Edição 394 | 28 Mai 2012

Um mestre

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Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa

“No caso do Pe. Libânio vida e obra são inseparáveis, pois ele é, acima de tudo, um homem de Deus que se colocou a serviço dos seus irmãos”, descreve Carlos Roberto Drawin

Para o professor de filosofia Carlos Roberto Drawin, a vida e a obra do Pe. Libânio ressumam ao longo do tempo a sua opção fundamental profundamente enraizada na existência e na fé e, portanto, ambas estão intimamente inter-relacionadas no mesmo compromisso com o mundo. “O seu conhecimento, forjado no rigor do método e enriquecido na amplitude da erudição, não está aprisionado no jogo de espelhos das vaidades, mas é um conhecimento empenhado na decifração do enigma do mundo e compassivo para com o sofrimento dos homens, sobretudo dos mais pobres e desamparados”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Drawin aponta como uma das características marcantes da personalidade de João Batista Libânio a sua liberdade diante do olhar crítico do outro. 

Carlos Roberto Drawin possui graduação em Psicologia e em Filosofia, e mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Até 2010, quando se aposentou, foi professor do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Filosofia da mesma instituição. Atualmente é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE - de Belo Horizonte 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor conheceu João Batista Libânio e o que pode falar sobre a amizade de vocês?

Carlos Roberto Drawin – Eu vi pela primeira vez o Pe. Libânio no já longínquo ano de 1972 quando eu era ainda um jovem recém-formado em Psicologia, sem saber que rumo tomar na vida e me perdia tateando nas trevas da ditadura militar que havia se abatido sobre nosso país. Eu tinha participado, quando universitário, do movimento estudantil que após o Ato Institucional de 1968 havia sido destroçado. Um pequeno grupo de profissionais e estudantes, do qual eu fazia parte, tentava reorganizar, em meio ao medo e à incerteza, a Juventude Universitária Católica – JUC e foi na ocasião de um de nossos encontros que tive o privilégio de assistir a uma exposição do Pe. Libânio, que na época era também um jovem teólogo jesuíta que, após retornar dos seus longos anos de estudos na Europa, iniciava o seu brilhante percurso. A sua exposição, não só pela clareza das ideias, mas também pela energia vital que transmitia, revelou imediatamente para mim a força de sua presença luminosa. Eu lhe pedi, então, uma conversa particular na certeza de que sua inteligência e generosidade poderiam me acolher e me orientar nos descaminhos em que eu estava enredado. A conversa e o acolhimento já se prolongam há 40 quarenta anos suscitando em mim uma admiração que não cessa e uma inexprimível gratidão.

IHU On-Line – O que admira na obra e na trajetória de Libânio? 

Carlos Roberto Drawin – Obra e pensamento nem sempre andam juntos. Muitos foram os pensadores cuja vida parecia contradizer as suas ideias. Outros, ao contrário, fizeram de sua vida o mais eloquente argumento a favor de sua obra. No caso do Pe. Libânio vida e obra são inseparáveis, pois ele é, acima de tudo, um homem de Deus que se colocou a serviço dos seus irmãos. Nesse sentido, a sua obra, vasta e fecunda, pouco tem em comum com o atual trabalho intelectual que nas universidades se vê submetido às injunções formais e burocráticas da vida acadêmica. A vida e a obra do Pe. Libânio ressumam ao longo do tempo a sua opção fundamental profundamente enraizada na existência e na fé e, portanto, ambas estão intimamente inter-relacionadas no mesmo compromisso com o mundo. O seu conhecimento, forjado no rigor do método e enriquecido na amplitude da erudição, não está aprisionado no jogo de espelhos das vaidades, mas é um conhecimento empenhado na decifração do enigma do mundo e compassivo para com o sofrimento dos homens, sobretudo dos mais pobres e desamparados. De que adianta, como ele frequentemente observa, reconstruir exata e minuciosamente o que algum pensador disse no passado, se esse dizer em nada contribui com a crítica do presente e a construção do futuro?

IHU On-Line – Como o senhor descreve Libânio enquanto mestre?

