advertência que esta convivência não é gratuita. Apesar das ideologias que o tentam encobrir, é preciso saber que o objetivo dos aparelhos não é deixar o homem mais feliz, porém manter vivos a si mesmos junto com o sistema que lhes alimenta. E isso sem menor escrúpulo com o homem. Os aparelhos podem ser ou mais ou menos perigosos: desde a máquina fotográfica, que nos obriga aceitar sua ótica unidimensional, até Auschwitz , um aparelho político extremamente perverso e nocivo. Em seu livro Pós-história , Flusser fala que no final todos os aparelhos funcionam no sentido do aniquilamento do homem, tanto do funcionário que os serve como do programador, porque todos necessariamente objetivam, desumanizam o homem.

IHU On-Line – Qual o mérito da obra A filosofia da caixa preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia de Vilém Flusser? 

Eva Batličková – Em A filosofia de caixa preta, Flusser mostra as consequências da transformação do código comunicacional para a sociedade contemporânea. A cultura ocidental, como a conhecemos, é uma cultura histórica, cujo tempo é linear e se projeta para o progresso e evolução. Esforça-se para mudar o mundo mediante o trabalho e suas ciências procuram causas e consequências. A cultura histórica se afirmou depois da crise e decadência da cultura pré-histórica, baseada no pensamento imagético, que vivia num tempo cíclico e pensando de maneira que Flusser chama de mágica – o homem tenta mudar o mundo mediante a manipulação de imagens.

Imagens técnicas

O que está acontecendo nos últimos aproximadamente cem anos é a nova dominação da imagem na cultura; desta vez, as imagens técnicas. Com este processo, está se esgotando a cultura histórica e nós podemos presenciar a volta do tempo cíclico e do pensamento mágico da época pós-histórica. O grande perigo das imagens técnicas, que o autor chama de imagens do segundo grau, é seu caráter traiçoeiro: elas parecem ser janelas para o mundo, mas na verdade trata-se da abstração de terceiro grau – elas superam tanto a abstração do primeiro grau, que foi o mundo simbólico das imagens tradicionais, como a abstração de segundo grau, o mundo conceitual da escrita. Imagens técnicas são abstrações de terceiro grau. Elas são baseadas nas abstrações de textos científicos e sua “magia” é, em princípio, muito simples: mudar o mundo programando o homem.

IHU On-Line – De que maneira Flusser abordou as teorias de imagem? Qual a relação entre mundo – imagem – texto – imagem técnica? 

Eva Batličková – Como já foi dito, a imagem é um tipo de abstração. A imagem tradicional é, conforme Flusser, a abstração do primeiro grau. Ela representa o mundo de maneira simbólica, abstraindo duas dimensões de quatro que nos cercam (espaço e tempo). Numa época (Flusser a coloca para 2000 a.C.), a humanidade se deparou com o problema de que as imagens não representam mais o mundo, porém o cobrem e as pessoas estão vivendo em função das imagens. Esse fenômeno o autor chama de idolatria. Nessa época, surge a escrita linear e com ela o pensamento histórico. Os textos são abstração do segundo grau e se esforçam para explicar as imagens – trabalham com uma dimensão só, conceitual. Numa história relativamente recente, os textos adquiriram o grau da abstração tão alto que se tornaram inimagináveis e extremamente afastados da vida cotidiana. A humanidade chegou à textolatria. Foi quando apareceram as imagens técnicas, que pareciam ser um ótimo instrumento para visualizar os textos e os deixar novamente compreensíveis. Com o decorrer do tempo, percebemos que se tratou de uma ilusão e que as imagens técnicas se tornaram, pelo contrário, um poderoso instrumento de manipulação do homem.

IHU On-Line – Para Flusser, o que vinha a ser a época “pós-histórica” e qual a sua relação com os códigos pelos quais nos comunicamos?

Eva Batličková – A época pós-histórica, como já mencionamos, é para Flusser condicionada pela mudança de códigos de comunicação. As imagens, com seu mundo simbólico que dominava a época pré-histórica, estão novamente entrando em cena, desta vez sob a forma da imagem técnica. O pensamento histórico e causal, com seu tempo linear, é substituído pelo pensamento imagético, e o tempo passa a ser circular. O tempo circular é um império do eterno retorno; a história com suas mudanças revolucionárias acabou. O maior drama da nossa época é que as imagens técnicas não são produtos dos intelectos humanos, porém dos programas de aparelhos. Quem começou a dominar nosso mundo são então aparelhos que degradam o homem de um ser livre para uma parte do programa. E, neste contexto, é importante salientar que aparelho, para Flusser, é um conceito bastante amplo; ele abrange, como dissemos, tanto a famosa máquina fotográfica como os aparelhos sociopolíticos e suas consequências, como Auschwitz, Hiroshima  ou Gulag .

IHU On-Line – De que forma Flusser utilizou a semiótica em seus trabalhos?

Eva Batličková – Flusser como pensador era profundamente antiessencialista e considerava todos os sistemas de significações altamente flexíveis e relativos. Ele aplicava esta concepção inclusive na nossa realidade “material”, alegando que o cosmos humano, no sentido de universo organizado, é tirado do caos animalesco justamente pela sua organização e sentido. E, como tanto a organização como a atribuição de sentido são produtos da sociedade, até a realidade que nos cerca muda conforme a nossa relação conceitual e estrutural com ela. Assim, para Flusser, por exemplo, a pedra para os gregos era um objeto completamente diferente da pedra como nós a entendemos.

IHU On-Line – De que maneira a fenomenologia influenciou o pensamento e as obras de Flusser?

Eva Batličková – Em sua autobiografia Bodenlos , Flusser escreve que sua ambição filosófica é, de um lado, construir uma ponte entre a filosofia da linguagem e, de outro, a fenomenologia e o existencialismo. A fenomenologia como método é interessante porque procura se afastar de todo conhecimento tradicional. Flusser a adotou como seu método, o que lhe permitiu analisar os problemas de maneira diferente e chegar a conclusões surpreendentes. Embora o existencialismo tenha saído de moda na segunda metade do século XX, para Flusser o homem e sua condição no mundo nunca deixaram de ser o centro de suas reflexões. Seus textos eram, inúmeras vezes, criticados porque não mantinham as regras científicas e acadêmicas. No entanto, o próprio autor pouco se importava com as críticas. Seu estilo era diferente, engajado, pois seu objetivo não era escrever para a academia, mas para homens vivos.

IHU On-Line – Em que aspectos a cibernética influenciou no pensamento e nas teorias de Flusser? 

Eva Batličková – Flusser sempre se engajava em prol do homem, que, para ele, significava posicionar-se contra a máquina. E é exatamente o espírito profundamente filosófico e existencial de seus trabalhos que mostra a diferença ontológica entre o homem e a máquina. O homem é um ser infinitamente complexo, enigmático, imprevisível e livre, enquanto a máquina, por mais rápida e eficaz que seja, não é mais do que mera materialização dos textos científicos.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição