Edição 383 | 05 Dezembro 2011

O poder menos transparente da República

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Márcia Junges

Realizada em 2004, a reforma do Judiciário ainda não é suficiente, e esse poder continua fechado e “avesso a investigações e distante dos anseios e demandas populares”, analisa José Carlos Moreira da Silva Filho

“É preciso reconhecer que a atuação do Supremo Tribunal Federal e o seu crescente protagonismo tem contribuído substancialmente para alçar a interpretação da Constituição a um posto mais meritório na ordem jurídica brasileira, mas, por outro lado, esta atuação também tem trazido sérios problemas democráticos, que para serem entendidos necessitam ancorar-se na própria história das instituições brasileiras”. A ponderação é do advogado José Carlos Moreira da Silva Filho, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Por outro lado, o Judiciário é o “poder menos transparente da República”. Esse poder é “avesso a investigações de toda ordem no seu interior, ainda mais quando promovidas por outros atores e órgãos que não sejam oriundos de si mesmo. Isso impediu historicamente que as inúmeras histórias de corrupção e favorecimento fossem conhecidas pelo grande público, passando-se uma falsa imagem de austeridade e idoneidade moral”. Trata-se de um poder elitizado, fechado, não democrático, avesso a investigações e “pode ser considerado um dos principais obstáculos para o cumprimento dos direitos humanos no Brasil”.
Para José Carlos, “de certo modo, nosso Judiciário ainda é aquele mesmo que compactuou com as leis draconianas e com os crimes da ditadura civil-militar, estimulando a tortura e o terrorismo de Estado”. Contudo, há muitos magistrados valorosos em nosso país, assegura, “verdadeiros defensores dos direitos humanos que vêm se esmerando para superar a herança autoritária e elitista do poder que representam”.

José Carlos Moreira da Silva Filho é bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB, mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, e doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. É professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais – mestrado e doutorado – e graduação em Direito), conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e membro-fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – Idejust (http://idejust.wordpress.com).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A justiça é a mesma para todos? Por quê?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Vivemos em uma sociedade desigual e um dos setores nos quais a desigualdade se mostra de forma mais gritante é justamente o do acesso à justiça. Isso se expressa de várias maneiras: falta de defensores públicos por todo o Brasil, sistema penitenciário precário e violento, excesso de cerimônias e solenidades que intimidam os mais humildes, tratamento mais benigno aos que têm condições de pagar bons advogados, simplificação excessiva dos juizados de pequenas causas, mentalidade elitista e conservadora de boa parte dos magistrados. Aliando-se a tudo isso está a tristonha e persistente atualidade da máxima: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Basta que se veja, por exemplo, o que acontece, ou melhor, o que não acontece com os policiais militares que cometem crimes bárbaros no exercício da sua função, ou com os assassinos de militantes de direitos humanos, ou ainda com os criminosos do colarinho branco. Veja-se também o que não aconteceu com os criminosos que implementaram e executaram a ditadura brasileira e promoveram políticas públicas de torturas e violações de direitos humanos. Por outro lado, os pequenos traficantes, ladrões, atravessadores e homicidas que vivem nas periferias, e que são em sua maioria pessoas com pouco poder e com parcos recursos, superlotam os presídios e masmorras brasileiras, alimentando a fornalha das organizações criminosas e da promiscuidade policial. Talvez um dos sintomas mais evidentes da desigualdade da justiça no Brasil seja a existência de uma justiça militar, destinada até hoje a apurar fatos e crimes que ocorrem na esfera civil, desde que praticados por algum militar ou policial militar, e que podem até mesmo julgar civis, como ocorreu copiosamente durante o período ditatorial.

IHU On-Line – O Judiciário é um poder autônomo que está acima dos demais em nosso país? Por quê?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Na verdade, a tradição política brasileira é de concentrar os poderes do Estado nas mãos do Executivo. Há uma obra clássica que ilustra isso, escrita por Ernest Hambloch e que se chama Sua Majestade, o Presidente do Brasil . A experiência brasileira de governos democráticos e próximos às demandas populares é ainda ínfima. Mesmo os governos de Lula e agora o da Dilma experimentam profundas contradições, reeditando em muitas situações o famoso pacto populista brasileiro de acalmar as massas fazendo-lhes algumas concessões toleráveis pelas elites e, ao mesmo tempo, garantindo a estas suas vantagens habituais. Nesse quadro, a atitude do Judiciário historicamente foi a de acompanhar a toada dos governos e funcionar como um eficiente fiador das elites. É interessante consultar nesse particular a obra de José Murilo de Carvalho  sobre a constituição social do judiciário brasileiro no período imperial (A construção da ordem, a elite política imperial). A grande novidade que temos agora, e que já foi alardeada aos quatro ventos por inúmeros juristas, é que a Constituição de 1988 estabeleceu uma dinâmica e um equilíbrio diferente entre os três poderes, nascendo deste novo arranjo institucional, reflexo do efetivo esforço de democratização que representou a Constituinte, um espaço maior tanto para o Legislativo como para o Judiciário, que passa a ser provocado com maior constância para resolver os muitos impasses que vêm se avolumando tanto entre os outros dois poderes como entre estes e os diversos grupos organizados da sociedade civil na sua busca pela concretização de direitos.
Começamos a ter verdadeiramente uma jurisdição constitucional. Até bem pouco tempo atrás a Constituição era vista como uma perfumaria jurídica, uma espécie de Chefe de Estado normativo, reservando à lei ordinária, especialmente aos Códigos, o papel de Chefe de Governo normativo. É preciso reconhecer que a atuação do Supremo Tribunal Federal e o seu crescente protagonismo tem contribuído substancialmente para alçar a interpretação da Constituição a um posto mais meritório na ordem jurídica brasileira. Mas, por outro lado, esta atuação também tem trazido sérios problemas democráticos, que para serem entendidos necessitam ancorar-se na própria história das instituições brasileiras, e que procurarei abordar mais adiante.

IHU On-Line – Por que razão surgiram tantas denúncias nos últimos anos contra o Judiciário?

José Carlos Moreira da Silva Filho – O Judiciário é, sem dúvida, o poder menos transparente da República. E é, ao mesmo tempo, avesso a investigações de toda ordem no seu interior, ainda mais quando promovidas por outros atores e órgãos que não sejam oriundos de si mesmo. Isso impediu historicamente que as inúmeras histórias de corrupção e favorecimento fossem conhecidas pelo grande público, passando-se uma falsa imagem de austeridade e idoneidade moral. Contudo, o fato de vivermos uma democracia formal e uma relativa liberdade de imprensa (digo relativa, pois os donos da imprensa brasileira, em sua grande maioria, buscam impor versões unilaterais travestidas de coberturas imparciais e plurais, e sem falar na péssima qualidade do jornalismo no Brasil) contribui para que muitos episódios venham à tona, o que antes não era possível. A própria atuação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ contribuiu para trazer alguns fatos à tona e promover algumas importantes investigações, mas ainda é muito pouco, sem falar que o controle continua sendo interno, pois quem preside o CNJ e o compõe em parte expressiva das cadeiras é o próprio Judiciário. Basta ver a gritaria que se está fazendo contra a juíza Eliana Calmon, Corregedora Nacional de Justiça, que vem botando o dedo nesta ferida.

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