Carlos Roberto Drawin – Muitos são os requisitos da maestria e dentre eles são imprescindíveis o domínio do saber e a clareza do dizer. São duas virtudes que o Pe. Libânio possui em abundância. A primeira só pode ser obtida no esforço dos trabalhos e dos dias, nas longas jornadas de estudo, na ascese da disciplina. Nisso ele é filho inequívoco da tradição jesuítica. Por trás de sua impressionante fluência, da aparente facilidade com que o orador magnetiza o público, ocultam-se o trabalho árduo e o vasto canteiro de obras de suas leituras e pesquisas. A segunda virtude, a sua enorme capacidade de comunicar e fascinar, de tornar tudo simples e claro, sem jamais perder a contundência crítica e a estimulante originalidade, não decorre apenas do poder de sua vontade, mas certamente é dom de Deus. Os seus alunos, discípulos, ouvintes e admiradores devem simplesmente se alegrar com a fecundidade de tal dom. No entanto, como todos sabem, os dons podem ser perigosos, pois podem agrilhoar os que os recebem na avareza da posse e na clausura da autoimagem. No caso do Pe. Libânio, no entanto, outra virtude se destaca em sua maestria: a sua imensa generosidade. Virtude que, infelizmente, é bem mais rara no mundo intelectual. Assim, posso testemunhar que, quando eu não conheço um assunto e me torno inseguro, a ele posso recorrer, pois eu sei, como sempre soube, que receberei uma dose dupla de auxílio: não só o conhecimento que me falta e que ele supre discretamente, mas também um elogio imerecido que vem a calhar para reerguer o ego combalido e alimentar a autoestima.

IHU On-Line – Para além dos âmbitos acadêmico e intelectual, como o senhor testemunha a presença de Libânio junto ao povo, às Comunidades Eclesiais? 

Carlos Roberto Drawin – Padre Libânio sempre foi para mim um mestre e um amigo fraterno. Como antes indiquei, dele recebi incomensuráveis tesouros espirituais e intelectuais. Com ele sempre convivi no espaço íntimo da amizade e no espaço público da vida intelectual e acadêmica. Atualmente posso, com orgulho e presunção, chamá-lo de colega, pois ambos trabalhamos na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, em Belo Horizonte. Não posso testemunhar diretamente, entretanto, sobre a sua presença no meio popular. Porém, indiretamente, seja pelo depoimento de outros, seja pela repercussão facilmente perceptível de suas atividades, não há como não reconhecer a extensa e intensa penetração de sua presença. Uma presença disseminada num amplo espectro que vai do alcance universal do teólogo – pelo papel essencial de sua obra na fundação e difusão da Teologia da Libertação – ao lugar humilde, mas não menos relevante, de coadjutor da paróquia de uma pequena cidade mineira. Quem conhece o teólogo eminente ficaria surpreso em reconhecê-lo como o celebrante das singelas missas das crianças e ao vê-lo circular como um jovem dentre os jovens da paróquia. A presença do Pe. Libânio junto ao povo não está nem num e nem noutro desses polos, porque abrange todas as suas atividades movidas pelo desejo de amar e servir sempre mais e melhor, tanto sabendo se conter nas pequenas coisas como não temendo se lançar nos maiores desafios.

IHU On-Line – Qual era a relação de proximidade de Libânio com Lima Vaz? De que modo a filosofia de Vaz influenciou o pensamento de Libânio?

Carlos Roberto Drawin – Eu fui durante muitos anos aluno do Pe. Henrique de Lima Vaz a quem designei como “mestre incomparável” na ocasião em que tive a honra de pronunciar o discurso em sua homenagem quando da solenidade em que lhe foi outorgado o título de Professor Emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Um elogio que longe de ser hiperbólico apenas ressaltava a impressão que provinha do notável contraste entre a figura humilde do professor e o vigor e audácia do pensador. Ora, o Pe. Libânio foi discípulo, amigo e irmão do Pe. Vaz na Companhia de Jesus e sempre me dizia do imenso privilégio que era essa convivência e o quão perplexo ele ficava ao observar o grande filósofo caminhando meditativo e rezando o terço, entregue a uma devoção que a muitos pareceria incompatível com as complexas e sofisticadas construções conceituais de seus textos. Esse cultivo da humildade cristã talvez tenha sido uma das razões, dentre outras, do desconhecimento que ainda cerca a obra vaziana, mas que lentamente vai se dissipando com a publicação dos manuscritos inéditos e a reedição de seus livros. O Pe. Libânio sabia que sempre poderia recorrer – transpondo a curta distância entre o seu quarto e o do Pe. Vaz – a essa fonte pura e pujante, generosa e simples de saber e sabedoria. Tal reconhecimento e veneração, no entanto, jamais tolheu no Pe. Libânio a sua independência intelectual e sua respeitosa divergência. Algumas vezes o teólogo, combatente da justiça e servidor da esperança, discordou do filósofo em sua intransigente defesa da razão. Porém, em todos os seus encontros, convergentes ou divergentes, a última palavra coube ao compromisso comum e ao amor partilhado da verdade. Creio que o Pe. Vaz contribuiu significativamente para a constituição da estrutura dialética da teologia libânica, mas certamente a sua influência mais profunda foi o testemunho dessa vida que se entregou silenciosamente à primazia da caridade.

IHU On-Line – Como os conceitos de modernidade e pós-modernidade são implicados no pensamento de Libânio?

Carlos Roberto Drawin – Uma das características marcantes da personalidade do Pe. Libânio é sua liberdade diante do olhar crítico do outro. Temente de Deus ele não teme a avaliação que os seus leitores e colegas possam fazer de seus escritos, o que o livra das inibições tão comuns nos meios intelectuais. Essa é uma das razões, além de sua excepcional inteligência, que nos ajuda a compreender como ele se tornou um escritor extraordinariamente prolífico. Assim, diante de uma obra tão extensa e multiforme não é fácil responder de modo sintético e justo à questão que foi proposta. Seria preciso reportar a obras como Teologia da revelação a partir da modernidade (1992), A religião no início do milênio (2002), Em busca de lucidez. O fiel da balança (2008) e muitas outras. Vou me ater, portanto, a uma observação contida na “Introdução” da última obra citada: “O momento presente está a exigir muita lucidez. Até a modernidade as linhas do horizonte se definiam com clareza. A poluição cultural acinzentou o céu, de modo que não distinguimos a pré-modernidade, a modernidade e a pós-modernidade. Vivem-se simultaneamente tais momentos culturais de maneira intrigante” (p. 17-18). Essa exigência de lucidez está cravada no coração de um fazer teológico que se quer fiel à Revelação e à Tradição sem descurar os desafios advindos do “espírito de suspeita” que, desde o limiar da modernidade, acompanha a ascensão da subjetividade. Uma teologia lúcida não pode se fechar na reiteração de verdades dadas de antemão e, desse modo, se perder na ilusão da “pura objetividade”, mas reconhece o horizonte hermenêutico em que está inserida. Somente a explicitação dos próprios pressupostos e pontos de vista permite o desdobramento dialético do círculo hermenêutico que, partindo da Revelação, “aceita a acolhida na fé”, libertando-a das inevitáveis cristalizações ideológicas que a envolvem e permitindo que sua luz transcendental se derrame nos “tempos sombrios” de um mundo pretensamente iluminado por uma racionalidade tão eficaz quanto carente de sentido humano.

IHU On-Line – Como se pode verificar em sua vasta obra a partir da Teologia, Libânio dialoga com outras áreas do conhecimento e das ciências sociais. Que fio condutor podemos perceber nessas interfaces?

Carlos Roberto Drawin – A resposta à questão anterior inclui necessariamente a questão acima formulada. Quando explicitamos os nossos pressupostos nos livramos da ilusão de que falamos desde o “ponto de vista da eternidade” e inserimos as nossas ideias na história, o que significa se colocar numa posição dialogal. O diálogo socrático é o solo histórico de onde brota a dialética. Por isso a exigência de lucidez faz com que a teologia libânica, ao explicitar os seus próprios pressupostos, convide o seu interlocutor a fazer o mesmo. Essa “via de mão dupla” possibilita um crescente aprofundamento reflexivo que é estranho a toda forma de fechamento dogmático. Ora, essa abertura dialógica inclui o esforço de sempre considerar, compreender e assimilar as contribuições provenientes das diversas ciências sem transformar os seus resultados e métodos em novos fetiches. Como o Pe. Henrique Vaz mostrou brilhantemente em sua antropologia filosófica, a mediação da explicação científica tornou-se imprescindível para o pensamento contemporâneo, mas como toda mediação também a explicação científica requer a sua suprassunção, requer a sua transposição reflexiva no registro da compreensão transcendental. No meu modo de ver, o fio condutor do diálogo da teologia libânica com as ciências consiste justamente nesse compromisso hermenêutico e dialético de um pensar sempre aberto e dinâmico, porém jamais disperso e fragmentado.

IHU On-Line – Gostaria de relatar mais algum aspecto não perguntado?

Carlos Roberto Drawin – Muito poderia ainda ser dito. O Pe. Libânio é autor de uma obra que deveria e certamente deverá ser ainda muito explorada. Os testemunhos sobre a sua pessoa, seu itinerário e os inumeráveis bens que ele partilhou também poderiam ser multiplicados indefinidamente. Muito poderia ainda ser dito, mas resta o silêncio que cerca o mistério do dom do Outro. A presença do Pe. Libânio foi na minha vida esse dom que só posso acolher com profunda gratidão. 

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